quinta-feira, 22 de maio de 2025

urdidura & trama

 

Quem deseja tecer deve partir de uma “urdidura”. Não importa se são tecidos, textos, ideias ou ações que desejamos tecer: é sempre de uma urdidura que se parte.

“Urdidura” vem do termo latino “ordo” (em português: “ordem”). Como ensina Espinosa em sua “Ética”: em tudo há “ordo”, porém “ordo” não é tudo.

Toda urdidura é feita de fios dispostos retamente, como um destino, e disso já sabiam as mitológicas Moiras, que urdiam o destino dos seres humanos de maneira férrea, aparentemente inescapável, como as barras retas de uma prisão.  Mas apenas uma urdidura não forma um tecido de vida: é preciso a “trama”.

A trama nasce de um fio que passa transversalmente pela urdidura: a trama acrescenta ao férreo destino a invenção de fugas, de “linhas de fuga”.

Toda urdidura é sempre igual: reta e determinada. Porém, há múltiplas formas de se fiar uma trama. Não há trama sem uma urdidura, isso é certo; porém não há tecido, de pano ou social, sem a invenção de tramas.

Da “Moira Social” que o urdiu louco, Arthur Bispo do Rosário reencontrou sua transversal, seu “Fio de Ariadne”, e assim tramou sua lucidez como fuga da normalidade reta dos que pensam igual.

Embora toda trama parta de uma urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.

A gramática é urdidura, porém trama é a poesia; a lógica é urdidura, mas pensar é trama; família é urdidura, amor é trama; Estado é urdidura, sociedade é trama; código jurídico é urdidura, justiça é trama; sistema político é urdidura, democracia é trama.

 

“A reta é uma curva que não sonha.” (Manoel de Barros)

 

“Não há linha reta, nem nas coisas e nem na linguagem.” (Deleuze)

 

“Quero descrever o voo de um pássaro

escrevendo com a pena de uma asa.” (Guimarães Rosa)


“A opinião de que a arte não deve ter nada com a política já é em si mesma uma atitude política.” ( George Orwell / livro: Por que escrevo)


 "Atravessamos tudo como a linha atravessa um tecido: formando imagens." ( Rilke)



(imagem : Bispo do Rosário / foto de Walter Firmo.  Aberto, horizontado, o “Manto” de Bispo do Rosário se torna   asas de uma borboleta nascida de uma trama-metamorfose)




 



terça-feira, 20 de maio de 2025

A escolha de Ulisses

                                                      A ESCOLHA DE ULISSES[1]

 

Na Odisseia, de Homero, há um acontecimento considerado um dos principais da narrativa: quando Ulisses se encontra com a deusa Calipso[2]. Antes desse encontro, Ulisses passou por inúmeras aventuras perigosas e degradantes que quase o enlouqueceram e trouxeram o fim de sua vida. Até mesmo no Hades, o “Reino dos Mortos”, Ulisses foi parar:  embora Ulisses estivesse ainda vivo , no entanto ela parecia um morto, de tão acabado e derrotado que estava, por dentro e por fora.

Ao conseguir fugir do Hades, Ulisses vagou no mar como um náufrago, até alcançar, exausto, a ilha de Calipso.   Esse encontro de Ulisses com Calipso é, como já dissemos, um dos pontos decisivos da história, com temas que podem ser contextualizados para as questões que vivemos hoje. Aqui, porém, nos interessa um dilema ético pelo qual Ulisses passará, dilema esse que obrigará Ulisses a realizar um dos principais atos que caracteriza a ética: Ulisses terá que fazer uma escolha. Uma escolha é sempre feita diante de um campo de possibilidades. Quem faz algo obrigado, não escolhe. Mas toda escolha pressupõe a liberdade, e é por isso que a escolha pode pesar tanto, já que escolhendo uma possibilidade abandonamos inúmeras outras possibilidades que não escolhemos.

Esse tema da escolha é um dos principiais do existencialismo, e está presente nos livros de Simone de Beauvoir , Sartre e Camus, por exemplo. Para esses autores, nenhum de nós tem uma “essência” imutável: nós somos o que escolhemos ser. Mesmo quando achamos que não escolhemos, estamos escolhendo: escolhemos não escolher... Para esses autores, portanto,  não existe neutralidade. A pessoa ética é aquela que não só escolhe, como também assume a responsabilidade de suas escolhas. Ela não se esconde, não se ausenta e nem se resume a ficar culpando os outros por aquilo que lhe acontece. Para esses autores, o preço da liberdade é a angústia diante dessa verdade: somos nós que devemos escolher o que somos e seremos, e assumirmos essa escolha. Num primeiro momento, isso pode doer ( assim como pode doer passar da adolescência para a vida adulta) , mas é somente sendo responsáveis por nossas escolhas é que podemos ser livres, isto é, crescermos enquanto pessoas.

Voltando à narrativa. Após cuidar de Ulisses, e querendo retê-lo para todo o sempre, Calipso lhe fez uma proposta: conceder-lhe a imortalidade. Calipso disse: “ficando comigo aqui em minha ilha você se tornará imortal e divino,  dará adeus à dor, à frustação, à decepção, ao sofrimento, enfim, ficará liberto da morte, do tempo e da saudade”.

Ulisses , porém, recusou a oferta... Entre se tornar divino ou viver a condição humana, por mais contraditória e errante que seja essa condição, ele escolheu a humanidade, o que implicava retornar ao oceano e à sua viagem, perseverar no rumo, enfrentar os perigos, suplantar as tempestades  e sempre mirar o horizonte até nele surgir sua Ítaca, sua terra natal, na qual o esperava o motivo  de sua saudade: sua companheira Penélope.

No livro O que é a filosofia? , Deleuze & Guattari retomam essa narrativa e argumentam da seguinte forma:  “Penélope” representa para Ulisses o mesmo que o Afeto potencializador representa   para o pensador de não importa qual área[3]. Não somente as ideias nos servem de orientação, também são como “bússolas” os Afetos[4] que dão sentido a uma vida.  

Antes de reencontrar Ulisses, “Penélope” é assediada pelos “pretendentes” que a querem ilegitimamente: alguns a querem comprar, outros a ameaçam violentar e tê-la   à força. Mas Penélope não se põe à venda e resiste às ameaças dos comerciantes e usurpadores das Ideias.

Os “pretendentes” representam aqueles  que consideram que tudo pode ser obtido de forma fácil e sem esforço. Os pretendentes também simbolizam aqueles que acham que tudo tem um preço, sobretudo em dinheiro, incluindo as pessoas. Ou seja, os pretendentes têm a pretensão de obter coisas para as quais não se preparou, não se cultivou e nem se dedicou. Por isso, querem obter as coisas por meio da força ou da trapaça, passando por cima dos valores, das regras, enfim, das pessoas. 

 

 Ulisses derrota os pretendentes mediante uma prova que não é teórica, e sim feita mediante ações, isto é, uma prova ética.  Ulisses reapareceu em Ítaca disfarçado de velhinho. No seu próprio lar, ele viu os pretendentes assediando Penélope. Quando viram Ulisses-velhinho, os pretendentes riram de forma zombeteira, imaginando que aquele velhinho caquético era mais um pretendente...Então, Ulisses propôs uma “prova”: ganharia a mão de Penélope aquele que conseguisse dobrar o arco de Ulisses. Achando que a prova seria fácil, o arco foi passando pelas mãos de cada pretendente, mas sem que nenhum deles conseguisse dobrá-lo. Até que o arco chegou às mãos do velhinho, e todos os pretendentes debocharam novamente. Porém, para surpresa de todos, o velhinho conseguiu dobrar facilmente o arco. Ulisses então desfez o feitiço e se mostrou aos pretendentes, os enfrentando e derrotando.

A palavra “virtu”, da qual nasce “virtude”, designa originariamente a força que nasce da corda do arco quando é tensionada, para assim lançar a flecha longe. Virtu designa uma força potencial, portanto. De maneira análoga, as virtudes são forças, ou potencialidades, que dotam a alma da capacidade de “lançar longe suas ações”, como flechas. Diferente das provas teóricas que apenas mensuram a inteligência, as provas éticas são sempre concretas, acontecem em uma situação direta, e revelam se aquele que é posto à prova possui ou não a virtude que diz ter, se é ou não corajoso, se é ou não justo, se é ou não empático, se é ou não generoso, se é ou não amigo de verdade, enfim, se é autêntico no que diz e faz ou apenas um pretencioso que finge ser o que não é e quer as coisas sem perseverança e esforço. Enquanto as provas teóricas medem a inteligência individual de uma pessoa, as provas éticas aferem o comportamento de alguém em sociedade e na sua relação com os outros. 

Além dessa dimensão ética, Ulisses também vence os pretendentes por expressar, mais do que todos, um Afeto Potente por Penélope, Afeto esse que a Ideia também sente pelo Pensador de forma recíproca.

Enquanto estava no oceano e em perigo, esse Afeto foi, para Ulisses, sua bússola, seu leme, sua coragem...sendo também seu porto , sua terra natal e  o “fio”, como o de Ariadne , que o liga a Penélope.

Foi esse fio que o trouxe de volta ( Penélope também é tecelã-bordadeira...). Enquanto o livro Ilíada  fala da guerra e do desejo de Aquiles de morrer jovem em pleno campo de batalha, para assim conquistar a imortalidade, a Odisseia é o poema que narra a perseverança de Ulisses na sobrevivência. E sua escolha é o arquétipo de toda escolha ética[5].

É um desejo de vida que o move , um desejo de agenciamentos que potencializem  a vida. Vista dessa perspectiva, a “escolha” de Ulisses não foi bem uma escolha, ela foi , na verdade, a afirmação de uma necessidade[6] idêntica à liberdade que se fez  prática.

Penélope simboliza a alma que resiste ao assédio dos “pretendentes” que tentam comprá-la.  Recordar vem de “re-córdis”: “trazer ao coração”. Foi a recordação de Penélope, fazendo dela a força de sua coragem ( “coragem”: “força do coração”), foi essa recordação que levou Ulisses a escolher a humanidade e retornar à sua terra natal , para isso se lançando em nova viagem, desta vez não temendo as tempestades, pois Ulisses agora sabia aonde ir: de volta a si mesmo, ele que se perdeu de si.

A humanidade não é o “Homem”, a humanidade é um valor que somente existe se for criado por nossas escolhas éticas e políticas, pois escolher a humanidade também precisa ser uma escolha coletiva.

Apesar das tempestades, é sempre em direção à humanidade que precisamos ir. Ela é, ao mesmo tempo, a bússola, o leme, a viagem e o porto : a terra natal onde reside/resiste nossa Penélope-Psiquê.

 

 



[1] Texto elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Além disso, essa passagem da Odisseia é considerada a primeira a colocar questões éticas, influenciando depois os filósofos gregos que se debruçaram sobre o assunto, como Platão e Aristóteles.

[3] Como dizem Waldisa Rússio e Tereza Scheiner: “É preciso pensar o museu.” E pensar o museu é mais do que apenas ter habilidade em questões técnicas. Para pensar o museu são necessários ideias e afetos.

[4] No texto-aula “O que é um Afeto” explico um pouco mais sobre esse tema. De certo modo, o tema do Afeto liga a Ética à Estética. Vale a pena ler o artigo que já deixei no classroom e recomendei, cujo título é:  "Museologia, ética e estética".

[5] Sartre, por exemplo, faz da escolha a expressão de nossa liberdade.

[6] Essa identificação entre necessidade e liberdade está presente na Ética de Espinosa. 

 








sábado, 17 de maio de 2025

Eros, Psiquê & Cupido

 

                                                  EROS & PSIQUÊ[1]

 

Existiu na Grécia uma jovem chamada Psiquê. Sua beleza era tanta, que a própria deusa da beleza se sentia inferiorizada diante de Psiquê. A deusa da beleza era Afrodite. Mas Afrodite era portadora da beleza física, esta que vemos com nossos olhos. Antes de Psiquê, conhecia-se apenas aquele tipo de beleza da qual Afrodite era a deusa. Psiquê, diferentemente, portava uma beleza distinta, pois “Psiquê” é o nome grego da Alma[1].

A Alma é bela, essa a mensagem que nos deixam os gregos. Sua beleza rivaliza com a beleza do corpo, a única que Afrodite conhecia. Todavia, enquanto Afrodite era uma deusa, Psiquê era uma simples mortal. Por não conter sua inveja, e querendo atingir a sua rival,  Afrodite resolveu vingar-se ...

Afrodite ( A Deusa da Beleza): "- Como!? Existe entre esses seres efêmeros, que mais parecem um pó rasteiro que o vento leva, existe entre os humanos alguém mais bela do que eu? Como pode!?E que nome estranho esse ser tem: Alma (Psiquê)...Como a alma pode ser mais bela do que eu, que sou o Corpo! Somente em mim pode haver beleza, já que beleza só existe para os olhos! E são os homens mesmos que me adoram com os olhos! Não apenas os homens me adoram. A prova disso é que meu servo maior é o Amor, que não tira os olhos de mim e me cobiça para ser posse exclusiva sua. Mas eu não cedo e jogo com ele, uso ele para reinar sobre todos. Essa tal de Alma não pode ser mais bela do que eu! Mas não quero ir conferir ou ficar em dúvida..."

(Afrodite manda chamar então Eros, o Deus do Amor, que era seu servo. Dirigindo-se a Eros, Afrodite ordena) :"Quero que você vá até o local no qual vivem os seres humanos , encontre uma jovem chamada Alma e atravesse o coração dela com sua flecha . Faça ela se apaixonar pelo homem mais pobre, burro e feio que houver em toda Grécia..."

O Amor só tem olhos para a beleza, ele detesta a fealdade. É preciso entender a fealdade em um sentido bem amplo, pois existem também palavras e ações feias. Nunca o Amor se enamora de tais palavras e ações: quando as vê, o Amor desvia os olhos. Por isso tais palavras e ações têm dificuldades em germinar, pois para que algo se reproduza é preciso a influência do Amor.

De tudo o que o Amor havia visto no céu e na terra, Afrodite era, sem dúvida, a coisa mais bela. Por isso, ele a acompanhava e fazia o que fosse do desejo dela. Em troca, a única coisa que o Amor exigia de Afrodite era vê-la e estar-lhe perto. Valendo-se dessa situação, Afrodite resolveu fazer de Eros a arma de sua vingança contra aquela que possuía uma beleza que não pertencia ao seu império.
E lá veio o Amor descendo do céu em busca da Alma na terra. O Amor nunca havia visto antes a Alma. Afrodite esquecera-se desse detalhe, pois o que poderia acontecer nesse encontro entre o Amor e a Alma? Ele nunca a tinha visto antes. Ele não sabia o que ia encontrar. Guiava-o a memória da Beleza do Corpo, pois tal Beleza era Afrodite. Nada do que seus olhos vissem fora dele poderia ser mais belo do que a recordação que vivia em sua memória, assim pensava o Amor antes de encontrar-se com a Alma. Afrodite era a coisa mais bonita que ele vira, e essa verdade o completava, desde que ele estivesse perto dela.

Porém, nem o Amor e nem o Corpo sabiam o que podia a Alma, sobretudo quando a vemos, quando nos encontramos com ela. Ouvir apenas falar dela não é conhecê-la. A Alma somente pode ser conhecida diretamente, sem intermediários.

 

Então, o Amor encontrou   a Alma, Eros conheceu Psiquê. Nesse encontro, o  Amor sentiu nascer dentro dele um outro, esse outro era um amor novo, que era o Amor mesmo, porém renovado, potencializado, mais amor do que nunca. Enquanto o amor pelo Corpo submetia Eros a caprichos e prazeres exigidos pelo ser amado, como se fosse um preço a ser pago, esse amor nascido do encontro com a Alma o fazia voltar-se para si mesmo e descobrir uma graça nascida de um desejo que não se esgota na posse e no imediato. O Amor percebeu então que ele podia ser reinventado, experimentar uma nova maneira de ele ser . E que ele próprio, o amor, desconhecia tudo o que o amor pode. Ele viu que se desconhecia e que havia nele potencialidades de amar que somente poderiam se tornar reais se ele se unisse à Alma. A união dele com o Corpo era exterior; contudo, o Amor sentia que para ele se unir à Alma ele deveria morar dentro dela: cada um seria no outro, sem carência ou falta. Mas o que é a Alma? Ela é invisível, intangível, porém como tem realidade e potência para quem a conhece! E quem a vê nunca mais a esquece. E ela não está nos céus, nem no Olimpo, ela vive dentro do ser humano. O Amor é eterno, mas não o é a Alma. Ela nasceu ninguém sabe como, pois onde menos se esperava , ali  nasceu ela. Ela não nasceu divina, nasceu humana. Sua divindade seria conquistada por Justiça, e não por nascimento ou aparência. Só uma divindade pode gerar uma divindade. Mas a Alma, embora não fosse divina,   fez nascer no Amor um ser novo, que era o Amor mesmo com  olhos outros, diferentes, capazes de verem  o que se esconde de belo nos homens, apesar de toda feiura que eles frequentemente são, dizem  e fazem.

O Amor, no entanto, não se revelou imediatamente. Ele guardou-se para o momento oportuno. E lá foi ele embora, com sua própria flecha atravessada no peito. A Alma, por sua vez, nada viu, porém sentiu atravessar-lhe um vento estranho.

 

O tempo passou , as irmãs de Psiquê se casaram e Psiquê permanecia só. Embora todos a considerassem bela, ninguém a pedia em casamento, tampouco ela se apaixonava por alguém. Contudo,  o que ninguém sabia, nem mesmo Psiquê, é que era o próprio Amor que evitava que a Alma se apaixonasse.

Achando a situação por demais estranha, o pai de Psiquê resolveu levá-la  até ao Oráculo de Delfos, para que o deus Apolo revelasse qual seria o futuro da jovem. Chegando lá, ambos ouviram da Sacerdotisa de Apolo uma revelação trágica: Psiquê deveria ir até um determinado castelo próximo dali. Chegando lá , Psiquê aguardaria pela chegada da noite. Sob a escuridão da noite, chegaria também o dono do castelo, que seria também seu noivo. O dono do castelo era um monstro. Então, à noite, Psiquê deveria deitar-se  na cama do monstro, para assim ser sua esposa; pela manhã, ela deveria deitar-se na mesa, pois ela seria o café da manhã desse terrível esposo.

Apesar da natureza trágica desses acontecimentos por vir, Psiquê  não pensou em escapar , pois isso era impossível. Àquela época, os gregos acreditavam que a vida de cada um era governada pelo Destino, do primeiro ao último instante da vida. Por isso, a Alma aceitou seu Destino. No dia seguinte, ela rumou sozinha para o encontro com a morte.

Ao entrar no castelo, cuja porta estava aberta, Psiquê não encontrou ninguém em seu interior. Então, ela subiu até ao quarto para arrumar-se para aquela que seria , ao mesmo tempo, a sua primeira noite como esposa e a sua última noite de vida.

Quando veio a noite, a Alma deitou-se no leito, e passou a aguardar, conformada,  o noivo-monstro. A janela estava aberta, como se fosse uma pálpebra. Através dela, podia-se ver  a lua imensa a observar o quarto . Uma súbita brisa entrou pela janela e rodeou a Alma suavemente. Mas aquela não era uma brisa comum. Como se tivesse braços, a brisa envolveu a Alma, e  a apertou vagarosamente. Então, como se adquirisse boca, a brisa soprou no ouvido da Alma as seguintes palavras: “Psiquê, só lhe peço uma coisa: confie em mim. Se você confiar, no fim será  feliz”. Após ouvir essas palavras, a Alma sentiu aquele abraço invisível apertar cada vez mais. O abraço provocava na Alma sensações  nunca antes por ela sentidas, sensações de prazer e satisfação. Por fim, a Alma  perdeu os sentidos, mergulhada que estava em um transe nunca por ela vivido.

Ao acordar  pela manhã, Psiquê se viu sozinha na cama. Contudo, o lençol ao seu lado estava amarrotado, como se alguém tivesse dormido ao seu lado. E o mais importante: o monstro não havia aparecido.

Na noite seguinte, a Alma repetiu o mesmo comportamento da noite anterior, e se pôs a esperar  a morte. Todavia, novamente a brisa entrou pela janela e a envolveu. A última coisa que a Alma viu antes de desfalecer de novo foi, através da janela, a lua a lhe sorrir.

Na manhã seguinte, o mesmo fato da manhã anterior: o lençol amarrotado indicava que alguém dormira com Psiquê, mas partira bem cedo. Quando veio a noite, novamente o mistério se apoderou da Alma, e com ela dormiu. Pela manhã, ninguém...Isso se repetiu por noites e manhãs seguidas.... e nada de a morte vir para  devorar a Alma. 

Certa vez, no meio da tarde, bateram à porta do castelo. Eram as irmãs de Psiquê: a Desconfiança e a Dúvida. Estas ficaram surpresas ao verem a Alma ainda viva. E mais surpresa lhes causou a alegria estampada no rosto da Alma. De imediato, as irmãs de Psiquê pediram para que esta lhes contasse o que afinal aconteceu e, principalmente, qual o motivo de toda aquela felicidade que a Alma  não conseguia esconder, embora tentasse.

Enquanto ouviam a história, as irmãs de Psiquê começaram a se sentir incomodadas com aquela felicidade da irmã. Pois parecia que a Alma havia experimentado algo que elas, mesmo sendo casadas, nunca experimentaram.

Então, a  Desconfiança  se aproximou da Alma e lhe dirigiu palavras que visavam pôr aquela felicidade da Alma em suspenso. A Dúvida, por sua vez, aproveitando-se de seu poder sobre a Alma , disse-lhe para descumprir o prometido, e ver quem era de fato aquele ser que lhe visitava todas as noites.   Descontrolada  pela influência da  Desconfiança e da Dúvida, a Alma ficou insegura de si e do que sentia . Por fim ,ela perdeu  sua capacidade de acreditar. Com isso,   foi-se embora  a felicidade que nascera dentro dela. 

Antes de partirem, as irmãs de Psiquê lhe deixaram uma vela que tinha poderes especiais, pois tal vela podia iluminar o invisível. Naquela noite, novamente se repetiu a visita do mistério . Mas, dessa vez, Psiquê tinha um plano. Ela esforçou-se para não desfalecer como das outras vezes, ficando a fingir que dormia. Antes de o dia amanhecer, ela acendeu a vela e a aproximou lentamente do ser que dormia ao seu lado ainda. Pouco a pouco, a luz foi tirando da penumbra o ser misterioso que nela se ocultava. Quando viu por completo o ser que o mistério escondia, a Alma ficou maravilhada, pois nunca ela havia visto ser tão singular e indescritível em palavras, a não ser quando as palavras se metamorfoseiam em poesia. Pois ao seu lado estava nada mais nada menos do que o próprio Amor[2]. O Amor havia amado a Alma durante todas aquelas noites. Foi o Amor então que a fizera feliz, como nunca ela havia sido. Naquele dia no Oráculo, foi o próprio Amor que, ocultando-se ainda, falou à Alma, querendo ser desta o destino.

Contudo, tão absorta a Alma se encontrava, que ela não reparara que a cera da vela estava prestes a pingar. Um pingo quente escapou da vela, e caiu sobre o corpo do Amor,  acordando-o de súbito. Sentindo-se traído, o Amor  levantou-se rapidamente do leito. Ao puxar as flechas que pendiam sobre a cama, uma delas feriu a Alma. Tais flechas eram usadas pelo Amor como instrumento para que alguém, por intermédio delas, se apaixonasse por outrem. Todavia, como a Alma estava olhando para o Amor quando foi ferida, era pelo Amor então que a Alma passou a ter amor. O amor do Amor abrigou-se no coração da Alma, e isso a tornava ainda mais bela. Contudo, antes de partir, Eros lhe disse: “ Psiquê, somente um pedido eu lhe fiz, mas você não foi capaz de cumpri-lo. Sem confiança não há amor.”

Feliz por ter encontrado o Amor, mas ao mesmo tempo infeliz por tê-lo perdido por não confiar, a Alma viu-se sozinha no castelo. Porém, subitamente ela reparou que não estava de fato sozinha, pois o Amor se instalara em seu coração, e dele expulsou  a descrença. Mas este Amor no coração era apenas a semente que, para germinar, precisava encontrar o Amor no mundo. Então, a Alma saiu para o mundo, atrás do Amor que um dia teve, e que perdeu por dar ouvidos à  Desconfiança e à Dúvida.

A cada um que encontrava pelo caminho, Psiquê perguntava se em algum lugar esta pessoa viu o Amor ou se sabia onde ele estava. Para sua surpresa, poucos confessavam que o haviam visto, e muitos outros diziam que ele não existia . Dentre aqueles poucos que o haviam visto, um dizia que o Amor se chamava Carmem; outro confessava que, no passado, teve um Amor   chamado Ana; uma outra dizia que o Amor, para ela, atendia por Pedro. Ou seja, cada um havia visto o Amor numa pessoa. Mas a Alma procurava pelo Amor cujo nome é, apenas, Amor: o Amor puro ― que é, ao mesmo tempo, o mais singular e  o mais universal.

Por fim, Psiquê resolveu pedir o auxílio dos deuses. Para seu infortúnio, a primeira divindade que ela encontrou foi exatamente Afrodite. Escondendo de Psiquê a inimizade que por ela sentia, Afrodite fingiu sofrer com o padecimento da Alma, e disse saber como acabar com aquele tormento. Mas o que Psiquê não sabia, e nem desconfiava, é que aquilo tudo era fingimento de Afrodite. Na verdade, a deusa  queria aproveitar o sofrimento de sua rival para melhor derrotá-la.

Valendo-se da situação, Afrodite resolveu vingar-se com uma mentira, e disse a Psiquê que esta somente teria o Amor de volta se fizesse inúmeras tarefas arriscadas e cansativas.  Psiquê, no entanto, disse-lhe que não mediria esforços para ter o Amor de volta. Assim, Psiquê caía na armadilha de Afrodite. Esta acreditava que o cumprimento de tarefas tão desgastantes findaria com a beleza da Alma. Como consequência, a Alma ficaria feia e acabada, e o Amor nunca mais olharia para ela.

Contudo, embora se dedicasse com afinco às penosas tarefas, a Alma nunca  se enfeava. Uma das tarefas penosas era ir a uma praia imensa e separar os grãos escuros dos claros. Na hora, porém, apareceram milhares de formigas que vieram auxiliar na tarefa. Quando a alma se sacrifica para buscar o afeto que a potencializa, a natureza inteira se solidariza e não a deixa sozinha, por mais que ela pense estar.  Assim, o sacrifício pelo Amor, ao invés de a enfear e cansar, a tornava ainda mais viva e bela.

Enfim, vendo o Amor que a Alma o buscava mais do que a tudo, ele resolveu não se esconder mais, e mandou seu irmão ir até à Alma para dizer-lhe onde ele se encontrava. O irmão do Amor é o Perdão. O Perdão disse à Alma que o Amor se encontrava escondido dentro dela.

O Amor quis então que ele e a Alma nunca mais se separassem. Para isso, seria preciso que a Alma nunca morresse. Era preciso que a Alma também se tornasse divina. Com esse intuito, o Amor procurou a Zeus, o deus da Justiça, e pediu-lhe para que ele imortalizasse a Alma, tornando-a divina. Zeus disse então à Alma: "Aparentemente, parece fácil, em palavras, conquistar a imortalidade, porém é a coisa mais difícil na prática!...Se os homens fizessem na prática o que fazem com as palavras, o Olimpo estaria repleto de homens... ". Então Zeus diz o que é preciso a Alma fazer para se imortalizar: "Basta apenas estar sempre na companhia do Amor, nunca dele se afastar, não importa onde e quando. Eis o mistério maior da alma: embora mortal, a alma se imortaliza quando ama."

Para os gregos, assim como para os romanos, o amor era uma força cósmica, e não uma dimensão meramente subjetiva ou romântica. Nesse sentido, quando a alma ama, ela age, transforma, educa-se, aprende e ensina. Creio que é nesse sentido que podemos interpretar este verso de Manoel de Barros: “Se a gente não der o amor, ele apodrece dentro de nós.”

 

 

 

 

 




 

[1] “Psiquê” está na raiz de “psicologia”, que é o “estudo da alma”.

[2] Sem que Psiquê desconfiasse, foi o Amor que, tomando o lugar do deus Apolo, falou com Psiquê através do Oráculo. O intuito do Amor era, no tempo oportuno, revelar-se à Alma. Por isso, ele inventou a história do monstro.

 

 

Estes livros são apenas sugestões de leitura para quem quiser saber mais:

                           

 

( o mito de Eros & Psiquê possui várias versões narradas por Homero, Hesíodo, Platão, Ovídio , Plotino, La Fontaine, Fernando Pessoa...O livro acima apresenta a versão do poeta latino Apuleio, que muito influenciou Freud e Lacan).

 

 

 

Texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Outra referência fundamental, na qual sempre me apoio quando explico o mito de Psiquê e suas diversas implicações com a cultura grega, é este livro de Rohde (infelizmente, o livro ainda não foi traduzido para o português). 

 

 

Interface gráfica do usuário, Aplicativo

Descrição gerada automaticamente

(Há ainda esta versão do mito interpretada pelo poeta Fernando Pessoa)

 

Imagem digital fictícia de personagem de desenho animado

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

( “O nascimento de Vênus”/ Botticelli)



                                O EROS DE PLOTINO[2]

 

Eros primeiro amou Afrodite, achando que Afrodite era tudo; até que Eros conheceu Psiquê, esquecendo de imediato Afrodite.

No início, Eros foi só de Afrodite; depois esqueceu Afrodite e passou a ser só de Psiquê. Com isso, Eros produziu tristeza em Afrodite, ao mesmo tempo que mantinha Psiquê ignorante de que ele já havia amado, e muito, um outro ser.

 Por isso, Eros fazia de tudo para que Afrodite e Psiquê se ignorassem, como se a alegria de uma fosse a dor da outra, de tal maneira que a felicidade de ambas ele não poderia oferecer.

Na mitologia, Eros é o Amor, Afrodite simboliza o Corpo, enquanto Psiquê é a Alma.  Assim, os gregos achavam que o Amor não pode amar, ao mesmo tempo, o Corpo e a Alma.

O Corpo proporciona prazer ao Amor, ao passo que a Alma lhe faz nascer a Sabedoria (Sophia). “Prazer” em grego é “hedon”, de onde nasce “hedonismo”. Entregar-se ao Hedonismo ou buscar a Sabedoria:  essa escolha deve ser, segundo os gregos, a decisão que a parte de nós que ama deve fazer.

Platão, por exemplo, fez da escolha exclusiva do Amor pela Alma a base de sua filosofia, ao mesmo tempo condenando o Corpo como não tendo, para o pensar, nenhuma serventia. Para Platão, filosofar é aprender a morrer.

Plotino não concordava com essa visão dicotômica, nisso inspirando Espinosa. Segundo Plotino, a função maior do Eros-Amor-Cupido, a sua utilidade suprema, não é escolher entre a Alma e o Corpo, mas fazer a Alma e o Corpo unirem-se um ao outro para viverem o ato de pensar como paixão pelo viver.

Em Plotino, assim como em Espinosa, o amor não é um sentimento meramente subjetivo ou romântico. Segundo sua etimologia poética, “amor” nasce da união da letra “a” com função restritiva (como em “a-fasia”: “não fala”) mais a abreviação da palavra morte ( por razões de métrica, às vezes os poetas latinos escreviam “mor” em vez de “morte”). Assim, em seu sentido originário, “amor” é “não morte”, nos vários sentidos que a morte pode ter.

Amar a educação, por exemplo, é agir pela não morte dela (o projeto de escola militar-fundament4lista representa a morte da educação); amar a vida digna, tanto a pessoal quanto a coletiva, é agir pela não morte da democracia (o autorit4rismo político é a morte da vida digna).

Cupido não portava apenas uma flecha para atingir os corações, ele também carregava uma tocha:  para incendiar com o lume da paixão transformadora as ideias e as ações. É uma paixão assim a base da educação libertadora: “Só desperta a paixão de aprender quem tem a paixão de ensinar.” (Paulo Freire)

Esse amor-paixão, antídoto contra toda forma de morte, também o ensina o poeta Manoel de Barros, que afirma: “Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós.”


Sobre que asas se atreveu a ascender? 

( W. Blake)

 

(este livro de Clarice é apenas uma sugestão)


 

Texto

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

 

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz. Este texto é uma versão de um capítulo de livro que escrevi.

[2] Texto elaborado pelo Prof. Elton luiz.