Platão dizia que
no "Mundo das Ideias", mundo que existe acima do tempo, lá nesse mundo passa um
rio de nome “Lethes”. Em grego, “lethes” significa “esquecimento”. Então, antes
de “encarnar” e viver em um corpo aqui e agora, a alma deveria , lá naquele Mundo etéreo ainda , beber certa quantidade de água daquele rio, conforme o tipo de vida que
escolhesse viver aqui embaixo. Se escolhesse levar uma vida voltada para as
posses , vaidades e pretensões, deveria a alma beber muito daquela água. Se, ao
contrário, desejasse a alma viver uma vida autêntica, deveria beber apenas um
pouquinho para poder nascer em um corpo. Pois “verdade” em grego se escreve “aletheia”, “não
esquecimento”. Assim, quem muito bebe daquela água esquece da verdade de que é
essencialmente uma alma, algo
incorpóreo, e passa a viver como se fosse apenas um corpo, como os bichos. Ao contrário,quem
bebe pouco do rio do esquecimento da verdadenunca se perde de si mesmo, mesmo estando em um deserto ou no meio do
nada.
O rio de
Heráclito ninguém sabe onde começa, tampouco onde termina. Acredita-se que ele
é como a serpente a comer o próprio rabo. Quem entra nesse rio e depois sai,
quando entra novamente o rio já não é mais o mesmo, nem é mais o mesmo aquele
que agora entra. Esse rio é o tempo. As águas que passaram vão retornar, e as
que retornam um dia já se foram, nunca as mesmas.
Diferentemente
do “rio de Heráclito”, que não tem começo ou fim (e nele se entra apenas pelo
meio, pelo fluxo,pelas margens), o rio que leva ao Hades, o rio Aqueronte, nasce
aqui, no tempo, e morre às portas do Hades: ele tem apenas um sentido, sempre
vai e nunca volta. Ele leva ao Esquecimento Absoluto. Orfeu foi até lá sem morrer
ou estar morto: ele soube encontrar um
retorno contra a corrente, e subir de novo à vida sem precisar de "tábuas da salvação" ou de barcos. Bastou-lhe apenas a
poesia em socorro para vencer a Morte.
Em grego, “Eurídice” não
é apenas um nome próprio, o nome de uma pessoa. Na “Sabedoria dos Mistérios”,
Eurídice é um dos nomes da alma. É um paradoxo a união dos termos “sabedoria” e
“mistério”. A filosofia acadêmica separou esses termos, os fez inimigos. Sabedoria,
propala o acadêmico, é o que desfaz todo mistério. A razão é loquaz e
calculadora. É discursando teoricamente , ou matematizando quantitativamente,
que a razão crê vencer o mistério.
“Mistério” e
“místico”têm uma raiz comum: “mys”, que
significa “fechar a boca”. Não se trata
apenas de fazer silêncio. Os estoicos diziam que é mais fácil fechar a boca
para que nela não entre alimento ou bebida em excesso do que fechá-la para
impedir que por ela saia a palavra incauta. Espinosa ensinava, por sua vez, que muitos reis sabem controlar, mandando, em
legiões; porém , não são poucos os reis que perdem seus reinos por não saberem
mandar nas palavras que saem de suas bocas...
“Mys” significa fechar a
boca que apenas tagarela, que tão somente emite opinião. O mítico fecha essa
boca reativa, para assim desejar abrir outra boca . Esta usará também as
palavras, mas não dirá apenas palavras no que dirá. Os místicos também fecham
aquela boca prosaica para a boca que canta possa cantar.
Orfeu é o iniciador desse
canto místico. Ele cantava porque queria
dessa forma expressar seu afeto por Eurídice, para que esta também o fosse. É
para a alma que se canta, e é tendo uma que se pode cantar.
Quando Eurídice , morta,
vai ao Hades, Orfeu para de cantar. Mas
o poeta não se resigna: ele resolve ir até onde nunca foram antesos homens, tampouco os deuses. Ele decide ir
ao Hades, ao Inferno. O poeta tem a coragem de ir à morte buscar sua vida que
aquela aprisionou.
Diferentemente do “rio de
Heráclito”, que não tem começo ou fim, e nele se entra apenas pelo meio, pelo
fluxo,pelas margens, o rio que leva ao Hades nasce aqui, no tempo, e morre às
portas do Hades: ele tem apenas um sentido, sempre vai e nunca volta.
Quando chega ao Hades, o
poeta vê que nesse lugar há apenas uma noite absoluta. Nesse lugar escuro sua
Eurídice vivia como sombra. O escuro nada tem de mistério.Mistério quem tem éa palavra que canta . Não é a morte omistério, omistério é a vida.
Então, em meio àquele
escuro, o poeta começa a cantar. Ninguém sabe ao certo o que Orfeu cantava. Talvez o poeta
cantasseo que os autênticos poetas
sempre cantam, de tal modo que é ouvindo um Cartola ou um Noel que podemos ,
através deles, ouvir o que cantava Orfeu.
É cantando, e não
chorando ou lamentando, que o poeta reencontra Eurídice, sua alma. Se lágrimas
ou dor existem no poeta, são lágrimas e dor choradas e sentidas também pelas
palavras, de tal modo que mesmos tais coisas o poeta transforma em canto.
Hades, o deus daquele
lugar, concede então ao poeta o direito de levar Eurídice de volta. Hades
somente disse uma coisa, que não era bem uma ordem, era um sábio conselho:
“você vai à frente, Eurídice irá imediatamente atrás de você. Não se vire para
olhar para Eurídice enquanto não estiverem totalmente fora daqui.”
O poeta então começou seu
retorno ao mundo dos vivos, com sua alma atrás de si. No entanto, inseguro e
querendo conferir se Eurídice estava de fato ali, o poeta olha para trás....Ele
soube então que Eurídice ali estava, porém a alma sucumbiu a esse saber que
queria objetificá-la. Ela se objetifica, vira coisa palpável: uma estátua de
sal que, no entanto, se desmorona.
Tudo que obtemos mediante
uma arte, e não por herança ou aquisição, tal realidade existe apenas por conta
de uma graça, de uma espontaneidade, que
depende mais de nós mesmos do que das coisas externas. Assim, tais realidades
lúdico-poéticas, que é onde vive a alma, logo desaparecem e morrem se quisermos
provar sua existência por objetificantes aferições.
Há um conto russo no qual
o amante, ainda deitado na cama pela manhã, vê a amada sentada diante da
penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção . Ela apenas se
olha, não se julga ou se mede , tampouco se compara a alguém que não esteja
ali, que lhe fosse mais bela ou mais feliz. Ela está plenamente ali, naqueles
gestos daquele corpo, não sendo apenas um corpo, porém. O amante fica
paralisado contemplando...A amada se percebe olhada, se vira e, assustada,
pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que fazia. Ele então lhe pede:
“Repete o que você estava fazendo!...” , “Mas o que eu estava fazendo?”, “Você
estava se penteando, se olhando, cantarolando...”. “Era assim que eu estava
fazendo?”, tenta a amada repetir o que acontecera. “Não, não é assim que era...”,
diz o amante. Por mais que a amada tentasse, ela não conseguia repetir , de
forma programada, o que fizera de forma espontânea. Ela estava vivendo...
Ele percebeu então que
vira o que os religiosos chamam de “graça”, uma espontaneidade que não explica
por outra coisa senão por si mesma, como uma dádiva idêntica à própria
existência que vivemos, sem que haja uma separação ou hiato entre o que vivemos
e o que sentimos e pensamos. A graça
acontece não quando a gente quer, não podemos exigir que recebamos o que
somente podemos receber por dádiva e graça. E aquilo que assim recebemos sempre
se parece com nada.
Não é pelo querer que se alcança esse estado.
O querer nos afasta dele. Quando vemos a presença da graça, quando somos sua
presença, achamos o que dizer cantarolando, como o fizeram Orfeu, Noel,
Cartola.
“Poesia. Acredite na poesia e viva.
E viva ela. Morra por ela se você
se liga, mas por favor, não traia.
O poeta que trai sua poesia é um
infeliz completo e morto.
Resista, criatura.”
(Torquato Neto)
O discurso não verbal das imagens às
vezes revela o que o discurso verbal
tenta escamotear. A logomarca desse governo é o melhor exemplo. Há nela um Brasil
escrito todo em “branco” , sem o colorido multicultural e
étnico de logomarcas anteriores , revelando a intenção elitista, “Casagrande”, desse governo. A esfera azul não é mais a do
céu que nos cobre , não é um azul celeste, mas um azul metálico a representar o peso maciço e desumano de uma
Ordem e Progresso colocados acima do
pais, e não como partes dele. E tal esfera metálica projeta ainda
uma sinistra sombra... Na bandeira brasileira não há sombra , mas nessa
logomarca, como em Brasília, há uma sombra sinistra .Outro detalhe: o corpo
esférico encobre, como a querer negá-la, a vogal de som mais aberto e colorido que existe no alfabeto, a
vogal “a”, que também é a mais feminina das letras, pois indica o gênero
feminino na terminação das palavras. O Brasil não está de pé, ele está meio
caído, como se a bola de ferro o impedisse de levantar-se. Na logomarca atual excluíram o verde , fato que revela o que esse
governo pensa acerca da floresta onde vivem os índios.
( logomarcas anteriores expressam projeto diferente de país):
Sinais dos tempos: achei esse livro
um dia desses na lata de lixo perto de casa. Eu o vi porque, antes, reparei em
um senhor morador de rua que revirava a lata em busca de coisas que ainda podiam
valer algo. Quando ele saiu, fui também ali salvar do lixo a
Tolerância. Quando vi o livro, lembrei de um verso de Manoel: “O que é
verdadeiramente novo nunca vira sucata”, pois a Tolerância estava junto a
aparelhos e coisas que um dia já foram novos , e agora eram apenas sucata.
Mas nunca pode ser sucata a Tolerância. Ela estava muito machucada . Levei-a
para casa e a pus perto da janela para secar e curar. As folhas estavam quase
dissolvendo, porém não eram as folhas que eu queria salvar, mas outra coisa. Ab-soluto:
“o que não é soluto, o que não se dissolve”. Mesmo que todos os livros como esse
fossem jogados fora, seriam dissolvidos papéis e tintas, mas não a Ideia de Tolerância,
como absoluto ético e político, enquanto
ela viver na alma , na palavra e ação de quem não a deixar “virar sucata”. A
Tolerância está viva e bem: a luz do sol faz milagres...
Se
estivesse vivo, Manoel de Barros completaria 100 anos em 2016. Mais precisamente, no dia 19 de dezembro. Esse
número tão expressivo parece contrastar com a imagem que o poeta imprimiu à sua
obra. Não são as datas e a passagem do tempo que o interessam, mas “as origens
que renovam”[1].
Quanto mais o tempo passa, mais a obra de Manoel de Barros parece nos encantar
como seus inauguramentos, seus exercícios de ser criança: “Quem é
quando criança a natureza nos mistura
com suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que
eu não gostasse de botar data na existência”[2].
Este
livro nasceu de evento-homenagem ao poeta acontecido em outubro de 2016, na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tal como no evento, quisemos
fazer um livro-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo filósofos, poetas,
pesquisadores, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho
para a invenção de ideias. Manoel foi para nós um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões
idênticas ou semelhantes, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde
não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer
"nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando. O intercessor-Manoel
nos colocou em estado de embrião, como forma
em rascunho, no limite de nós mesmos, desabrindo-nos. Somente dessa maneira
pudemos, com Manoel, ousar um “afloramento de falas”.
Os
artigos aqui presentes são testemunhos desse pôr-se em rascunho. Apenas assim, deslimitados, podemos tentar dizer,
sendo muitos, o que Manoel disse sendo único.
[1] Poema “Aprendimentos” , Memórias inventadas – as infâncias de Manoel
de Barros. São Paulo: Editora Planeta, 2010, p. 109.
[2]Manoel de Barros, Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros,
p. 113.
Uma ciência barroca da vida, a microbiologia, afirma existirem duas dimensões nos processos vitais: o germen e o soma. O germen é mais do que a mera semente , e tampouco deve ser identificado com o código genético. O germen não é a semente, mas o que faz a semente germinar. Porém ele também não é a árvore, ele é o que faz uma árvore brotar de uma semente. O germen está entre a semente e a árvore: é o germen que faz, na árvore pronta, ela produzir flores, frutos e sementes.O germen é uma singularidade, uma potência, um ritmo. O germen nunca é um ponto,ele é um dinamismo: ato de germinar. Não é apenas na semente que há coisas germinando: na árvore também sempre há coisas a germinar.Não é apenas o feto que germina, no homem adulto também germinam ideias, desejos, imaginações, ações: através destes e destas, o próprio homem germina, indo além de si mesmo, de sua forma, de seu tamanho.
Em grego, "soma" é o termo correspondente a "corpo".O soma, o corpo, é sempre o resultado da atividade de um germen. Os corpos podem ser medidos, mensurados, ao passo que os germens se medem por aquilo que eles produzem.As doenças são psicossomáticas, mas a salut é sempre produção de um germen.
A diferença entre germen e soma também habita a arte.As artes germinativas pressupõem a duração, ao passo que as artes somáticas dependem da extensão e suas dimensões.A dança, o canto e a música são artes germinais por excelência; a pintura, a escultura e arquitetura são artes somáticas.O realismo é sempre somático, mas intensas, expressionistas, são as artes germinativas.As artes somáticas impõem um limite; as artes germinativas, como a própria vida, afirmam e expressam sempre um deslimite.O cinema atesta que em todo soma há um germen que o tornou possível, dado que os fotogramas são o corpo, o soma, do germen da luz.A poesia tem uma origem germinal, a despeito de toda redução somática concretista ao corpo da letra ou ao do som.A lei é soma, mas a justiça é sempre germinativa: nasce dela mesma, e não das circunstâncias.Soma é a família, porém germen é o amor.Em descargas somáticas se consuma o prazer, mas o germen do desejo sempre brota de si mesmo.O tempo cronológico é a soma, ou o soma, dos dias que se vão; todavia a duração é o germen da eternidade multiplicando cada acontecimento, fazendo-o permanecer.A filosofia possui seu corpo de doutrinas, seu soma de Súmulas e Tratados, contudo germinal é o filosofar.O significante é somático; germinal é o sentido.A posse das coisas pode dar corpo às nossas alegrias, mas o germen da felicidade muitas vezes germina no despossuir-se em generosidade.
( "Lhasa" também é o nome da cidade sagrada dos budistas do Tibet, no alto das montanhas. É considerada a cidade mais perto do céu entre todas as que existem na terra)
No livro Arranjos para assobio,
Manoel de Barros define a si mesmo, e aos poetas feito ele, como um "sabiá com
trevas". Um "sabiá de terreiro", diz ele, que aprendeu a ciscar a
terra. Ele canta, ele voa, mas também sabe, com perseverança espinosista,
ciscar a terra. Isso faz do poeta um artesão, um experimentador, um metafísico - sem deixar de ser poeta.
O poeta é um sabiá com trevas. Ele
não maldiz as trevas, tampouco as demoniza. Pelo canto o poeta inventa um mundo, um cosmos, porém a treva
ainda lhe acompanha, como ao recém nascido a placenta. O poeta é um caosmos :
síntese de caos e cosmos, uma absurdidez . Sua lucidez é olho divinatório umbilicado a um inconsciente cósmico.
Somente sendo sabiá com trevas o poeta
“vê semente germinar e engole céu”, pois “Ninguém é pai de um poema sem
morrer”. Sendo o pai, ele morre, para devir
filho do poema que o inventa outro, “Ninguém”.
Sabiá com trevas, o poeta traz o seu caos, as trevas, feito uma
morte que seu canto venceu. Por isso,essa treva não é como a de um
túmulo ou caverna, mais parece a treva de um útero , seja o de uma fêmea ou o
de um monturo, pois começa na treva todo germinar: de gente, de planta, de
bicho, de poema. O poeta é a aurora da noite que ele também é.
“Cada ser vivo existe dentro de seu mundo próprio” . Esse enunciado é do etólogo Jacob von Uexküll. O mundo próprio de um ser vivo não se explica apenas por propriedades físicas ou geográficas. O mundo próprio de um passarinho, por exemplo, inclui o território que ele deseja constituir, e este território já existe no desejo que o deseja, antes de o passarinho o constituir de fato como porção de espaço e parte da floresta. O mundo próprio é dele tanto quanto ele é do mundo próprio. Sem um mundo próprio a habitar seu desejo , um passarinho definha, para de cantar e nem mesmo pode voar, a não ser para fugir dos passarinhos que já possuem um mundo próprio. Não basta ter o mundo próprio como forma em rascunho a viver dentro do desejo que o vislumbra, é preciso também coragem e afirmação para efetuar um mundo próprio , pois efetuar um mundo próprio é efetuar a si mesmo, compondo-se com o espaço, conquistando para si um horizonte. Pois somente este, e não cercas (físicas ou simbólicas), deve ser o englobante de nosso chão.Somente a partir de um mundo próprio podemos nos horizontar. Do contrário, teremos apenas um discurso escapista, de fuga do mundo, niilista.
O mundo próprio não é um círculo ou bolha, pois essas imagens são portadoras de limites. Sabemos o que é um círculo porque o vemos de fora e o distinguimos de outras figuras geométricas, como o triângulo ou o quadrado. O círculo possui limites além dos quais a geometria não acaba, vez que ela se expressa ainda na existência de outras figuras. Mas o mundo próprio de um ser vivo é tal que , para ele, não existe outra coisa.
O mundo próprio de um ser vivo é feito de limiares: ele é um horizonte que sempre recua, além do qual um ser vivo não pode ultrapassar , pois marca os limites de seu conhecimento. Não se trata de um idealismo ou subjetivismo, dado que no mundo próprio há um mundo : o mundo próprio é um mundo, ele é o mundo dentro do qual encontramos um mundo subjetivo e objetivo, um dentro e um fora, um ser que percebe e um ser percebido. O mundo próprio vai em duas direções: para dentro e para fora, e é sempre no meio que ele se encontra mais vivo, como relação. Os extremos de um mundo próprio são indetermináveis, deslimitados, dado que coincidem, em um dos extremos , com o intangível mundo psíquico e , de outro, com um horizonte sempre aberto. O mundo próprio existe fora de um aparato psíquico, e o engloba. Ao mesmo tempo, o mundo próprio não existe sem um aparato psíquico que o apreenda como a existência de um fora.
Vejamos o caso de um carrapato, um simples carrapato. Como todo ser vivo, ele vive em um mundo próprio. Seus aparatos sensórios são voltados para fora. Eles buscam signos. O aparato sensório do carrapato torna determinados acontecimentos signos para ele. Esses acontecimentos o afetam. É por intermédio desses afetos que o carrapato forma ideias do mundo que o cerca, para assim agir sobre ele. O mundo próprio é o horizonte do poder de agir de um ser vivo.
Conforme nos ensinava Cláudio Ulpiano em suas belíssimas aulas ( http://claudioulpiano.org.br/), o carrapato possui três afetos. Seu mundo gira em torno desses três afetos. Parecem poucos? Mas o mundo do avarento gira em torno de apenas um afeto: sua avareza; o mundo do pretensioso gravita ao redor de apenas um afeto: a pretensão.... Poucos afetos governam a vida dos homens. Pois bem, o carrapato possui três afetos: pela luz solar, pelo odor do suor de um mamífero e pelo calor do sangue . O carrapato é cego. Ou melhor, “cegueira” é uma noção que só tem sentido em um mundo próprio no qual os seres tenham visão. No mundo próprio do carrapato a visão não tem sentido, não existe. Nenhum carrapato conhece o que é a visão. Logo, nenhum carrapato sente que lhe falta o que não existe para ele. A falta não faz parte de um mundo próprio. Somente quando perdemos nosso mundo próprio, ou quando este se fragiliza, somente assim é que a "falta" vem nos assombrar...
O afeto pela luz solar conduz o carrapato a buscar sempre subir. Ele escala o que puder escalar, sobretudo paredes e árvores. Ele escala seguindo a orientação da verticalidade. Ele sobe e espera. Ele espera que o objeto de seu segundo afeto se lhe apresente. Um carrapato é capaz de ficar anos à espera. Enquanto espera, ele entra em um estado que para nós se assemelharia à morte. Seu metabolismo se aproxima de zero. Tudo nele quase cessa de se mover. O único fio que o liga à vida é seu mundo próprio virtualmente envolvido em seus afetos, na profundeza da noite de sua vida psíquica.
É o odor do suor de um animal que se aproxima que ressuscita o carrapato daquela morte mimetizada. O odor do mamífero se anuncia como a boa nova advinda do horizonte de seu mundo próprio. O carrapato esperava sem esperanças, pois há um quê de dúvida em toda esperança , ao passo que no carrapato a espera era sem hesitações ou dúvidas acerca da vinda do esperado: essa vinda não era especulada , ela era virtualmente sentida na certeza instintiva de uma força que desconhece derrota antecipada. Sem ter olhos, o carrapato sabe da presença de um mamífero pelo odor de seu suor, sentido a dezenas de metros. Quando o mamífero passa, alheio ao desejo vivo que despertou, o carrapato se solta no ar, e cai sobre o objeto de sua paciente espera. Sem possuir olhos, ele sabe as distâncias, as velocidades e o espaço que o separa do objeto de seu querer. Ao cair sobre a pele do mamífero, o carrapato se finca, se instala, tudo nele já sabe o que fazer. Ele sente o fluxo de sangue quente a correr abaixo da pele do animal. Ele então perfura, se enfurna e se rejubila com a parte líquida de outro ser. Após sorver o correspondente a três vezes o seu peso, o carrapato se solta, repleto, intumescido de vida. Nada mais existe para ele na floresta imensa. Os pássaros, as flores, os regatos, o céu....nada disso para ele existe. Nada disso para ele é objetivo, nada disso constitui “objeto para sua percepção”. Como um místico unido ao objeto de seu êxtase, o carrapato já pode morrer, e morre.
O que vale para o carrapato vale igualmente para todos os seres, inclusive o homem. Neste, porém, o mundo próprio pode ser ampliado ao infinito pela linguagem, desde que não seja a linguagem utilitária dos homens-carrapatos.... É o afeto que determina a amplitude de um mundo próprio, não o intelecto ou meras posses. O tamanho do mundo próprio de um homem tem a amplitude de seus afetos : se é o infinito que o afeta, e do infinito não pode haver posse, tal será a amplitude de seu mundo próprio. O infinito não é um continente vazio e distante que se contempla em silêncio; o infinito é ele e tudo aquilo que nele vive, por mais ínfimo que seja. O mundo próprio do poeta é um deslimite nascido de sua transfiguração : “O poeta diz eu-te-amo a todas as coisas (Manoel de Barros).”
A filosofia é Grega, isto todos sabem. Todavia, o filósofo vem de uma zona de vizinhança entre o ocidente e o oriente. O filósofo vem das bordas do mundo grego. Se a filosofia tem seu nascimento em Atenas, constituindo assim o primeiro capítulo de sua história, o surgimento do filósofo nos mostra a insuficiência da história da filosofia para compreender essa questão, uma vez que o filósofo vem de fora dessa história: “os filósofos são estrangeiros, mas a filosofia é grega” (DELEUZE e GUATTARI,O que é a filosofia?, p.116). A relação da filosofia com o filósofo pede uma geofilosofia.
O filósofo não habita exatamente uma fronteira, ele habita limiares. O ser que habita limiares recebe o nome de daimon [1] . Na Grécia, o daimon possuía asas[2]. Eram asas de borboleta, e não de pássaro. Os pássaros já nascem com asas, ao passo que o nascer das asas da borboleta foi precedido por uma metamorfose. As asas do daimon são os atributos espinosistas de um sujeito larvar. O conceito sobrevoa o plano de imanência com asas que são a expressão de uma metamorfose, de uma anexatidão.O conceito também tem asas ( O que é a filosofia?, p 58).
O daimon é o habitante de um espaço liso que só se deixar habitar como nômade. O nômade não é exatamente quem muito se movimenta de lugar a lugar. Como diz Manoel de Barros, o nômade é um Andarilho, um Andaleço que "abastece de pernas as distâncias" e "mora debaixo do próprio chapéu". O filósofo mora debaixo do conceito que ele cria: o conceito “é vagabundo, não-discursivo, em deslocamento sobre um plano de imanência” ( O que é a filosofia?, p. 187).
É na Grécia do século V a.C que o filósofo encontrará condições favoráveis ao exercício do pensamento. Trata-se de uma sociedade movida pelo gosto da opinião e pela associação, da qual emergirá o afeto da amizade; por isso mesmo, é nessa sociedade que também há o gosto por desfazer a associação, pela rivalidade. O filósofo chega a Atenas como estrangeiro. Se a filosofia tem sua história, o filósofo tem apenas devir. É o filósofo que faz a filosofia entrar em um devir-estrangeiro, de tal modo que ela, a filosofia, entra em relação com a não-filosofia: inventa mais do que amigos, inventa intercessores.
Deleuze e Guattari afirmam que faz parte da compreensão de um conceito filosófico a sua compreensão não-conceitual: os conceitos não remetem apenas a outros conceitos, “os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não-conceitual. (...) O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos não-filósofos” (O que é a filosofia?, p. 57). Para compreendermos adequadamente toda a potência que um conceito filosófico possui, é necessário que saibamos ter igualmente uma compreensão não-conceitual do conceito. Essa compreensão não-conceitual implica que saibamos compreendê-lo também politicamente, etologicamente, clinicamente, eticamente, enfim, poeticamente. Essa compreensão heterogenética não é exterior ao conceito, uma vez que faz parte da compreensão do conceito o seu devir não-conceitual, que é o seu devir-estrangeiro, a sua geofilosofia.
Essa não-filosofia não é o senso comum ou o bom senso. O senso comum se caracteriza pelo predomínio da opinião e da recognição (ULPIANO, Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento,2013, p.77). A filosofia dogmática parece romper com o senso comum em relação aos conteúdos deste, mas não quanto à forma: esta reaparece sob veste filosófica com o predomínio de um sujeito suposto universal e de um objeto pretendido geral. Segundo Deleuze e Guattari, quando a filosofia rompe de fato com o senso comum, com seu conteúdo e com sua forma, ela o faz por instauração de um território e de uma Terra. Ao invés de um Sujeito e um Objeto, um território e uma Terra, uma geofilosofia, enfim.
O ser estrangeiro do filósofo não é em relação a um território no qual ele teria vivido e nascido de fato, e que seria diferente deste no qual ele está. O ser estrangeiro do filósofo é definido em sua relação de direito com a Terra. Esta é um natal, não um inato. É em relação com a Terra que o filósofo se torna um estrangeiro de direito, estrangeiro inclusive ao território acadêmico da filosofia. O ser estrangeiro do filósofo o torna um Outsider (DELEUZE; GUATTARI, Mil platôs, 1980): ele vive o invivível: a "Pura Reserva" ( O que é a filosofia?, p. 202).A reserva não é a dele, não é uma reserva por oposição a uma extroversão de opiniões. A reserva em questão, a Pura Reserva, é a do Acontecimento que o filósofo experimenta viver: o Acontecimento é sempre reserva de si mesmo, uma vez que ele não se esgota nas atualizações do vivido: “O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir” ( O que é a filosofia?, p. 46). O por vir não é o futuro do tempo cronológico, ele não é o prolongamento do presente no qual somos, mas no qual também deixamos de ser, uma vez que o presente passa; o por vir é o tempo da metamorfose.
[1] Na Grécia antiga, "Daimon" era a divindade que não tinha casa no "Céu", como possuíam os deuses olímpicos. Tampouco morava o Daimon no chão, entre os homens. O Daimon habitava o espaço entre o Céu e a terra, um espaço de travessias. Mas não era uma travessia como aquela que fazemos quando cruzamos uma ponte, uma rua ou mesmo uma fronteira que separa dois países. O espaço de travessia no qual habita o Daimon é aquele que liga o tempo à eternidade, o que nasce e morre ao que se imortaliza. Contudo, entre o tempo e a eternidade não existe uma fronteira determinada, nem se tratava de morrer para alcançar o Céu. Era nesta vida que se alcançava ou vislumbrava aquela esfera divina, desde que nos guiasse um Daimon. O Daimon não habita o Céu ou a terra, ele vive nessa zona que somente se pode atravessar em metamorfose. "Metamorfose" não é a mesma coisa que "transformação". Em ambos os termos existe a palavra grega "morfé", que significa "forma".Trans-formar significa: "passar de uma forma à outra" ( esse é o princípio, por exemplo, da reencarnação pitagórica).Meta-morfé, por sua vez, tem o sentido de "ir além da forma, do limite". Sozinho, o homem não consegue ir além de sua forma, de sua medida. Daí a necessidade de ele encontrar um Daimon, se o seu desejo for o de ir além de si mesmo. Existiam vários Daimons. Nem todos sabiam o caminho....Alguns eram apenas promessa.Outros, fingiam levar ao Céu , quando na verdade faziam subir muito alto com a intenção de aumentarem o tamanho da queda, como aquela que seduziu Ícaro.De todos os Daimons, o mais buscado, porém o mais difícil de achar, era exatamente Eros. Em latim, o Amor. Em grego, "Eros" significa também "asas", mas asas de borboleta. Em latim, "Amor" significa : "não-morte", pois o "a" tem valor de negação, tal como em "afasia", "sem fala". Para os gregos, então, Eros era o agente de uma metamorfose propiciadora de uma experiência de não-morte.Fora dele, sem sua mão a conduzir, tudo é morte. [2] Desenvolvo esse tema no artigo: Espinosa, Deleuze e Guattari: o desejo como metamorfose, Revista Alegrar, DEZ/2012, nº 10.
Quem deseja tecer deve partir de uma
“urdidura”. Não importa se são tecidos, textos, ideias ou ações que desejamos
tecer: é sempre de uma urdidura que se parte. “Urdidura” vem de “ordo”,
“ordem”. Como ensina Espinosa em sua “Ética”: em tudo há “ordo”, mas “ordo” não
é tudo.
Toda urdidura é feita de fios
dispostos retamente, como um destino, e disso já sabiam as mitológicas Moiras,
que urdiam o destino dos homens. Mas apenas uma urdidura não forma um tecido de
vida: é preciso a “trama”.
A trama nasce de um fio que passa
transversalmente pela urdidura: a trama acrescenta ao férreo destino a invenção
de fugas, de “linhas de fuga”.
Toda urdidura é sempre igual: reta e
determinada. Porém, há múltiplas formas de se fiar uma trama. Não há trama sem
uma urdidura , isso é certo; porém não há tecido , de pano ou social, sem a
invenção de tramas. Da “Moira Social” que o urdiu louco, Arthur Bispo do
Rosário reencontrou sua transversal, e assim tramou sua lucidez como fuga da
normalidade reta dos que pensam igual. Embora toda trama parta de uma urdidura,
nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.
A gramática é urdidura, porém trama é
a poesia; a lógica é urdidura, mas pensar é trama; família é urdidura, amor é
trama; Estado é urdidura, sociedade é trama; código jurídico é urdidura, justiça
é trama; sistema político é urdidura, democracia é trama.
Em meio a tanta notícia ruim, uma
notícia inspiradora: a reabertura da Biblioteca Parque. O nome original dessa
biblioteca era Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro. Seu criador foi
o educador Darcy Ribeiro. Não por acaso, a biblioteca foi construída próximo à
Central do Brasil, no caminho do trabalhador que pegava o trem. Eu fazia o antigo
2º grau quando ela inaugurou . Eu pegava o trem em Honório Gurgel ( onde
morava), descia na Central e passava o dia na biblioteca. Lá assisti pela
primeira vez filmes de Gláuber Rocha, Godard, Bergman , Kurosawa .... Havia uma
excelente videoteca. Foi lá também que conheci Platão, Nietzsche, Marx,
Marcuse, Maiakovski, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa...e tantos outros. Com os
empréstimos de livro que fazia, esse povo de pensadores saía da biblioteca e ia
comigo para Honório, junto com o povo simples, de trem.
(enquanto ela esteve fechada, e lutando pela sua reabertura,
crianças faziam manifestações na entrada da biblioteca)
O homem mais sábio da Grécia não foi
Sócrates, Platão ou Aristóteles. O maior sábio foi Tirésias, o “cego”. Certa vez, quando
ainda enxergava como todo mundo,Tirésias resolveu subir o rio que passava
perto de sua casa, pois nasceu-lhe o
desejo de ver a fonte. Somente indo contra a corrente se pode achar
nascentes, de rio ou de ideias . A fonte nunca vive no “acostumado” , no
“mesmal”. À medida em que avançava, Tirésias via paisagens e seres nunca antes
vistos, dos quais desconhecia o nome e o rosto.
Enquanto prosseguia, não via trilhas ou pegadas. Hesitou, quase
abortando sua “linha de fuga”. Mas prosseguiu, perseverante.Então , quando
alcançou o sonhado “minadouro” ,
Tirésias viu Atena a banhar-se na fonte.
Ele viu a deusa da sabedoria nua, despida
da veste dos livros e livre das acadêmicas teorias . Pois
a autêntica sabedoria é fonte que renova a si mesma , para que em
nós não seque a vida. Quando a sabedoria
nua se mostra, revela-se ser poesia.
“Desabriu” em Tirésias uma “visão
fontana” , diria Manoel,ao ver “a
origem que renova”.Tal visão
parece“cegueira”, “ignorãça”, aos olhos
de quem nunca viu Atena “sem o roupão”, nua.
Sou água que corre entre pedras -
liberdade caça jeito.
Manoel de Barros
Virou lugar
comum falar em “amores líquidos”, “amizades líquidas” e até mesmo em “ensino líquido”...
Nostálgicos de "valores sólidos", alguns atacam a
"volubilidade" desses nossos dias, e bradam por uma ordem rígida a
qualquer custo.
Porém, esse
“líquido volúvel” nada tem a ver com a água manoelina enquanto fluxo
da "liberdade caçando jeito" . Tal fluxo é fluido, mas não é sem força
ou volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade,
andarilho, mas sabe aonde ir, “horizontando-se”. Nem todo líquido é fluxo. Os
líquidos se amoldam à forma de seus recipientes, e assim são “capturados”;os
fluxos ou inventam seus caminhos ou secam e morrem.
Em “O guardador
de águas”, Manoel diz que “guarda águas”. Guardar também é cuidar. O poeta
cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é o oposto de
construir represas, muros, gramáticas, ordens rígidas. Não se pode "passar
régua" nos fluxos. Só se pode guardar fluxos sendo também um. O rio
amazonas nasceu da geleira, mas da geleira devindo fluxo, correndo, fluindo. Os
fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos,
"horizontados"; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente , o
coração ou a pólis democrática.
O sólido talvez
nada mais seja do que um fluxo que enrijeceu até virar uma identidade que não
aceita a diferença; o líquido talvez seja um fluxo que perdeu sua consistência,
e vai tanto para lá como para cá, como as águas do mar sob a ação do vento.
Eu tinha uns 17 anos, e fui eu mesmo lavar , certo dia, uma calça jeans minha. Na época, existia apenas
calça jeans escura, padrão. Para secá-la, usei o varal.Horas depois, devido ao
vento, encontrei a calça caída com uma das pernas em uma bacia . Recoloquei a
calça no varal. Na manhã seguinte, vi que não era apenas água e sabão o líquido
da bacia, havia também água sanitária, pois a perna que imergiu estava completamente
desbotada! Ao ver o acontecido, “desabriu” em mim um olhar novo. Comandado por
ele, mergulhei a calça inteira na bacia com água sanitária...
No dia seguinte, ficou pronta a obra: nunca antes vi uma calça
parecida. Era mais do que uma calça
agora : era arte nascida da vida. Ao pôr a calça, senti que vestia mais do que
meu corpo , vestia também minha liberdade. Na minha inocência, porém, imaginei que todos amariam minha re-invenção,
e aprovariam me ver vestindo
criatividade. Mas quando saí à rua fui fuzilado pelo olhar julgador dos que se
vestem com o uniformede um viver
homogeneizado, sem arte. Tive que tomar ali a decisão mais importante da minha
vida : ou voltar para casa e vestir calça
e alma “mesmal e acostumada”, ou afirmar
minha diferença enfim vestida e conquistada.
Chegando ao colégio, um amigo do
peito gostou daquele poema que inventei sob a forma de calça. Ele quis saber como fiz aquela subversão , para fazer também a sua. E assim eu já não estava
mais sozinho.
No poema “Lacraia”, Manoel de Barros descreve uma
“peraltagem” que ele cometeu quando criança. A “visão brincativa” do menino
percebeu que uma lacraia lembraum trem:
a cabeça parece uma locomotiva, os gomos se assemelham a vagões. Então, o
menino resolveu “descarrilar” a lacraia : a desmembrou. Mal deu uns passos, o
menino resolveuolhar para trás...”O que
é a natureza! Eu não estava preparado para ver aquilo”, confessa o poeta. Pois
a cabeça da lacraia olhou para as partes, e estas começaram a se mexer ,
procurando-se. Elas queriam refazer o ser que eram , “emendando-se”;e esse desejo
de refazer-se “também é amor”, afirma o poeta. Não era um templo ,porém naquele pedaço da natureza ,
expressando-se naquelesimples ser do
chão, agia “a força de Deus”, diz o poeta, sem precisar de alguém fanaticamente
prometendo milagres em nome Dele.
( o poeta grafitado em múltiplas cores em um muro da cidade)