O QUE SIGNIFICA METAFÍSICA?[1]
A metafísica é a disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna,
a mais elevada, a mais afastada dos interesses meramente utilitários ou
pragmáticos. A palavra metafísica é composta de duas outras palavras que se
agenciaram: meta e physis. Erradamente se traduz “meta” por “além”. Isso pode
levar a imaginar que a busca pela metafísica seria como uma viagem de desterro,
um ir para longe, para o alto e distante. Às vezes perguntamos a alguém: “qual é sua meta?” . Isso pode
significar: “o que você quer alcançar? O que você deseja?” .Se alguém
perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia dizendo que sua meta é
ser uma árvore, uma árvore que dê frutos
e sementes. Se alguém indagasse às letras qual é sua meta, talvez elas
respondessem: minha meta é ser palavra poética no papel ou na boca de alguém
que canta. É pouco provável que letras tivessem como meta tornarem-se palavras
mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas de dignidade. Em metafísica,
dignidade é a virtude do que é verdadeiro, autêntico.
A meta de uma semente de abacateiro é tornar-se uma árvore: o abacateiro.
Mas a árvore que a semente será já existe na semente, como a sua razão de ser
ou finalidade. Essa árvore que existe na semente está além da mera existência
material da semente, porém não lhe está fora, distante. Essa árvore enquanto
meta da semente é sua essência. A árvore, enquanto essência, já está na
semente, mas não enquanto matéria. Essa essência é a forma. A forma é a causa
de a semente se tornar árvore. Uma semente de abacateiro não se torna um
abacateiro devido ao acaso: há uma razão de ser. Por isso, a semente tem na
forma a sua finalidade de existir. A essência-árvore é a causa de a semente se
tornar árvore. Contudo, não é uma causa que age de fora, tal como um cinzel
moldando o mármore. A essência é uma causa que age dentro, no ser mesmo da
semente, e dá inteligibilidade à sua existência individual de semente. É a essência-árvore que dá vida à semente. Essa
essência ou forma existe metafisicamente na semente.
Assim, meta não é o que está além no sentido de algo a ser alcançado.
“Meta” também é um movimento de alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico
não é o que está além do físico , como o céu está além do chão. O meta é o que
dá sentido ao físico, o organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer.
Uma realidade metafísica não é uma realidade distante e além, ela é uma
realidade diferente da realidade física, e não está além ou aquém desta, mas
junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial
é metafísico. Por exemplo, posso imaginar que estou a correr em uma praia,
embora eu esteja na verdade aqui sentado no sofá de casa. Essa imagem ou
fantasia não existe por si mesma, ela existe em minha mente apenas. Ela não tem
autonomia. Essa imaginação pode ser apenas o efeito de meu enfado de estar em
casa. Tal fantasiar existe apenas enquanto realidade psicológica. As realidades
psicológicas existem em razão das vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo
que sobre ele age, que explica o surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo
aconteceria se eu , ao invés de imaginar , me lembrasse da ocasião em que
estive em uma praia e corri sobre sua areia. Coisa diferente, no entanto, é se
indagar acerca do que é o eu, ou do que é a imaginação ou do que é a mente.
Para tais coisas, seria preciso formar ideias. E ainda mais: indagar acerca do
que é uma ideia! A metafísica não se encerra nos produtos da mente, ela indaga
acerca do que é a mente e também sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou conhece duas maneiras de se expressar. A
primeira delas se confunde com sua origem grega, ao passo que a outra nasce e
traduz a posição moderna, mais próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a
metafísica nascia de uma experiência. Não a experiência com algo já visto, mas
experiência com algo que põe no limite todo ver. Não era uma experiência
meramente teórica ou conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a
admiração ou o espanto. Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno
natural ou fato grandioso , tampouco espanto ou admiração diante de um prédio
enorme ou um artefato técnico feito pelo homem. O espanto era em relação à
existência. Não exatamente com a própria
existência daquele que se admira ou com
a existência de algo externo que se vê
ou percebe. O espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda,
imensurável, infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia
abarcar, com o olho ou com o pensamento, mas que estimulava o olho e o pensamento, mais do que
as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou
admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida
própria transbordar para fora e ir além (“meta”).
Essa admiração pelo infinito vinha
sem aviso, sem preparação ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego
ao habitual e familiar, para que o grego pudesse se familiarizar com o mais estranho e inaudito.
Era uma espécie de acordar de um sono, sono este ao qual a doxa chama de realidade. Esse despertar não se
fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o corpo, através de
um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o
inaugurar do ver no ato mesmo de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver.
Nesse olhar o conhecimento e a poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro
indistinto da vida , e esta convidava o
pensamento a ser o seu destino,
livremente.
Enquanto a metafísica grega se apoiava no ponto de exclamação, será o
ponto de interrogação a motivação da metafísica moderna. A metafísica moderna
pode ser expressa em uma pergunta: “por que existe o ser e não, antes, o
nada?”. A metafísica moderna introduz algo impensável para o grego: o nada.
Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada",
e sim ignorância do Ser.
Enquanto no mundo grego a metafísica constituiu o acabamento ou
fundamentação das ciências, no mundo moderno haverá radical cisão entre a
ciência e a metafísica. A ciência moderna se debruça sobre fatos ou fenômenos:
ela não indaga sobre o ser, ela procede mediante recortes que lhe darão seus
respectivos objetos. Assim, a física não estuda o ser, mas os objetos físicos.
A química não estuda o ser, e sim os objetos químicos. Para um cientista,
pensar o nada é loucura...além de perda de tempo. E mais perda de tempo ainda é
pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu o que é isso: o nada. Segundo Heidegger, a
ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve ainda dentro da história da metafísica, mas
como seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano
humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência.
Para Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos
experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos
apenas com a letra e nos fugiu o espírito.
[1] Texto elaborado pelo Prof. Elton Luiz como complemento às aulas.