quarta-feira, 29 de junho de 2022

devir-indígena

 

Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um indígena e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca  como se fosse um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros.

Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura branca autointitulada “civilizada”. O antropólogo nada perguntou ao indígena, e retornou   a Londres para tentar entender aquele ato que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto.

 O antropólogo   consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que explicasse   o gesto do indígena.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como objeto artístico...Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o indígena fez com a máquina de escrever...

Graças ao ato artístico-subversivo do indígena, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos.  O indígena era o “outro” do branco, mas o branco também era o “outro” do indígena. Nem todos são brancos, nem todos são indígenas, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal. É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele sempre quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( como diz Manoel de Barros).

O indígena da narrativa  nos ensina que talvez a arte e a educação comecem no olhar, um olhar que interroga e recria, também criticamente, o sentido de nós mesmos e do mundo .

 Um olhar assim é sempre pensante, questionante, insubmisso , estrangeiro. Ele é estrangeiro não no sentido literal , e sim porque ele suspende nossas habituais certezas e nossos roteiros prévios acerca de como viver e agir. Ele não é um olhar de fora, mas sim um olhar ainda não colonizado por aquilo que está estabelecido e etiquetado pelos poderes dominantes.

Nesse sentido, pensar é sempre produzir em nós um devir-indígena no seio mesmo de nossa sociedade que se intitula “branco-civilizada”. É preciso construirmos um devir-indígena nos parlamentos, nas sociabilidades e também nos espaços acadêmicos onde são produzidos nossos conhecimentos.

Nada mais contrário ao olhar vestido com uniformes do fascista do que o olhar nu e livre do indígena.

 

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios”. (Manoel de Barros)

 

“Mais importante do que viajar para ver paisagens novas, é ver de forma nova a mesma paisagem habitual”. ( Proust)

 

( foto : Ricardo Stuckert /https://conexaoplaneta.com.br)





terça-feira, 28 de junho de 2022

a terceira margem

 

As duas margens do rio prendem e limitam o fluxo das águas.  Mas , como ensina Guimarães Rosa, o rio possui ainda uma terceira margem . Essa terceira margem ora é a nascente e “minadouro” do qual o rio nasce; ora é o oceano no qual o rio se infinitiza e se torna.

 A terceira margem nos mostra que rio, oceano, chuva, suor e lágrima...tudo é metamorfose diferente de uma mesma  água fontana que banha, batiza, rega,  orvalha e mata a sede de vida de quem bebe em suas libertárias  águas.

A gramática e suas regras constituem  as duas margens que contêm a palavra. Porém  a poesia é a terceira margem da qual um  sentido novo fontaneja, torna-se fluxo avançando  inaprisionável , até  horizontar-se oceano  que abraça e é abraçado pela Mãe-Terra.

 

“A cisterna contém,

a fonte transborda.”

(W. Blake)


“Poeta é quem possui visão fontana.”

(Manoel de Barros)


“Um fluxo é como um rio cuja correnteza  é mais veloz no meio e rói suas margens.”

(Deleuze)


( ontem, 27 de junho, aniversário  de nascimento de Guimarães Rosa)





segunda-feira, 27 de junho de 2022

para ser grande

 

Há um poema de Fernando Pessoa no qual ele nos ensina o que é preciso fazermos para “sermos grandes”.

Segundo o poeta, para sermos grandes de verdade não precisamos comprar nada, nem acumular coisas, tampouco ambicionar ser o primeiro lugar em pódios.

O poeta diz mais ou menos o seguinte: “Para sermos grandes , devemos fazer como a lua que nunca se recusa a refletir-se inteira na mais simples poça do caminho”.

 A lua é grande porque ela não rejeita a poça julgando-a indigna de receber sua presença: ao contrário, é a presença da lua na poça que dignifica a poça. A lua engrandece a poça sem ser diminuída.

A lua não se reflete pela metade ou em parte na poça, ela se coloca por inteiro, nos ensinando o que é ser íntegra. Assim, a lua horizonta a poça: faz dela um espelho unindo terra e  céu.

A lua não se reserva apenas para os oceanos. Não é o tamanho daquilo no qual ela se reflete que faz a grandeza da lua, é a grandeza da lua que engrandece a realidade na qual ela se reflete.

A primeira vez que li esse poema foi numa aula de filosofia no antigo segundo grau.

Li o poema e não entendi tudo, mas fiquei com ele na cabeça. E na minha cabeça havia também nuvens espessas  turvando minha visão acerca do futuro ( eram épocas difíceis, ainda havia a ditadura militar cerceando  tudo ...).

A querida professora que me apresentou o poema me disse que o sentido dele levaria tempo para a gente compreender, pois era um sentido para ser compreendido não apenas com a mente , mas também com o corpo;  e que eu  compreenderia o sentido quando dentro de minha mente houvesse um clarão. Poemas assim a gente lê para se ler.

Quando sai do colégio após a aula,  já era noite . Choveu  muito a tarde inteira, as nuvens pareciam de chumbo. No asfalto ,  aqui e ali , poças que a chuva deixou.

Eu caminhava de cabeça baixa olhando para o chão , como se dentro de meu pensamento pesasse um chumbo.

De repente, numa poça do caminho eu vi o reflexo da  lua cheia, ela brilhava no espaço que conseguiu abrir entre as nuvens pesadas.

Ao ver a lua refletida na poça, de imediato levantei minha  cabeça  , ergui os olhos e a vi no alto, ao mesmo tempo que abria minha mente  o poema sob a forma de um libertador  clarão.



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-Ideia semelhante é narrada neste excelente livro:



 

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COMO BROTA UM VERSO / de Rilke

 

Os versos não são, como imaginam as pessoas, simples sentimentos… Eles são experiências. Para escrever uma única linha, um simples verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitas pessoas e muitas coisas; é preciso conhecer os animais, sentir como os pássaros voam nos céus e perceber o movimento de uma flor que se abre pela manhã.

É preciso evocar caminhos por regiões desconhecidas, em encontros inesperados e separações longamente previstas; em dias da infância ainda não esclarecidos; nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro); em doenças de infância que começam de maneira tão estranha, com tantas transformações profundas e graves; em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar; no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros — e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto.

É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra; de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado junto a um morto numa casa de amplas janelas abertas e aos ruídos que vinham por acessos.

Mas não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso revestir-nos de paciência infinita até que regressem à mente. Pois essas mesmas recordações ainda não são tudo de que é preciso. E só quando chegarem a fazer parte de nossas entranhas, quando se converterem em aspectos e gestos de nosso ser, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos — só então é que pode suceder que, numa hora muito rara e estranha, façam surgir a primeira palavra dum verso que brota.


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Quando ouvi o astrônomo erudito

( Walt Whitman)

 

Quando ouvi o astrônomo erudito,

Quando as provas, os números, foram listados em colunas diante

de mim,

Quando me foram apresentados os mapas e diagramas, para

somar, dividir e medi-los,

Quando eu, sentado, ouvi o astrônomo no auditório em que

apresentava sua palestra com grande aplauso,

Bem cedo e sem conta me senti cansado e enojado,

Até que, levantando-me e saindo silenciosamente, fui perambular

na solidão,

No místico ar úmido da noite e, de tempo em tempo,

Mirava no céu a perfeição silenciosa das estrelas.

 


domingo, 26 de junho de 2022

da origem das palavras

 

“Perseverança” vem de “perseverare” : “manter-se firme”, como deve ser  a mão estendida para segurar quem ameaça cair.

“Amor” se origina da união da letra  “a” com função privativa ( como em “a-fasia” : “não fala”) mais a abreviação da palavra morte: “mor”. Assim, amor é : “não morte”. Quando nos unimos por amor à democracia, é pela “não morte” da democracia que nos unimos.

“Oportunidade” nasce de “oportunus”, que era o nome do vento que trazia de volta ao porto o navio que se perdeu numa tempestade.

“Filosofia” é a união de “phylo” , “amor” ou “amizade”, mais “sophia”, também chamada de “sabedoria”. A palavra “sophia” não é a mesma coisa que razão. Pois sophia  também é sensibilidade , afeto e ação. “Sophia”, inclusive, pode ser nome de gente, porém ninguém se chama “Razão”, embora os intolerantes se julguem donos dela.

“Educador” é “aquele que conduz”; e forma par com “educando”: “aquele que é conduzido”, porém sobre as próprias pernas , com autonomia.

“Absoluto” : “o que não é soluto”. É “soluto” tudo aquilo que se dissolve. Mesmo a pedra é soluta e se dissolve, até mesmo o aço, embora exija muito tempo para o aço dissolver-se. Assim, “absoluto” não é o mesmo que “eternidade”. Pois “eternidade” se opõe ao tempo, ao passo que um momento do tempo pode ser absoluto, desde que o salve a criatividade , fazendo-o viver no poema, na música, enfim, na arte. O girassol que Van Gogh viu certo dia num campo florido, esse girassol desapareceu para todo o sempre , nem pó é mais...Porém, ele se tornou absoluto  no girassol que Van Gogh pintou. As técnicas de conservação aplicadas sobre o quadro não são para conservarem as tintas por elas mesmas, mas enquanto elas são o meio expressivo que dão corpo ao girassol  absoluto que Van Gogh criou com as tintas. Assim é também o Pantanal que encontramos nos versos de Manoel de Barros: Pantanal Absoluto que os fascistas nunca conseguirão queimar ou destruir totalmente, por mais que tentem.

“Dioniso” : “aquele que nasceu duas vezes”. A primeira vez que Dioniso nasceu foi quando veio ao mundo: como todo recém-nascido, veio ao mundo chorando. A segunda vez que ele nasceu foi após ser despedaçado por seus carrascos, quando então Dioniso renasceu do próprio coração. E desse renascer Dioniso surgiu sorrindo, na alegria do triunfo da vida.

“Companhia”: “com-panis”, “dividir o pão”. Aprendem a ser companheiros aqueles que dividem entre si o pão ( panis). Há o pão que alimenta o corpo, mas também há o pão que alimenta a alma, cujo fermento é a busca coletiva por justiça, democracia e educação .

Como ensina Manoel de Barros:“A poesia está guardada nas palavras, é tudo o que sei.”

sexta-feira, 24 de junho de 2022

cardiosofias

 

Entre alguns filósofos-poetas  antigos, a sabedoria  mais buscada, porém a mais difícil de alcançar e aprender, não era sobre o Cosmos ou Deus, tampouco se podia conquistá-la mediante a mera  teoria.

O nome dessa sabedoria era: “cardiognosia”, ou conhecimento dos corações humanos. Tal conhecimento devia começar na observação de si mesmo, para depois se dirigir aos outros.

“Sinta a si mesmo como se fosse o outro, sinta o outro como se fosse a si mesmo”, essa  era a primeira das lições da cardiognosia.

Segundo os mestres cardiognósticos, as palavras que vêm do cérebro , teóricas que são, às vezes mentem ; porém nunca mentem as palavras que vêm do coração, pois através delas é dito o que o corpo sente, e o corpo nunca mente.

Assim, a cardiognosia não é  teoria apoiada em palavras que nascem  na boca, pois às vezes somente o silêncio  consegue dizer  o que o coração pensa e sente.

O coração é o primeiro dos órgãos a se formar. Ele se forma antes do cérebro, antes dos pulmões, antes do estômago.

 No feto, o coração começa a bater  por volta do décimo sexto dia. Essa inaugural  batida é  a primeira nota musical de um ritmo vital que crescerá protegido no útero da mulher.

 Os cardiognósticos    achavam que era o coração , e não o cérebro, a sede dos pensamentos mais importantes à vida. Talvez eles não estivessem  errados , movidos que estavam pela intuição de um pensamento originário, um pensar-pulsante,  do qual o coração é a sede e o agente.

Quando estamos tristes ou nos imaginando  derrotados  , nosso cérebro  parece que perde a vontade de pensar, deixando-nos resignados; porém  o pensar do coração tem uma força maior que toda vontade :estejamos alegres ou tristes, saudáveis ou doentes, o coração  pulsa não por escolha, mas por vital necessidade.  “Coragem”: “força que nasce do coração”.

O pensar do cérebro tem por sujeito o “eu”, já  o pensar do coração é criação da vida , sua arte originária .

 As ideias que o cérebro pensa dependem   dos neurônios; porém os neurônios  não conseguiriam respirar não fosse  o oxigênio que o coração lhes envia no fluxo do sangue: antes de os neurônios pensarem, o coração pensa neles antes.

Creio que todas as ideias que o cérebro pensa o coração é capaz de senti-las, para assim avaliar o quanto tais ideias enfraquecem ou fortalecem a vida, se são veneno ou remédio.  Mas por virem  antes e terem  primazia, as ideias originárias do coração somente ele é capaz de pensar :são ideias não teóricas, ideias para serem sentidas também com o corpo,  como as ideias vitais da poesia. 

 

 

 

“Por mais longe que a razão nos leve,

leva-nos mais longe o coração".

(Goethe)

 

 

 

(  poucos chegaram tão perto desse pensar originário , um pensar que também se sente, na dor ou na alegria, quanto a “cardiognóstica” Clarice)



 



quarta-feira, 15 de junho de 2022

procustos, ontem e hoje

 

Os cúmplices do fascista-miliciano ainda insistem em chamá-lo de “mito”. Nem todo mito ensina sobre coisas dignas como a beleza ( Afrodite), as artes ( Dioniso), a justiça ( Zeus) e o conhecimento ( Atena). Há mitos que tratam da violência ( as Fúrias) e da ignorância e sua visão estreita ( os Cíclopes).

As Fúrias e os Cíclopes representam forças negacionistas e destruidoras que, ao longo da história, saem do submundo sombrio onde se escondem e ganham novos rostos e nomes : Mussolini ,Hitler, Pinochet , Ustra , os assassinos de Marielle...

Mas há outro mito que me lembra o miliciano . Trata-se de “Procusto”. Esse nome significa: “Aquele que violenta, tortura, decepa, corta...”.

Procusto queria subir ao Olimpo  , porém não tinha dignidade e nem valor para isso. Então, fingindo-se preocupado com a dor e sofrimento dos seres humanos, armou  um plano para ganhar adeptos que o apoiassem em seu projeto de poder  para galgar o Olimpo e tomar o lugar de Zeus e Hera, divindades da ética e da justiça.

Ardiloso e dissimulado, Procusto veio para perto de uma estrada por onde passavam pessoas cansadas, dizendo que queria oferecer para elas um amparo, um cuidado, mostrando assim que ele era um “ser do bem” e fiel aos deuses.

Procusto lhes ofereceu então uma cama. Porém, quando as pessoas se deitavam na tal cama acontecia o seguinte: às vezes, sobravam da pessoa as pernas e a cabeça. Procusto pegava um machado e lhes decepava as pernas e a cabeça. Noutras vezes, a pessoa que se deitava era menor do que a cama. Procusto amarrava os membros da pessoa com uma corrente e puxava com força , acabando por desmembrar as pessoas.

Indignadas, as pessoas protestaram contra Procusto: “Ao invés de ser um amparo, sua cama é uma sentença de morte!”

Frio como todo ser desprovido de empatia, Procusto se limitou a puxar do bolso uma régua e passou a medir com rigidez militar a cama. Depois, virou-se para as pessoas e , ameaçando, disse: “Do que vocês estão reclamando!? A régua não mente...Acabei de medir minha  cama: ela é perfeita, homogênea ,cada lado é igual ao outro. Se há alguma imperfeição, ela está em vocês que , por serem heterogêneos e diferentes, não cabem na perfeição da minha cama!”

A cama tolhedora de Procusto pode receber ainda outros nomes: “minha Religião”, “meu Dogma”, “minha Pátria Verde e Amarela dos homens de bem”... Essas camas da ignorância negacionista têm o tamanho da pequeneza: só cabe nela quem aceita ficar acéfalo, sem cabeça; ou diz “amém” servil e , sem pernas, põe-se de joelhos.

Isto é o que os Procustos de ontem e de hoje  mais temem e os deixa paranoicos: a multiplicidade e heterogeneidade social que, agenciada, cabe apenas em lugares abertos, plurais, horizontados. E por esses lugares resiste e luta.

 

( este livro é apenas uma sugestão de leitura)



sábado, 11 de junho de 2022

as desaprendizagens

 

Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com um pintor:  Miró.

Para aprender toda a potência libertária que há na  poesia,  é necessário desaprender as cartilhas e tabuadas  cujo poder  produz apenas mentes “acostumadas”. Foi essa “desaprendizagem” necessária que o poeta aprendeu com o pintor,  para assim nos mostrar que poesia não é somente  versos, rimas   e palavras , poesia também “pode ser que seja fazer outro mundo”, ensina-nos  Manoel.

Esta foi a lição que o poeta aprendeu :

Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Tomado por uma profunda crise, Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho de Miró  era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ,  porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda .

A tal “mão invisível do mercado” é mão direita que apenas sabe contar dinheiro, ao passo que a mão que doa e partilha é sempre mão esquerda.

A mão direita gosta de segurar armas e revólveres para fazer ameaças , mas pincéis, giz e lápis, sobretudo os de cor, quem os segura para nos libertar é sempre a mão esquerda educadora.

A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.

 

(imagem: “Dançarina”/ de Miró)






quinta-feira, 9 de junho de 2022

a floração dos pessegueiros

 

No filme “Sonhos”, de Kurosawa, há uma cena em que uma criança chora porque um jardim de pessegueiros foi derrubado.

Então, perguntam a ela se o choro dela era devido a não poder mais  comer os pêssegos, ou seja, se o choro  era motivado pelo interesse nos frutos, nos pêssegos.

A  criança responde mais ou menos assim: “Eu não estou chorando pelos pêssegos , pois  pêssegos podem ser comprados  em quantidades no mercado . Eu choro porque nunca mais vou poder ver a floração dos pessegueiros: a floração é única e  não se mede em dinheiro, nem se vende no mercado...”.

De repente, ainda chorando, a criança vê algo colorido num  canto daquele  jardim desolado. Ela   chega perto para ver o que é: do tronco de um pessegueiro  cortado e violentado, a vida ali resistiu e perseverava , pois pequenos embriões de floração novamente brotaram.

Então, como se tivesse ganho o mais desejado dos presentes,  a criança enxuga as lágrimas e  sorri.

O pêssego é colhido com as mãos, ao passo que a floração é para ser colhida com os olhos, para que o próprio ver nos olhos floresça, e enxergue mais do que o mero dado.

O pêssego é o produto de uma criação, já a floração é a arte que torna indistintos o artista e sua obra ainda em processo e  brotando dele mesmo, em generosa doação.

O pêssego mata a fome do estômago, mas  a floração mata outro tipo de fome:  fome de arte, de poesia e de criação.

As ideias são como os pêssegos, porém pensar é floração da mente unida ao corpo.

A liberdade não é um fruto pronto que podemos colher, a liberdade  é floração concreta no aqui e agora, como ato libertário  fazendo-se.

Há os que cobiçam  os pêssegos apenas para pôr neles um preço e vendê-los no  mercado, reduzindo    os pêssegos a meros meios  para se acumular capital, poder e dinheiro.

Mas há os que veem riqueza na floração dos seres, uma riqueza que não se mede em dinheiro, pois é uma riqueza que se cultiva com a arte, a filosofia, a cultura e a educação.

Porém , é preciso cuidar dessa floração e agir para que ela sempre aconteça , pois odeiam essa floração, e sempre a ameaçam, os ceifadores e destruidores de jardins.

 

 

 "Poesia é florescer pelos olhos." (Manoel de Barros)


“Filosofia é prática para ensinar a ver.”( Merleau-Ponty)

 

 

 

( imagem: “Pessegueiros em flor”/ Van Gogh)






terça-feira, 7 de junho de 2022

Musas, museu, Orfeu & Marielle

 

Costuma-se dizer que poeta é quem conhece e vive  as “Musas”. Mas o sentido da palavra “Musa” foi  enfraquecido pela interpretação romântica , que fala do tema das  Musas de forma  “Idealizada” .

No seu sentido original ,  “Musa” significa : “Conhecimento que vem das artes”. As artes também ensinam.

E esta é a riqueza de tal ensino: para aprendê-lo é preciso que o corpo também participe do aprendizado , e não apenas a mente isolada.

As artes ensinam a ver ( pintura, cinema), ouvir ( música), tocar ( escultura),  fazer ( bordadura, artesanias) , além de  libertar o corpo de todo peso ( como ensina a dança).

As Musas eram nove, pois as artes são potências femininas plurais e heterogêneas, e delas nasce um  aprendizado que emancipa corpo e mente agenciados.

O primeiro a ver as Musas foi Orfeu, o poeta originário. Ele as viu e nunca mais foi o mesmo, tornando-se “aedo”.

“Aedo” é como se diz “poeta” em grego. “Aedo” significa: “aquele que canta”.  Cantando, Orfeu também  foi  filósofo, educador, revolucionário, enfim, o primeiro dos libertários.

Tal como  no mundo de hoje, havia naquela época as obscuras forças antiMusas, antipoesia, anticonhecimento, enfim, antiprimavera. Essas forças obscuras eram  representadas pelas Fúrias, deusas do ódio e da vingança, sempre querendo decepar ideias e pisotear jardins.

Foram as Fúrias que, certa vez, torturaram e violentaram o poeta Orfeu, por fim decepando macabramente a cabeça do poeta, achando que assim o calariam para todo o sempre.

Imaginando  que a barbárie delas venceu, as Fúrias deram as costas e se foram. Porém, mal deram alguns passos,  elas ouviram  o poeta cantando ainda , e cantando  com mais força.

Elas se viraram e viram que o poeta resistia cantando apenas com sua cabeça, pois era na sua cabeça pensante que viviam as ideias emancipadoras  que o faziam cantar e ensinar a lição   que ele aprendeu com as Musas: a lição de que com a  arte também  se  luta pela dignidade e potencialização da  vida.

Em toda música, peça de teatro, exposição, filme,  poema, enfim, em todo ato crítico e criativo que , cantando a vida,  resiste  à barbárie, em todo ato assim se pode ouvir ainda, mais atual e vivo do que nunca ,  o canto libertário de Orfeu.

De “Musa” vem “museu” e “música” . Quando a barbárie , ontem e hoje, ameaça pisotear jardins ,  é preciso  cantar resistindo com    a “primavera nos dentes”:

 

“Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa a contra mola que resiste.

 

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade, decepado

Entre os dentes segura a primavera.”

 

( letra/poema de Secos & Molhados)

 

(imagem: no Museu da Maré, espaço de artes que ensinam a resistir, Marielle está presente na exposição que mantém viva suas ideias)




Explicando o mito de Orfeu  numa aula , lembrei dessa capa do álbum dos Secos & Molhados ( no qual está a música "Primavera nos dentes"):









sábado, 4 de junho de 2022

agenciamentos

 

Uma das ideias de que mais gosto é a de “agenciamento”. É uma daquelas ideias que não se ensina/aprende apenas falando/escutando, e sim   construindo, fazendo.

No coração de agenciamento está a palavra “agente”. Mas o que é um agente?

O agente pode ser qualquer coisa que favoreça um agenciamento. Uma música, um livro, uma paisagem... também  podem ser o agente de um agenciamento.

 Todo agenciamento expressa um encontro que suspende as dicotomias sujeito/objeto, subjetividade/objetividade.

Mesmo algo considerado inútil pelo poder dominante pode servir a agenciamentos cuja “utilidade” não se mede em dinheiro. Nem sempre um agente para um agenciamento se mostra evidente. Às vezes, é preciso saber achar um agente para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo .

Sobretudo, é necessário  aprendermos nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem os outros quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos uma situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.

No poema “Aventura”,  Manoel de Barros narra um transformador agenciamento cujo agente  é um simples pote que o poeta encontra jogado fora de "barriga vazia para cima" num lugar ermo.

Não faz muito tempo,  esse pote deve ter sido o centro das atenções: todos  o queriam perto por guardar algo que despertava cobiça e interesse. Talvez ele tenha sido um  pote cheio de   sorvete...

Tamanha deve ser a dor que o pote sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o sugarem, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera, preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.

“Inútil”, o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isso que a natureza produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta antes de seguir seu caminho.

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela imagem triste do sofrimento.

Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo o pote partejou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou... 

"Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que  recebeu sob a forma de rosas.

Em seu agenciamento com o pote, o poeta metamorfoseou as rosas que recebeu em poesia que nos oferta.

E repletos estavam agora o pote e o poeta com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca . Esse agenciamento poético-filosófico também nos  lembra o que dizia Plotino:                                                                                                                 

         “Quando uma ideia nos fecunda , também sofremos angústia de parto.”

 

 



Na imagem, Manoel em sua "Oficina de Transfazer Natureza" ( era assim que ele se referia ao espaço onde escrevia suas poesias).

 

 

quinta-feira, 2 de junho de 2022

a peraltagem...

 

Os jornais hoje estão noticiando e comemorando o “Jubileu da Rainha da Inglaterra”. Como sou simpatizante de Bakunin...rs...( e como o monarquismo brasileiro é um dos sustentáculos do miliciano-fascista), esse “Jubileu” me lembrou uma história:

Tempos atrás, um amigo me perguntou se eu aceitaria lecionar filosofia para seus dois filhos, um de 10 anos e outro ainda mais jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou durando 1 ano.

O mais velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado “Xandinho”. Certo dia , ele e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao Xandinho: “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, ele olhou para o irmãozinho e, sem dizer nada, o abraçou com cuidado .

Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia não era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que as ideias que valem a pena ensinar se deixam desenhar com lápis de cor.

Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles colorirem: a forma era minha, mas as cores eram eles que escolhiam para pintar, com as mãos livres . E eles coloriam sempre multicoloridamente, nunca em preto e branco.

Perto do fim do ano, houve um feriadão. Toda a família desse amigo viajou para Londres, incluindo os dois meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o Xandinho me narrar o que aconteceu em Londres, mas o menino saiu correndo, como se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”, diria Manoel de Barros .

Eles foram ver, entre outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha da Inglaterra passa à frente do público, e todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai mesmo me contou o que aconteceu: quando a Rainha , cheia de pompa e ouro, passou diante deles, todos se ajoelharam diante de seu poder, exceto o Xandinho. Ele ficou de pé, de braços cruzados, firme, olhando diretamente para a Rainha, que virou a cabeça para olhar , espantada, o pequeno insubmisso.

Quando a mãe indagou ao menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu : “Não ajoelho diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai: “acho que já está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”.

Nesse mesmo dia em que ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino da peraltagem me perguntou: “Vai ter prova?”. Respondi: “Não , você já está aprovado. Com dez.”

 

"O homem seria metafisicamente grande

 se a criança fosse seu mestre." (Kierkegaard)

 

quarta-feira, 1 de junho de 2022

poema do pensamento

 

Segundo Espinosa, nós nunca somos um “copo vazio”. Também nunca estamos apenas pela metade. Nós estamos sempre cheios, embora nem sempre tenhamos consciência disso.

A questão importante está no conteúdo que vem preencher-nos. Há os que são preenchidos pelo ódio , ressentimento...até mesmo pela ignorância, pois a ignorância não é um vazio, ela é um conteúdo tóxico  do qual nascem ações e palavras destrutivas, apequenadoras.

Nesse ponto, Espinosa diverge de certas visões orientais da felicidade e do (auto)conhecimento, segundo as quais é preciso “esvaziar” o pensamento.

Para Espinosa, é impossível esvaziar o pensamento , pois é impossível anular  o corpo. Pensamento e corpo , segundo Espinosa, são aspectos diferentes de uma mesma realidade.

O corpo não é um entrave ao pensamento, pois não há pensamento potente e ativo sem um corpo que  , no campo da ação, coloque as ideias em prática.

“Prática” não é mera agitação motora, pois saber olhar, ouvir,  respirar,tocar e mesmo meditar, também são práticas corporais de um corpo expressivo, sensível, não narcísico.

Assim, para Espinosa, a questão não é nos esvaziar, pois isso é impossível. A liberdade, e com ela nossa saúde mental,  está em buscar , como a primeira das necessidades, a realidade-conteúdo  com o qual devemos nos preencher para sermos de vida fortalecidos.

E aqui é preciso fazer um ajuste nessa imagem do copo, pois o copo de que fala Espinosa não é o copo literal, e sim nossa mente. No copo literal, o recipiente recebe e amolda o líquido à sua forma, sem que ele, o copo-recipiente,  mude de tamanho.

Mas quando se trata dos conteúdos que preenchem a mente, acontece algo diferente. De fato, o copo-mente nunca está vazio, porém há certos conteúdos que diminuem a amplitude da mente, conforme a mente é preenchida por eles.

O ódio, a ignorância , o medo...preenchem a mente fazendo-a diminuir de tamanho e amplitude , de tal modo que nada mais consegue entrar nela: cada vez mais, ela pensa e compreende menos. E o mais estranho: mesmo a ignorância diminuindo a mente, mesmo assim alguns se sentem preenchidos, reativamente,  por esse conteúdo que os apequena.

Ao contrário, quando o copo-mente é preenchido por ideias e afetos potentes, ideias e afetos que são aberturas para o infinito, a mente se amplia de tal forma que supera até mesmo os limites estreitos do ego, tornando-se criativa, afirmativa, generosa - sem deixar de ser também crítica e ativa, individual e coletivamente.

Embora nunca possamos estar vazios,  podemos porém  transbordar: como a fonte que , saindo de si mesma, torna-se riacho, rio...  E  avança até ser um com o mar.

 

“Sou água que corre entre pedras:

liberdade caça jeito.”(Manoel de Barros)

 

“A cisterna contém;

a fonte transborda.” (W. Blake)

 

(este belo livro é apenas uma sugestão de leitura : “Espinosa: poema do pensamento.”)