quarta-feira, 17 de junho de 2020

o que põe o homem de pé


Segundo Fernando Pessoa, o que pôs o homem de pé não foram os pés, o que colocou o homem de pé foi  sua capacidade de colocar questões,  perguntas. Assim considerado, o tamanho de um homem não se mede em centímetros ou metros, mas pela amplitude e potência de sua pergunta e questionamento. Lá no início dos tempos, diz o poeta, o homem andava de quatro, como um cão. Sua coluna cervical  era paralela ao chão, como um travessão. De tal maneira que seu rosto estava sempre voltado para o chão, atrás de rastros e restos, ao mesmo tempo que  seus olhos,  apequenados, só enxergavam  o que era útil ao interesse rasteiro e imediato. Deve ter sido de noite, sob o céu aberto e estrelado, que os olhos do homem começaram a se erguer para olhar e tentar compreender o infinito que ele não podia pegar com a mão e nem sentir o cheiro. Os olhos do homem então  se desterritorializaram do estreito chão que viam com a cabeça baixa e se reterritorializaram no infinito do céu aberto. Os olhos “horizontaram-se”, diria Manoel de Barros; com eles, a própria mente do homem também se horizontou. A palavra “desejo” vem de “desiderium”, cuja raiz é “siderium”, “sideral” em português. Desejar é: “alcançar o sideral”, enquanto espaço aberto onde vivem as estrelas. É esse desejo que coloca  de pé o pensar no homem, para que assim o homem  se volte também para o próprio mundo imediato onde vive, para que o compreenda e possa transformá-lo, ao invés de apenas viver de quatro ou de joelhos, refém da ignorância ou do medo.  Complementa então o poeta: quando o homem está de pé e o olhamos de perfil, a coluna cervical que o ergue assemelha-se a um ponto de interrogação sustentando sua cabeça.


( imagem: “Poesia”, de Haroldo de Campos)




("Infinito" , de Décio Pignatari)








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