quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Ao Dia das Professoras e Professores

 

Tempos atrás, numa bela manhã  de outubro, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo.  Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito  eu não  dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber   que tal palavra  ainda em mim  vivia , à espera  de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia.

 Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela  estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto,  junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou.

Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!”.  Aquele senhor era um querido  professor que tive há muito tempo. Coincidentemente, o Dia dos Professores estava próximo...

Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para  mim, encontrando  a minha que já lhe estava estendida  desde a primeira aula dele que assisti .  Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios.

Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: “Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?”

Antes de ele ir, olhei  seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a   recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha gratidão. E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje,  daquele que o fez mestre: “O aprender vem antes do ensinar”, lembra-nos Deleuze.

O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou  lições que não  estão apenas  em livros, mas também nas ações.

Creio  que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive  apenas fora, ele passa a viver  dentro da gente, e com ele continuamos a aprender , mesmo  enquanto ensinamos.

Por isso, hoje também é dia de cada professor se lembrar daquele do qual foi aluno no aprendizado do mundo e de si mesmo. Pois essas lições são o conteúdo vivo de toda aula que, crítica e criativamente, renova o sentido emancipador , singular e coletivo, da educação.

Assim,  apenas  sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,  sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu  desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de  outros queridos  mestres que igualmente entraram  em mim e me tornaram o que sou : a  querida Professora Nadir ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o  inesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio   Junito Brandão : “O melhor de mim sou Eles.”(Manoel de Barros)

Um abraço às professoras e professores por  seu dia!

 

( imagem: o professor Deleuze na companhia de alunas e alunos)





sábado, 11 de outubro de 2025

Evento / Manoel de Barros

 

No poema “Achadouros”, Manoel de Barros nos fala de uma sábia contadora de histórias que ele conheceu quando criança. A sábia ensinava haver “achadouros” em Corumbá.

No sentido literal, os “achadouros” eram buracos que os holandeses cavaram antes de fugirem do Brasil séculos atrás.

Com o ouro surrupiado do rico subsolo de nossa ancestral Pindorama, os holandeses fabricaram moedas nas quais estamparam a coroa holandesa. Depois eles esconderam essas moedas de ouro nos tais buracos abertos no fundo de quintais, para que não ficassem com elas os colonizadores da coroa portuguesa, seus rivais.

Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros, os homens escavaram quintais para ver se ali achavam o ouro rapinado pelos colonizadores.

Mas o poeta compreendeu que a sábia falava também de outros “achadouros”, enquanto espaços a descobrir que guardavam diferentes tesouros.

Seguindo a lição da sábia, o poeta aprendeu a descobrir “achadouros” onde estão guardadas riquezas    que não vêm da usurpação do homem sobre o outro, riquezas que são, para a vida digna, verdadeiramente preciosas: escavando a palavra, o poeta acha nela sentidos novos não colonizados; escavando em si mesmo, o poeta acha horizontamentos libertários que partilha com os outros.  

Com sua arte que faz pensar, sentir e desperta, o poeta “desabre” nossos habituais olhos que o leem para que em nós achemos, quem sabe, olhares novos.

E toda essa riqueza   que o poeta acha, e generosamente partilha conosco, vem da potência transbordante de vida que, empoemando-o, guardou-se dentro do poeta como tesouro, cujo valor não se mede em moeda, capital ou ouro.

 



“Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento” é um verso de Manoel. Esse verso pode ser interpretado de muitas maneiras . O lápis expressa o veículo de expressão do poeta, o instrumento que une sua mente e corpo. Na ponta do lápis do poeta nascem ideias que fazem nascer também ideias em quem o lê. Esse ato de dar nascimento a realidades que potencializam a vida pode ser um  antídoto à necropolítica, e é por isso que esse verso também é, em sua essência, político. 


Em breve, colocarei a programação completa do evento.




quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Perséfone/Pachamama

 

Segundo a mitologia, Hades é a divindade  que habita a região trevosa  muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez, porém, Hades ouviu uma voz cheia de vida vindo  da superfície. Ele subiu e viu que era Perséfone cantando... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais.

 Ceres , por sua vez, é filha de  Cibele, a divindade  da fertilidade. Cibele é o Feminino Ancestral ( os povos originários da América a chamam de Pachamama).

 E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a divindade  cuja arte é fazer nascer flores: múltiplas e heterogêneas, flores de todas as cores.

Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de arte, de poesia e de criatividade.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa,  ninguém imaginava que pudesse nascer no taciturno  Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, Hades raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava. 

A pedido de Ceres, Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone viveria lá embaixo com Hades : sua ausência entre nós recebeu o nome de inverno.

Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe de volta  e enche de vida a terra :  tudo recomeça , renovado.

Hoje, as sombras não reinam  somente lá embaixo,  mentalidades sombrias  piores  nos ameaçam aqui em cima .  Apesar disso, nada detém  Perséfone e sua    primavera, tempo em que Perséfone chega para florir de vida  a terra.

 

 

 “O céu da teoria é cinza;

mas sempre verdejante é a árvore da vida.” 

(Goethe)

 

 “Eram os passarinhos que colocavam

primaveras nas palavras.” 

(Manoel de Barros)


 

( imagem:“O abraço amoroso de Pachamama”/Frida Kahlo)