É somente no buraco negro da
consciência e da paixão subjetivas que
se descobrirão as partículas
capturadas, sufocadas, transformadas, que é
preciso relançar para um amor
vivo, não subjetivo, no qual cada um se
conecte com os espaços
desconhecidos do outro.
Deleuze & Guattari
Dizem que o sol é “um incêndio acima
de nossas cabeças”. Porém , todo incêndio começa porque, antes, havia a existência
de algo prévio que não estava incendiado: a madeira da árvore, o capim do pasto
, a folha de papel, o barbante da vela... Essas coisas somente podem ser
incendiadas e pegar fogo porque foram criadas e têm existência própria antes de
um fogo, por acidente ou não, vir consumir suas vidas. Porém, o sol nunca fora
outra coisa do que o fogo, a explosão, a energia. O sol não é um planeta que
pegou fogo. Ele é plenamente fogo, sempre o fora. O sol não é o fogo a destruir
outra coisa, ele é a existência do fogo como energia pura a fluir de si mesma. O
sol é a unidade da destruição e da criação. O sol nos mostra que destruir e
criar são o mesmo, quando se trata da vida pura. Tudo o que tem vida é uma
unidade assim.
O que chamamos de morte não é destruição
da vida, mas o apagar-se de uma vida
enquanto destruição umbilicada à criação. A vida destrói criando-se, cria-se destruindo. O sol
destrói a si mesmo para criar a si mesmo como irradiação de si mesmo, e é assim
que ele dá vida a tudo, e não apenas a si.
Tudo o que é assim não tem forma ou
limite, e irradia-se para longe de si mesmo, tornando-se outra coisa no mais distante, como
o poeta existindo em seu poema. O sol irradiado torna-se fruto, homem, oceano e até mesmo
gelo. A criação não antecede a destruição, tampouco a destruição destrói tudo
até ficar o nada.
Além do
nosso sol há as galáxias, que também são a unidade de destruição e criação. Talvez
os buracos negros sejam a disjunção dessa unidade binária destruição-criação.
Os buracos negros nada irradiam, eles apenas sugam, sorvem as energias. Tal
como eles, assim são ,nos homens , os seus egos. Os que generosamente criam não
têm um ego, mas um sol onde deveria haver um coração: “Para brilhar e ter luz própria
é preciso ter caos dentro de si” (Nietzsche).
Manoel de Barros Nossos cicerones são aves cantando. Cartola
Os canários que nasceram e permanecem em gaiolas vivem mais a cantar
do que os canários que vieram ao mundo livres e vivem a voar .
Os canários que nasceram livres exercem sua liberdade em
mais ações do que no mero cantar. Eles cantam também, mas igualmente voam, ciscam a
terra, bicam os frutos, enamoram-se, constroem ninhos, criam seus entes e lhes
ensinam a voar.
Os canários que nasceram no cativeiro apenas são livres no
cantar. Nesse canto há uma nostalgia do que nunca viveram. É por isso que eles
necessitam cantar o tempo inteiro. São poetas de gabinete, são filósofos apenas
de livros.
(Flautista Antônio Rocha)
Verso de Manoel de Barros
"Quanto mais um corpo é capaz, em comparação com outros, de
agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, tanto mais a sua mente é
capaz, em comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior
de coisas. E quanto mais as ações
de um corpo dependem apenas dele próprio, tanto mais sua mente é capaz de compreender
distintamente". Espinosa
Manoel de Barros Há sempre andorinhas por onde eu vou. São Francisco de Assis
O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari Nada é mais profundo do que a superfície. Kandinsky
O pensamento não é um poço para ser, como este, profundo. Ser pro-fundo é “ir em direção do fundo”, cada vez mais fechado, abaixo do céu . O pensamento não é um poço, ele é um horizontar-se. Nunca dizemos que um horizonte é profundo, dizemos que tem profundidade, que é o quanto ele tem de espaço aberto à frente, entre a terra e o céu.
Ter profundidade não é ser profundo. Na pintura, a profundidade de um quadro expressa mais do que a terceira dimensão do espaço, ela expressa o horizonte aberto do tempo. Os horizontes têm o máximo de profundidade sem serem profundos.
Os poços teriam profundidade se o seu profundo fosse tão profundo , mas tão profundo que , atravessando o interior da terra, veriam de perto o magma que sai dos vulcões. Mas seria preciso ainda vencer a este Hades e ir além, atravessando os estratos que a história sedimentou, para alcançar a superfície contrária àquela onde inicialmente se escavou: aprofundando nosso ocidente chegaríamos ao oriente, aprofundando nossa noite alcançaríamos nossa manhã, e nosso profundo seria fonte nascendo , como fluxo, em um chão nunca antes por nós pisado. E, como toda fonte, correríamos para o horizonte reencontrado com o máximo de confiança que tivéssemos , multiplicando-nos em todas as direções que inventássemos.
Como
definir Manoel de Barros? Essa pergunta suscita outra: por que querer
defini-lo? Manoel de Barros é definível? Creio que a dificuldade de se
classificar Manoel, pôr nele uma etiqueta, deve-se ao fato de que sua poesia,
como poucas, pouquíssimas, é uma aproximação com as fontes[1].
O próprio Manoel é grato às suas fontes. A fonte é a origem que renova[2]. Ser grato às fontes é devir fonte. A fonte também é uma visão,
uma visão fontana[3].
A visão fontana faz nascimento no ato de ver, pois “é pelo olho que o homem
floresce”.[4] O mundo que os olhos da
lagarta veem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão
porque mudarão, antes, os olhos, diferentes olhos terão florescido.
Há
estudos feitos no âmbito da teoria literária que tentam esquadrinhar a obra do
poeta, buscando afinidades e filiações, simpatias e pertencimentos. Há razão
nesses estudos, não há o que questionar. Porém, basta ler o poeta para perceber
que nele há um estilo ainda não catalogado, ainda não visto, como passarinho
cuja espécie carece ainda de nome. Há em Manoel uma verdez[5],
uma não velhez : a “velhez
não tem embrião”[6]. Para
saber e experimentar essa não velhez basta
lê-lo...Porém, há ainda aqueles que dizem ser Manoel uma fórmula, que há uma
fórmula-Manoel , como se o poeta se repetisse. Reduzem sua poética a algumas
ideias-imagens que se repetem. Com isso, parecem querer não achar motivo ou
razão para perdurar, e renovar, tanto encantamento que muitos encontram em Manoel,
sejam eruditos ou não, letrados ou gente simples, jovens, crianças ou idosos.
Contudo,
já li não sei quantas vezes um mesmo poema do Manoel. Cada vez que o leio se
produz em mim um empoemamento completamente diferente do empoemamento que
tivera ao lê-lo anteriormente. É sobre este verbo que é preciso ter a atenção:
o empoemar. A obra de Manoel é uma empoética. Não se lê Manoel sem empoemar-se.
Mas o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? O
mesmo acontece quando se pergunta acerca do que significa o tempo, o infinito,
o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido... Pode-se dar uma resposta que encerre o
problema? Ou ainda: o que significa pensar? Quem se satisfaz com uma resposta
que de-fina, dá fim, a essas questões?
Manoel
traz uma questão ainda mais nova, que talvez sempre permaneça como a prova de
que em seus versos há um “embrião”, desde que em nós também se ache uma verdez.
A novidade manoelina não diz respeito à diferença sempre debatida entre a
poesia e o poético, mas entre o poético e o empoético.
Heidegger
dizia que não se pode introduzir à filosofia[7].Disciplinas como
“Introdução à Filosofia”, segundo ele, afastam os não filósofos da filosofia,
pois os leva a imaginar que a filosofia está apenas nos livros e sistemas que
os filósofos escreveram, supondo que a filosofia se encontra alhures. Assim
considerada, a filosofia se torna uma abstração ou mero exercício de erudição. Não se pode introduzir à filosofia assim como
não se pode introduzir à vida estando alguém já vivo. Somente se poderia
introduzir à vida alguém ainda não nascido. Mas de que maneira alguém ainda não
nascido poderia aprender algo, e ainda mais o que é viver!? Não se pode
introduzir à vida estando alguém já vivo, o que se pode é despertar, pelo
afeto, alguém à vida, intensificando nele o que já está vivo. Afetar não apenas
à própria vida, mas à vida. Quando uma vida se compreende, apreende-se como questão:
mais como pergunta do que como resposta.
Não
se pode introduzir à filosofia porque a filosofia não está lá e a vida aqui; tampouco
é a filosofia a “verdadeira vida” em contraposição à vida ilusória daqueles que
a ignoram. A filosofia é a própria existência, é a vida mesma. A filosofia
assim compreendida não é apenas sistema, doutrinas, conceitos. Ela também é
poesia, no sentido de poiésis, produção. Talvez devêssemos chamar de
“desfilosofia” um filosofar assim, manoelinamente. E por que não seria um filosofar
também o empoemar-se? Um empoemar-se como um (auto)produzir-se.
Quando
Manoel diz que "Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" [8] talvez a ênfase deva ser colocada no “fazer”,
no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, etiquetável, prestes
a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a
poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos,
psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre
múltiplos. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não
do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é
dono daquilo que descreve"[9], diz o poeta.
Acreditamos
que o empoemar-se não se pode ensinar tal como se ensinam fórmulas, receitas,
cartilhas. Não podemos a ele ser “introduzidos” de forma teórica. Empoemar-se é
mais do que mera leitura de versos. Há no empoemar-se uma clínica, uma política
, um (des)filosofar. Não é todo poeta que enseja uma empoética. Não haver em um
criador de versos uma empoética não o faz menos poeta. Mas quando em um poeta
também vive uma empoética, ler seus versos é mais do que ler meros versos:
talvez haja neles, em embrião, ideias filosóficas. Poetas assim são pensadores.
[1] Poema “Fontes”, Memórias inventadas - as infâncias de
Manoel de Barros, p. 147.
[2] “Aprendimentos”, Memórias inventadas. - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo:
Planeta, 2010.
[4] “A volta (voz interior)”,Livro de pré-coisas, p. 68.
[5] “Resta
sempre uma verdez primal em cada palavra”, verso do poema “Pedras
aprendem silêncio nele”, Gramática
expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342.
Segundo
Deleuze e Guattari, os conceitos são criados,
os personagens conceituais são inventados
e o plano de imanência é traçado.
Criar, inventar e traçar são atos: atos da potência. Potência de criação, de
fabulação e de diagramaticalização.
Deleuze e Guattari nos lembram que tais atos são irredutíveis entre si [1].
Por isso, eles são precedidos por uma faculdade que os co-adapta. Esta
faculdade de co-adaptação é a faculdade
do gosto: “um problema, em
ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma questão, mas em
adaptar, co-adaptar, com um ‘gosto’ superior, como faculdade problemática, os elementos
correspondentes em curso de determinação”[2].
A razão traça o plano, a imaginação inventa os
personagens, o entendimento cria os conceitos. Mas antes do criar, do inventar
e do traçar há um gostar
indiscernível do viver a filosofia como questão não apenas teórica, o que
implica também um modo de vida, um
desejo. Nesse gostar como experimentação dos problemas, o conceito ainda está indeterminado, os personagens
ainda restam no limbo, ao passo que o
plano ainda permanece transparente. O
“ainda” como modo intrínseco de uma duração enquanto devir-problema. É dessa faculdade indeterminada, anônima, que nasce
o rigor dos conceitos, bem como os nomes dos personagens: “todo limite é
ilusório, e toda determinação é negação, se não está numa relação imediata com
o indeterminado”[3]. É
esse gostar, inclusive, que nos protege do desgosto que a própria filosofia
pode engendrar naqueles que gostam dela e a vivem, mais do que vivem dela. O
gosto como expressão de uma salut.
Ciência, arte e filosofia enfrentam o caos. A
primeira o enfrenta com um plano de referência, a segunda com um plano de composição,
já a filosofia evoca um plano de imanência. Referência, composição e
consistência: eis as armas, armas da afirmação, pois “só podemos destruir sendo
criadores”, lembra-nos Nietzsche. O caos
não é ausência de determinação, mas velocidade com que as coisas, não importa
quais, mal se esboçam e já morrem, mal saem do útero e já vão sumir no túmulo,
desconhecendo o que é ficar de pé: “O que caracteriza o caos não é exatamente a
ausência de determinação do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam
e desaparecem”[4]. O
caos mental, como flutuatio animi, é
a passagem do útero ao túmulo dentro da mente e, não raro, a indistinção dos
dois. Nem referência, nem consistência, tampouco composição, o caos é a inconsequência[5],
e esta pode ser muito bem determinada.
Antes do criar, do inventar e do traçar há um gostar do qual aqueles atos são a consequência. Espinosa, por exemplo, não define a filosofia
como “philia”, mas como “emendatio do
intelecto” e “salut”: emendatio (ou correção) do instrumento,
o seu perseverante “polimento” ou salut,
daí o aspecto “crítico e clínico” como gosto-potência
que nos livra dos desgostos da potesta.
Se é Nietzsche quem “fundou a geofilosofia” [6],
é Espinosa quem “erigiu o melhor plano
de imanência” [7]. O
erigiu a partir de uma potência anônima, incógnita, um gosto, uma salut como razão contingente.
Deleuze e Guattari advertem:
“qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir o que eles disseram,
ou fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que mudam
necessariamente?”[8].
Antes de tudo, é o gosto pelos problemas que mudam que dão sentido ao devir filosófico:
O que se estabelece no novo não é precisamente o
novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento
forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um
modelo totalmente distinto, numa terra incognita nunca reconhecida , nem reconhecível.[9]
[9] DELEUZE, G. Diferença e repetição, tradução de Luiz Orlandi e Roberto
Machado, Rio de Janeiro, Graal,1988, p. 224.Terra Incognita : atribui-se a Tácito
( séc. I d.C.) a criação desse termo, embora ele esteja esboçado também
em Lucrécio.A Terra Incognita
expressava no pensamento romano a necessidade de existir uma terra inexplorada.
Eles que foram grandes exploradores e conquistadores de terras, acreditavam,
porém, que existia uma Terra Incognita,
inexplorada, desconhecida. E isso não era para eles uma dúvida, mas uma
certeza. As terras conhecidas podiam ser cercadas, povoadas, juridicizadas,
medidas, reconhecidas...Mas a Terra
Incognita somente podia ser imaginada, sentida, pensada, desejada...e nesse
desejo/pensamento que as vislumbrava não podia haver cercas, limitações,
receios, recognições, contratos, potesta,
enfim, a Terra Incognita não podia
ser medida ou conhecida com as lentes e réguas das terras conhecidas. A Terra Incognita, porém, não era um
Eldorado, tal como cobiçaram os colonizadores, tampouco uma Terra Utópica, como
sonharam os renascentistas. A Terra Incognita
era uma heterotopia: um lugar (topos)
diferente de todas as terras conhecidas. Não se a cobiçava por nela haver ouro.
Mesmo porque o ouro , como todo objeto de recognição, pertence a terras exploradas.
- O tempo "por vir" não é o "porvir". “Porvir”
é um verbo substantivado. Ele expressa , infinitivamente, o ato do que está por
vir. Para achar o acontecimento que dá vida ao porvir, é preciso separar o que a gramática juntou, para assim vislumbrar o encontro dissimétrico entre o presente e o que há de vir, como por vir.A razão de ser do porvir se encontra em seu minadouro, que é onde ele nasce. O minadouro do porvir é o agenciamento do verbo “vir” com a
forma preposicionada “por”. O que está por vir não se encontra em uma posição, em um lugar, em um "aqui", uma vez que ele
já vive também no que antecede toda posição, todo "aqui" dado, como pré-posição não dada, mas por criar, por vir. O que está por
vir antecede o mero vir . Quando não compreendemos que o chamado "porvir" nasce do que
está por vir singularmente enquanto acontecimento, acabamos por confundi-lo com o futuro ou com o
amanhã genérico, "acostumado" - diria Manoel. O porvir é a forma infinitiva do ínfimo por vir, pois é do
ínfimo que todo infinitivo nasce, como um horizontar-se dele.
O
por vir não é o futuro de daqui a 10 anos. Tampouco o por vir é o futuro de daqui a um ano, ou um mês, ou um
dia, ou um segundo....Pois anos, horas, dias, segundos... são medições do tempo
cronológico. O por vir não é cronológico: nenhum calendário ou relógio o mostra
ou mede. Ele não é o futuro como dimensão do tempo que vem depois do presente,
assim como amanhã vem depois de hoje.
O
por vir não é o amanhã. Ele vem antes do
amanhã, mas não é o hoje; ele vem depois
do hoje, porém não é o amanhã. Entre o amanhã e o hoje, separando-os e fazendo-os existir,
é nesse intervalo entre-tempos que está o por vir. Do amanhã se pode até mesmo
fazer um museu com mirabolantes tecnologias. Porém, a tecnologia não tem nenhum privilégio para nos mostrar o
por vir. Não é na informática, é na invencionática que o por vir está.
O por vir nunca é o presente. O por vir não
vai começar daqui a um segundo ou um milésimo de segundo. O por vir não começa,
ele também não termina. Quem gosta de apostar corrida para disputar com o outro
precisa de relógios que, do zero, deem o ponto de partida para a competição. É
o tempo de chegada que determinará quem ganhou ou perdeu. Porém, o por vir não
começa, pois ele nunca é um zero, um nada de si mesmo. Para experimentá-lo em
si mesmo somente exercitando a gratuidade, a generosidade e a inocência: ele está mais para o tempo da brincadeira do que para o tempo da disputa. Estamos no dia 31 de dezembro. Já é quase meia-noite. Em breve, virá o ano novo. A vinda deste não anula um tempo por vir que está antes dele e de todos os anos, tenham o número que tenham.Quando o ano novo chega, encontra o que agora somos, mas não o nosso ser por vir que não se mede por anos.
O
por vir não é apenas o vir. Daqui de onde estou vejo o carro a vir, vindo. O carro por vir eu nunca o vejo, apenas o transvejo com olhos de descobrir.O carro por
vir está antes do carro que está vindo, porém ele nunca será um carro
vindo, mas sempre por vir. Não obstante, ele está a caminho: ele está no
horizonte aberto, e é nele, e não no carro vindo, que o meu desejo se
transporta para vir até mim: para me fazer outro eu mesmo, aqui.
Pelo
por vir não se espera. Ninguém espera pelo horizonte. Mas quem vê o horizonte
já se instala nele e assim se orienta, horizontando-se. O por vir não é o
futuro que virá , o por vir é o presente se metamorfoseando em outra coisa que nunca
antes fora presente. E isso no qual o presente se transforma o faz cessar de
passar, pois ele conquista a potência de durar e vencer o sumidouro para onde vão
todas as coisas que antes se gabavam de eternas. O presente assim transfigurado não
quer ir para o passado para virar lembrança, ele quer permanecer como
experiência intensa do que não pode viver a memória: o vir do novo. O novo
sempre revém vindo outro.
O
por vir não é antecedido por algo que não seja ele. Ele não é o efeito de uma
causa. O por vir está sempre aí, já correndo, já durando, já sendo. O por vir é
fonte dele mesmo. Ninguém pode viver na fonte, pode-se apenas viver o mais
próximo possível dela. O mais próximo possível do por vir já é o por vir que se
experimenta. O por vir está sempre chegando, nunca para de chegar, sempre
outro, novo, ex-temporâneo.
O
por vir não está no que passou, muito menos o por vir é o que passa. O tempo do por vir é o que está por vir. Quando alguém deseja nos
visitar deve fazer-se anunciar, antes, por uma mensagem. Por exemplo, a carta do amigo anuncia sua
visita. A carta vem antes do amigo: embora não seja sua presença, já a
antecipa, de tal modo que já sorrimos fazendo sua leitura, já vendo o amigo. O por vir é a visita por vir.
A mensagem que anuncia sua chegada , porém, não pode estar separada dele, pois
o por vir não se separa dele mesmo Mas se o por vir não se anunciasse por algo
diferente dele não saberíamos que ele está por vir: ele que nunca chega precisa fazer sua mensagem chegar.
A
mensagem que anuncia o por vir é uma só: a novidade. Não a novidade de uma embalagem nova de um produto antigo, tampouco a novidade da mera informação midiática. O por vir se anuncia por intermédio da novidade, da diferença.
Assim como a carta do amigo somente é a carta do amigo quando está em nossas
mãos , quando então a abrimos e a lemos; a novidade que expressa o por vir
somente é novidade quando ela nos abre, nos desabrindo, diria Manoel.
Experimentamos então que somos a própria mensagem por intermédio da qual o por
vir se anuncia, desde que se abra em nós o que em nós é por vir.
A
mensagem do amigo não é propriamente a tangível carta: a mensagem é a amizade que já está em mim,
antes de a carta chegar, porém chegando também com ela. Não é apenas o amigo que está por vir: também está por vir o outro eu que o abraçará, no abraço por vir. O que está por vir não é o que no presente falta, o que está por vir é a reserva de um tempo outro que nunca deixa o que é novo faltar-se.O
iminente que está sempre na iminência é a urgência mais urgente que se alcança
sem pressa. Essa urgência em viver é tanto nossa quanto somos dela, e dura enquanto durar nossa
presença a ela. Muito
já se disse que o presente é um “presente”, e que devemos ser gratos e alegres por
receber essa dádiva. Mas não é uma urgência maior conhecer o produtor da dádiva, o que presenteia? E assim, quem sabe, contagiar-se com a discreta alegria ainda mais viva que está no presentear sem esperar
outro presente em troca.
Sou água que
corre entre pedras - liberdade caça jeito.”
(Manoel
de Barros)
Virou um lugar comum falar em
“amores líquidos”, “amizades líquidas” e até mesmo em “ensino líquido”... Não são poucos os que, nostálgicos de valores sólidos, maldizem a "fluidez" desses nossos dias.
Porém, esse “líquido” carente de
consistência nada tem a ver com a água
manoelina que vence os obstáculos: talvez essa "água que corre entre pedras" tenha a mesma fonte que o
fluxo poético que Heráclito chamou
de eterno rio - sem começo ou fim, apenas meio. O fluxo poético, como "liberdade caçando jeito" (para
inventar seu estilo e afirmar sua diferença), é fluido, mas não é sem força ou
volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade, andarilho, mas sabe
aonde ir, mesmo que seja para um deserto ou nadifúndio, nunca para o
Mercado.
O modelo do atual “volúvel mundo
líquido” , ao contrário, é a liquidez volátil do Capital colonizando os
espaços subjetivos. Ser líquido não é ser fluxo: líquido é um estado contrário ao sólido, que nega o sólido;assim como o sólido, enquanto estado, também é uma negação do líquido. Apesar de opostos, sólido e líquido são estados, isto é , enfraquecimento ou despotencialização do fluxo: por enrijecimento de uma identidade , no caso do sólido; por tornar a diferença um clichê , no caso do líquido. Quando a água se torna líquida, ela não é menos um estado do que quando se torna sólida. O fluxo é mais do que o líquido: ele é o ser mesmo do que nunca é um estado, uma parada, um "acostumado" , diria Manoel.
Nem todo líquido é fluxo. Os líquidos se amoldam à forma de
seus recipientes, e assim são “capturados”( mesmo a tela do computador pode se
tornar uma fôrma ou molde);os fluxos ou
inventam seus caminhos ou secam e morrem.
Como ensina Deleuze, um fluxo é como um rio cuja correnteza é mais veloz no meio e rói suas margens, seus limites.
Segundo Hesíodo, há cinco tipos de
homem. Cada tipo recebe como símbolo um determinado elemento. O que vale é o
aspecto simbólico, não a referência material literal, empírica. Há homens de
ouro, de prata, de bronze, de ferro e de barro. Quando Hesíodo
escreveu, há mais de 2. 700 anos, os homens de ouro e prata eram apenas
lembrança - lembrança poética, ética e mítica. No tempo em que viveu
o poeta o homem de bronze já anunciava o seu ocaso, pois no horizonte próximo
já vinha o homem de ferro, com seu pesado fardo a carregar. O homem de barro
era anunciado pelo poeta para um futuro incerto.
O homem de ouro era aquele que
vivia na companhia do divino. Não havia entre o plano humano e o divino um
abismo: o homem aprendia a sabedoria sem precisar de livros. Sábio, mas não
erudito, o homem crescia no corpo e no espírito: a passagem do tempo não era
envelhecimento, mas ampliação de sua capacidade de estar à altura da companhia
do divino. Não havia escultura, pintura ou outra arte, pois o artístico
era a própria vida, que era feita mais de cores do que de formas. Os deuses
ainda não tinham templo, pois a casa deles era a mesma dos homens de ouro:
ambos habitavam a terra como chão e o céu como teto, sem paredes.
Porém, alguns desses homens não
souberam honrar a companhia do divino: passaram a se achar seus representantes
e falar por eles, com a intenção de obterem poder sobre os outros homens. Então
os deuses se afastaram, e tais homens, sozinhos, desapareceram.
Os deuses criaram então os homens
de prata. Estes viviam 100 anos como crianças apenas. Viviam brincando nos
jardins onde nada faltava. E, cansados de tanto brincar, adormeciam e entravam
em um sono sem sonhos, pois sonhos apenas existem para aqueles cuja realidade é
frustrante, cabendo então ao sonho realizar o que o desejo desperto não obtém.
Mas como os homens de prata de nada careciam, pois de nada sentiam falta, do
sonhar dormindo não precisavam. Eles vivam na inocência de uma vida sem culpa.
Após completarem 100 anos, os deuses deixavam então que os homens crescessem,
para rapidamente envelhecer e morrer, sem dor, dormindo. Porém, nem todos se
contentavam apenas com o lúdico, não poucos se tornavam tolos, caprichosos,
egoístas, enfim, “infantis”: choravam pela presença dos deuses, exigindo que
estes lhes fizessem favores e concedessem privilégios. Assim, o ciúme crescia
entre os homens-infantis. Os deuses então novamente se afastaram, e tais homens
pereceram.
Uma nova raça de homens foi
criada pelos deuses: os homens de bronze. Estes eram corajosos e destemidos,
porém belicosos e querelantes. Ambicionam o domínio, a posse , o poder. Mas
como eram independentes e honravam os deuses, estes deixaram que crescessem em
número e habilidades. Entre estas, uma se destacou: o engenho para criar armas.
O homem de bronze se tornou o homem da guerra, da busca pela glória. Porém,
tornou-se também o campeão da violência contra o outro homem, fazendo os
vencidos de escravos. Logo a pretensão também se tornou marca desses homens, de
tal modo que quiseram guerrear com o próprio invisível onde morava o divino,
revelando assim que o poder os enlouquecera. Os deuses, sem piedade,
exterminaram tais homens de bronze.
Foram criados então os homens de
ferro. Estes nasceram sob a carga da necessidade: nus, precisavam cobrir o
corpo; famintos, necessitavam achar alimentos; fracos , sentiram que precisavam
se unir . Para tal, inventaram as leis, as obrigações e o trabalho. Viviam mais
ocupados com a terra do que com o céu. E todos os seus engenhos e conhecimentos
estavam voltados para inventarem meios que amenizassem a penosa existência.
Entre alguns deles , porém, não lhes satisfazia essa vida rasteira, rasa. Entre
esses insubmissos ao poder do mero útil, nasceu uma fuga, uma
"linha de fuga", que tomou a forma de uma metamórfica iluminação:
eles adquiriram então olhos e ouvidos para verem e ouvirem a dança e o
canto das Musas Divinas. Conferindo um novo uso às mãos , não apenas para o
trabalho mas para a criação, esculpiram o que viram nas pedras,criando
esculturas que davam a ver o invisível ; dando às palavras nova função, diziam
por elas o que lhes cantavam as Musas, inventando assim a poesia. No meio da
indigência nasceu o artista, o poeta, para com a arte "celestar as coisas
do chão". Hesíodo foi um desses
celestadores.
Havia ainda uma quinta raça por vir
, dizia o poeta. Nela não haverá mais a menor lembrança do divino, apenas
imaginações parcas. Essa raça nascerá sob a marca do precário, do fugidio, do
inconstante, do vazio, do "líquido" ( não enquanto fluxo poético heraclítico, mas semelhante à fluidez inconstante do Capital...) . O homem nascido nessa época será o homem de barro. Não o barro que pode ser modelado e se tornar receptáculo para o belo ou para o útil, como os vasos , ânforas e jarras. Tampouco se trata do barro como meio de expressão do popular estilo, como nas pequenas estátuas modeladas pelas mãos do artista nordestino. Na mitologia, Prometeu fez o homem a partir do barro; porém a habilidade manual, a inteligência e sobretudo o coração, como sede do afeto da justiça, vieram dar vida ao peso morto. O barro desse homem de barro é apenas o barro mesmo, este que apenas o vento, e não as virtudes e as ideias, põe de pé.
Das
épocas de ouro e prata ele desejará apenas o metal, a parte material, ignorando
o simbolismo. Tal homem de barro nutrirá a mesma sanha belicosa dos
homens de bronze, porém desconhecendo as virtudes guerreiras destes, sobretudo
a honra. Dos homens de ferro eles herdarão as carências e necessidades, mas não
a profundidade visionária de seus artistas. A principal marca do homem de
barro, diz Hesíodo, será sua total insensibilidade a tudo aquilo que não seja
seu próprio ego. Eles talvez sejam os últimos dos homens, pensava Hesíodo.
Porém não serão os deuses a destruí-los, pois a estes tais homens mesmos
os terão destruídos antes, de tal sorte que os templos que construirão
serão, na verdade, túmulos.E construirão muitos... Não serão os deuses
que destruirão tais homens, serão eles mesmos a arma disso, do barro
ficando apenas o pó .