segunda-feira, 22 de agosto de 2016

manoel e o menino

                                                              




link para artigo:

                                                               

(trecho)

                              MANOEL E O MENINO                                                    
                                                              
( por Elton Luiz Leite de Souza[1])



O homem seria metafisicamente grande
se a criança fosse seu mestre.
Kierkegaard [2]


O fundo da arte, com efeito, é uma espécie de alegria,
sendo mesmo este o propósito da arte.  Não, não há criação triste.
Gilles Deleuze




- Os dois manoeis
                      
Eu sou dois seres.
O primeiro fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral.
                                                     (...)
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.[3]


O poeta se diz “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza “brincativa”[4], ele é “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, não é menos vivo que o Manoel que há pouco nos deixou, o filho de Seo João e Dona Alice. Talvez   a saudade que sentimos deste último possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive sem distância com seus versos, e nestes vive cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”[5].
O “letral” não é apenas letra morta, sintática: “nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe”[6]. O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”[7].  
O primeiro Manoel faria 100 anos em 2016, se vivo estivesse. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Quantos anos faz? Talvez não se possa medir sua existência em anos. O Manoel-letral é só nascimento, invenção, como possibilidade poética de renascimento através de nós, que nos reinventamos também através dele. Sempre múltiplo, já descoberto e ainda por descobrir: como “afloramento de falas”[8].
Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”[9]. O autêntico devir-letral nunca é solitário ou sozinho. Manoel se torna letral para nos tornar também. Ser letral é ler, na letra, mais do que a letra. É se deixar ler também por ela, buscando outras relações na existência que não sejam apenas aquelas governadas pela sintaxe econômica, utilitária, academicista.
A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático, cuja vida findou aos 97 anos. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral, pura virtualidade que vive no sentido que o poeta inventou. De minha parte, o Manoel-letral é um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”[10]. Esse menino, afirma o poeta, é  “a criança que me escreve”.  O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.
 É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros. “Não, não há criação triste”[11].“Tristeza”, aqui, deve ser entendida no sentido de Espinosa. As paixões tristes diminuem nossa potência de existir, já as paixões alegres aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir tristeza e alegria. O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto daquelas tristezas, e mesmo estas são transfiguradas pela criação poética, e se tornam poesia, isto é, canto da palavra: “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”[12]. Pela alegria que a criação é, o Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.[13]




[1] Filósofo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite ( Rio de Janeiro, Faperj/7letras, 2010).
[2] Epígrafe escolhida por Manoel de Barros na Primeira Parte do livro Menino do mato.                                 
[3]Poemas rupestres, p. 45.
[4] “Nossa linguagem não tinha função explicativa, mas só brincativa” (versos do livro/poema Escritos em verbal de ave).
[5] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.
[6] Menino do mato, p. 11.
[7] Livro sobre nada, p. 70
[8] “Uma didática da invenção”, Livro das ignorãças, p., 7.
[9] “Biografia do orvalho”, Retrato do artista quando coisa, p. 81.
[10] Poema “Invenção”, Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[11] Gilles Deleuze, A ilha deserta , p. 174.
[12] Poema “Línguas”, Ensaios fotográficos.
[13] Poema "O menino que carregava água na peneira”, Exercícios de ser criança.

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- a programação de evento em homenagem ao poeta ( na Unirio), que acompanha o artigo, foi alterada. Segue a programação definitiva;
Programação
O evento terá quatro mesas. A primeira delas será intitulada “É preciso transver o mundo”. Acontecerá no auditório Paulo Freire,  na Unirio, no dia 24 de outubro, às 10h. Participarão da mesa: Mário Chagas , Salgado Maranhão , Mariana Hilgert e Gabriel Sanna.  A segunda mesa está prevista para o mesmo auditório e no mesmo dia, às 15h. A mesa será intitulada “Manoel de Barros: a sabedoria que não vem em tomos”. Farão parte da mesa:   Alessandro Sales , Paulo Vasconcelos , Paulo Oneto e  Elton Luiz Leite de Souza.
No dia 25 acontece a terceira mesa, às 10h, e tem por título: “Poesia não é para entender, poesia é para incorporar”. Estarão presentes à mesa: José Mauro, Renato Silva , Antônio Jardim e Ieda Tucherman. A quarta mesa será às 15h do mesmo dia: “Uma didática da invenção”. Comporão a mesa : Samarone Marinho, Luiz Henrique Barbosa e Mário Bruno . No dia 26, encerrando o evento, ocorre uma sessão de cinema, com projeção de  filme sobre o poeta: Língua de brincar, de Gabriel Sanna e Lúcia Castello Branco. Após a exibição,   uma conversa entre o cineasta Gabriel Sanna e Alessandro Sales, Mário Bruno , Elton Luiz Leite de Souza e Paulo Oneto. A sessão começará às 14h.A sessão de cinema e todas as mesas estão previstas para acontecer no auditório Paulo Freire.
A primeira mesa tratará da relação do poeta com as artes, ao passo que as mesas restantes  abordarão a poética do Manoel a partir das perspectivas que constituem o olhar singular de cada participante, ressoando a poética de Manoel com a filosofia, a antropologia,  a museologia, a literatura e afins. Os títulos das mesas , bem como o nome do evento, são versos extraídos da obra de Manoel de Barros.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

manoel de barros, deleuze e a desfilosofia

São 30, são 50 cadernos de caos.
                Preciso administrar esse caos.                    
Preciso de imprimir vontade estética sobre esse material.
(...) Tenho que domar a matéria.[1]
 Manoel de Barros

Poesia é delírio ôntico.
Manoel de Barros

Segundo  Gilles Deleuze e Félix Guattari,  “o não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual” [2].Esta “não filosofia” com a qual a filosofia entra em relação nada tem a ver com a opinião ou doxa. Esta “não filosofia” não é exatamente a economia, o direito, a história, a psicologia, etc. Esta “não filosofia” não é uma opinião ou uma disciplina constituída. A “não filosofia” assim o é porque não é conceito. Ela vem antes do conceito, assim como o embrião vem antes da criança, ou o casulo que vem antes da existência alada que sairá dele.
Para Deleuze e Guattari, a filosofia não é apenas relação de conceitos dentro de um sistema. Em todo sistema, um conceito remete a outro segundo uma lógica hierárquica, uma vez que há conceitos mais eminentes que outros, em torno dos quais os conceitos secundários gravitam como satélites. Assim é o conceito de “cogito” em Descartes, ou o conceito de “substância” em Aristóteles: eles são como sóis apolineamente centralizados, eles são o centro do sistema.
Em Deleuze e Guattari acontece algo diferente. Os conceitos não estabelecem apenas relações entre eles. Antes de tudo, cada conceito é uma relação com aquilo que não é conceito. O conceito não estabelece, de fora, uma relação com a não filosofia, pois ele é relação com a não filosofia :essa relação é sua "essência íntima", como dizia Espinosa. A relação com o não conceitual dota o conceito de uma abertura não sistemática, como um umbigo que o liga à sua gênese. Todo conceito traz seu fio de Ariadne, através do qual ele entra e sai do labirinto sem se perder ou carecer de consistência. Nada mais diferente de um sistema do que um labirinto... 
Deleuze e Guattari afirmam que os contornos dos conceitos são irregulares, como "formas em rascunho". Um conceito não possui limites,feito um triângulo ou quadrado, ele possui limiares: são espaços de trocas e agenciamentos, como as membranas de tudo o que é vivo.Deleuze e Guattari nos lembram que o termo "concerto", de orgiem barroca, é a tradução musical de "conceito". Um concerto é um agenciamento musical no qual cada instrumento possui sua voz e estilo: alguns solam e outros acompanham, mas este solar não é um centro de hierarquia, tampouco  o acompanhar é algo destituído de personalidade e singularidade. Um concerto é uma multiplicidade, assim como deve ser um conceito. Um conceito é um concerto, um agenciamento de elementos heterogêneos em variação concertante. Não diz de fato um conceito quem, ao falá-lo, também não cante : "também sei a língua dos passarinhos - é só cantar" , pois "sou fuga para flauta doce" ( Manoel de Barros).
O não filosófico , portanto, não é conceitual, ele é pré-filosófico. O pré-filosófico não é apolíneo, tampouco solar. Ele é horizonte, terra, fêmea, mãe, como devir-feminino.O pré-filosófico não é conceitual, jamais o será. Se a filosofia é o mundo do pensamento, o pré-filosófico é a terra do pensar, um pensar que também se sente, um sentir que se pensa.Esse pré não é um objeto ou coisa que o conceito representa, ele é sempre pré-coisa , como diria Manoel.
O pré é uma terra que o pensamento conquista. Conquista a quem? A filosofia não recebe, de presente, essa terra; tampouco é uma terra prometida. O nômade que habita o deserto conquista o deserto. Contudo, o deserto não tem proprietário, ninguém pode marcar nele linhas retas em seu solo, pois o vento vem e apaga. Conquistar não é fazer do conquistado uma propriedade, restando-lhe fora, especulando ou a deixando deserta de vida. Conquistar é povoar, habitar, encher de vida, mas sem recortar, sem construir muros. É com itinerâncias, é com trajetos e viagens, é se movendo sobre o deserto que o Nômade conquista um. O deserto não é nômade, porém ele torna nômade quem o conquista, povoando-o : “o nômade mora debaixo do próprio chapéu e abastece de pernas as distâncias”, afirma Manoel de Barros.
A terra que a filosofia conquista é um deserto sobre o qual ela traça mundos, trajetos, habitares, modos de ser, sem que exista, antes, um modelo a imitar de como ser. Pois antes dessa conquista, antes da terra pré-filosófica, não existe algo pronto, feito, acabado, que se possa herdar, reproduzir ou imitar.O que existe é o caos. Este não é um limite à conquista, mas aquilo sem o qual não há conquista . É a terra o que se conquista, não o caos. A terra  tem outro nome: consistência. Ter consistência não é ser inflexível ou rígido.Ter consistência é conquistar uma terra sem murá-la, sem fechá-la, sem finitizá-la. Toda conquista é um co-memorar do que se conquistou. Assim, a terra não é o fim do caos, ela é o começo da consistência.Toda terra conquistada ao caos é sempre terra infinita.A ciência finitiza, objetifica, gira em torno de objetos. A filosofia traça uma terra infinita, a qual ela conquista sem negar o caos. Nenhuma conquista nasce da mera negação, toda conquista é uma afirmação da capacidade que tem o pensamento de conquistar. Conquistar não prêmios, títulos, propriedades, poder. Conquistar a si mesmo, criando a si mesmo , fazendo do infinito a sua terra.
A filosofia não nega o caos, não o demoniza: ela conquista-lhe uma terra. Esta  é o inaugurar de uma distância mínima, que nenhuma régua tem como medir. Pois não é uma distância mensurável em centímetros, milímetros ou qualquer outra unidade de medida, por menor que seja. A distância que separa a terra do caos é semelhante àquela que separa a paisagem pintada e a matéria sem a qual não existe a paisagem pintada. A paisagem não é a matéria da tinta, mas uma distância não extensa que o artista conquista, como o fez Cezanne: do caos das sensações ele conquistou uma paisagem que  existe como distância não física conquistada à desordem das tintas.


                                             (Cezanne , Corner of Quarry)

         Deleuze chama de “crivo” essa distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais rica a terra que a ele se conquista . Quem semeia sabe: as terras mais férteis ficam próximas a vulcões.... Porém, maior se torna também o risco de se viver nelas. A linha de fuga, lembra-nos Deleuze, é muito próxima à linha de abolição. E o poeta?  É nessa questão que filosofia e poesia estabelecem singulares relações. É com a poesia, e não com uma disciplina estabelecida, que a filosofia encontrará uma companhia para a sua solidão : “odeio que rouba minha solidão sem oferecer autêntica companhia”, dizia o poeta-filósofo Nietzsche.
Talvez o artista, sobretudo o poeta, seja aquele que mais de perto vê o dragão. Novamente Nietzsche: “Quando você olha para o abismo, o abismo te olha”. A terra que o poeta conquista é o par do caos, é sua fêmea. A terra e o caos vivem  um amor que pode salvar ou matar, abolir. Não abolir a terra , mas ao poeta que, em deslimite , horizonta-se nesse amor .O poeta não cria conceitos como o filósofo: seu pré é imediatamente o caos do qual apenas a terra inventada pode ser o par. O poeta é o palco desse amor cósmico, tal como o amor Ariadne-Dioniso. O poeta também vive uma conquista, mas é uma conquista amorosa, na qual ele aprende a dizer, como Manoel , “eu-te-amo”  a todas as coisas.
Talvez tenha havido um único caso, o mais rico sem dúvida, onde a poesia acompanhou a filosofia, e a filosofia acompanhou a poesia, até o mais longe que cada uma pôde : o “pré” de cada uma coincidia com a mesma Natureza infinita ( íntima, no entanto,  a cada coisa finita ) . Isso aconteceu em Espinosa. O “acompanhar” é uma ideia que goza de especial importância nesse filósofo, assim como no concerto barroco ( no qual as vozes distintas acompanham umas às outras, polifonicamente: poli-fônico, múltiplas vozes em um "afloramento de falas"). Em Espinosa,uma ideia acompanha um afeto, mas é uma ideia que causa outra ideia, é um afeto que causa outro afeto. Uma ideia não pode causar um afeto, tampouco um afeto pode ser causa de uma ideia, assim como a mente não pode agir sobre o corpo, nem o corpo sobre a mente. Contudo, quando a alma ri, o corpo a acompanha. Quando o corpo corre, a alma o acompanha, correndo em ideia, espiritualmente. E quando a alma se alegra, o corpo a acompanha nessa alegria. O acompanhar é a maneira que duas coisas autônomas têm de serem necessárias uma à outra, sem deixarem de ser autônomas, singulares, diferentes. Eis uma boa definição da desfilosofia: a filosofia acompanhando a poesia, a poesia acompanhado a filosofia; o conceito acompanhando a sensibilidade, a sensibilidade acompanhando o conceito; o corpo acompanhando o espírito, e este ao corpo.




[1] “Cadernos de caos”, é assim que Manoel de Barros se refere aos livrinhos que ele mesmo fabrica e nos quais escreve, a lápis, suas poesias.
[2] O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992 , p.  13.







( este livro que escrevi se encontra esgotado na editora. Minha gratidão a Manoel de Barros e meus agradecimentos aos que o leram e divulgaram)


             (Jean-Féry Rebel [1666-1747], Les éléments, 1st. movement: Le Cahos)                

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

auroras...




O dia que nasce é a noite ao despertar.
Alvaiade


Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite.
Homero, Ilíada.

Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.
Manoel de Barros





Há um livro de Nietzsche intitulado “Aurora”.Talvez seja um dos títulos mais belos já dados a um livro.A aurora não  é mais a madrugada,a alta madrugada insone, mas também ainda não é o dia, a manhã do despertar. A aurora é um limiar,uma fronteira.A aurora  é um começo que começa antes que o dia comece.As manhãs nascem,os dias começam. Mas a aurora é recomeço.Não o recomeço do dia que atrás dela finda, e sim recomeço de haver sempre o começo de um dia novo,nunca antes vivido.A aurora está entre o que se viveu e o que se viverá , e a ambos  vivemos  enquanto dura o  Viver da aurora.
Ninguém consegue determinar quando a aurora começa, a aurora não tem horário. Diz-se “cinco da madrugada”, “seis da manhã”...Mas a que horas começa a aurora? Em qual ela termina?Será que a aurora não tem começo e fim, apenas meio?
Quando ela desponta,porém, sentimos a presença do novo. Isto é a aurora:o novo dia que já se mostra antes mesmo da manhã estar clara.A aurora nos pede olhos que não são os do despertar.Os olhos do despertar nascem quando se abrem os olhos que estavam dormindo.Já os olhos que vêem a aurora se tornam aurora também.Este é o poder da aurora:quem por ela se afeta se torna aurora também.O mundo que os olhos da lagarta vêem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão porque mudarão,antes,os olhos. É no interior do casulo que se fabrica a aurora dessa nova visão e,com ela, um mundo novo.  A aurora não é mais a promessa da obra , ela é a obra que se inicia.A aurora desfaz todos os monstros com os quais a noite zombou de nós.A aurora não é a nitidez da ideia clara,lógica, ela é a intuição poética do que nos desperta o pensar.A aurora é o embrião,o feto, o sujeito larvar que já vive antes das horas nas quais a ciência encontra seus objetos e métodos.
A aurora surge no horizonte, ela é o começo como horizonte.É belo ver as estrelas na abóbada escura e verticalmente alta, mas o que dizer da visão da aurora? Ver a aurora é abrir-se para uma visão que nos horizonta.
Algumas pequenas multidões se reúnem para ver o sol morrer ao fim da tarde, e para tal espetáculo batem palmas. Mas a aurora se dá em silêncio, e quem a vê não olha só para fora. Muitos vivem atarefados com seus dias, outros se anestesiam em suas noites. Mas quem já viveu a sua aurora?
A filosofia teve sua aurora. Nesta aurora ela se mostrou como poesia, pois era poeticamente que pensavam os pré-socráticos. Depois, veio  a manhã da filosofia: a Grécia Clássica de Platão e Aristóteles.Todavia,  a luz clara, apolínea,  esqueceu-se da aurora dionisíaca de que nasceu.O meio-dia da filosofia adveio com o sol da razão a pino: tal foi o Iluminismo. Mas este também passou: veio a noite, uma noite como epílogo, fim.Essa noite filosófica, noite das ideias,  coincidia com o inicio da sociedade desencantada, burguesa,filisteia,utilitária. A esta noite-fim,a esta noite-ocaso, não se seguiria uma aurora. Seguiram-se duas guerras mundiais e mais a ameaça de uma terceira, a derradeira. Talvez por isso que Hegel, o filósofo que escreveu sob tal noite, teria dito que a filosofia deveria ser  como a coruja que vê e voa , apesar do escuro.A coruja tem olhos para ver na escuridão.
 Contudo, essa visão histórica ,que culmina com a noite,advém da ideia de que a aurora termina quando começa a manhã, como se a finalidade da aurora fosse morrer para que nascesse a manhã.Nascida a manhã onde a razão tem sua vigília, desapareceria o mundo onírico , mundo das Musas, que o antecedeu.O erro da história,o seu “mais longo erro”, é começar sempre da manhã, pois lhe faltam olhos para ver a aurora.Os olhos que vêem a aurora são os “olhos de descobrir”, a visão que a capta é a “visão fontana”.  
Todavia, a aurora não está no passado: ela é o futuro, o futuro que já começa.A aurora é o virtual que se atualiza. Se imaginarmos que a aurora está no começo enquanto mero passado, nos desesperaremos com a noite-fim, com a noite-angústia, com a noite-morte. Mas se compreendermos ,como Nietzsche compreendeu, que a aurora é futuro, a veremos como aquilo que desfaz a noite, inclusive a terrível noite de uma época que se imagina não precisar mais de auroras, pois se compraz com os crepúsculos e outras derrisões.
 Concebida como  advento do futuro, a aurora se transforma na terra natal  que está na origem. Como diz Manoel de Barros,”quem se aproxima da origem se renova”. A origem não está no passado, a origem do dia novo é a aurora como dimensão da terra natal. “Natal” diz respeito ao nascimento.O natal não é o "inato".O racionalista Descartes acreditava que as ideias nos são inatas, pois  já nasceríamos com elas.O inato seria aquilo com o qual já nascemos,ao passo que o natal,segundo Deleuze, é onde nascemos, ele é o que nos faz nascer: ele está tanto dentro quanto fora.As ideias inatas  já existiriam prontas,elas não nascem.Já o natal nasce junto com aquilo que dele nasce,ele que nunca deixa de nascer enquanto o experimentarmos como a aurora que nos faz aurora de nós mesmos. A aurora é a terra  natal , ela é o “minadouro” de sentidos, ela é “forma em rascunho”.
O futuro assim concebido não é um mero presente que virá, para assim virar passado, mas a compreensão de que sempre haverá outro tempo que virá, não importando o quão interminável seja este tempo presente aparentemente sem futuro. Assim como a aurora antecede a manhã, é este futuro que nunca será dado, mas criado, que antecede todo  presente dado. É a aurora que nos ensina: para os que criam e inventam,é o futuro que vem antes, não o passado. Como escreve  Manoel:"A percepção vê, a memória revê, a imaginação poética transvê", isto porque ela é a aurora do mundo que vê.
Ao invés da coruja , não deveríamos aprender com os galos que,em meio a noite,  anunciam a aurora?



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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

o pássaro-poeta

As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar.
                        Rainer Maria Rilke


           Inventar uma tarde a partir de um tordo.
                        Manoel de Barros
          

Existe um pássaro, o tordo, que é portador de três espécies distintas de canto. O primeiro canto ele emite quando quer seduzir uma fêmea. Na presença de um rival, ambos “duelam” infatigavelmente através do canto, e aquele que cantar mais bela e potentemente terá como recompensa o direito de acasalar-se e perpetuar-se em sua prole. A segunda modalidade de canto é produzida por ocasião da disputa de um território. Novamente será a ocasião de um  combate entre dois ou mais pretendentes, combate este travado com a munição da melodia.
Reconhece-se a utilidade orgânica desses dois cantos, já que ambos servem à perpetuação da espécie. No entanto, há ainda um misterioso terceiro canto, portador de uma beleza ao mesmo tempo estranha e sublime. Nesse terceiro canto, é como se o pássaro fosse o portador de uma força que por ele atravessasse e o fizesse sair de si mesmo, sendo o seu canto o aspecto sonoro daquilo que , fixado num silencioso rosto humano, nomeamos como sendo uma catatonia.
Esse terceiro canto o tordo o produz em apenas dois momentos do dia: o crepúsculo e a aurora , o momento em que o sol se vai e o instante em que ele chega. O pássaro se põe então num extremo qualquer do seu território para  se despedir ou saudar a fonte de toda luz e cor. Ele mira, ele contempla, extático, o sol que o hipnotiza e o inspira numa melodia que se compõe do material obscuro dos limiares. E o que se ouve dessa maneira é um canto desterritorializado, produzido exatamente no momento da passagem do dia para a noite ou da noite para o dia.Como um Orfeu da mata,ele inventa sua Ária, ele ousa sua Sonata.
Todavia, tal canto se faz ao custo de um extremo perigo, dado que é a própria vida do pássaro que se vê em risco nessas horas. Pois aquela mesma parte da floresta que durante o dia é o território do pássaro, quando chega a noite    vem reclamar-lhe o título de proprietário a noturna coruja, que é o predador mais astuto e frequente do pássaro. E é exatamente o canto o elemento que pode denunciar à coruja a presença da sua possível presa. 
Não obstante o risco da morte, o pássaro se entrega ,absorto, na criação de um canto sem utilidade orgânica nenhuma, mas que expressa potentemente a essência singular da vida, a sua afirmação em relação à morte.  E nele pode-se ouvir exatamente o canto da vida, a vida sob a forma de canto . O pequeno pássaro cantor contra a grande coruja de Minerva.
Eis uma maneira simples, deliberadamente indireta , mediante a qual a natureza nos ensina  o que é a poesia e o que é o poeta.


trecho do livro:
















o que é o virtual? a invencionática





Tudo o que  não invento é falso.
Manoel de Barros


“É possível que eu vá à praia amanhã...Mas é possível também que eu vá ao cinema”.Estamos sempre usando essa  palavra : possível .Antes de tudo, o “possível”  é uma dimensão da vida psíquica : o possível existe  para nos dar alternativas, e assim nos possibilitar fazer escolhas. Imaginamos assim que ser livre é fazer escolhas.Julgamos que o futuro  é feito de possíveis coisas, não de coisas reais. Quando olhamos para o passado,porém, podemos ter arrependimentos se julgarmos que não fizemos a escolha certa quando tínhamos a oportunidade de fazer uma escolha: “escolhemos ir à praia, quando na verdade deveríamos ter escolhido ter ido ao cinema”.Algo nos diz então, e posteriormente, que não  fizemos a escolha certa, e esse algo   não estava no possível.Esse algo talvez seja a razão, a consciência, Deus... ou mesmo apenas os fatos.
Contudo, um simples exame da vida evidencia que  nunca estamos totalmente no possível. Nós estamos naquilo que imaginamos ser a realidade. A realidade não é o possível, isso parece óbvio aos olhos do senso comum. Entretanto,  imaginamos que tudo o que hoje é realidade um dia foi possível, e se tornou realidade seja pelas nossas escolhas, seja pelas escolhas de nossos pais, ou ainda pelas escolhas dos políticos,  dos cientistas...enfim,pelas escolhas de um Deus.Mas ao imaginarmos,metafisicamente,  que Deus  também procede fazendo escolhas ( hipótese do filósofo   Leibniz...), isso não seria considerar que o possível existe também para ele?Isso não seria limitá-lo? Deus também não poderia,assim como nós,realizar o impossível?
Aristóteles, por sua vez, não aceita que o possível e o real sejam intercambiáveis. Há algo no Real que nunca foi possível, e há coisas no possível que nunca serão totalmente reais. Há algo no Real  que sempre foi real: trata-se, segundo ele, da Forma. O uso do “sempre”  acompanhando a ideia de Forma indicaria  que ela é eterna,segundo Aristóteles. Se a Forma é eterna,isso significa que ela é sempre a mesma e nunca varia, apesar de variarem os indivíduos que ela determina.Os indivíduos variam não devido à Forma,mas por causa de outra realidade de que  também são feitos: a matéria. A matéria é aquilo que ,no possível, nunca será real totalmente, pois quem é real de verdade seria a Forma: a matéria sai do possível e se torna real na medida em que a Forma a determina a ser isto ou aquilo no corpo de algo já organizado pela forma.Aristóteles chamava de “potência” aquilo que existe apenas como possível.
Contudo,  somente podemos  viver a alternativa entre ir à praia ou ir ao cinema se, antes de tudo, nós  existirmos para poder fazer tais escolhas. Enfim, parece que aquilo que chamamos de possível, e para o qual se inclina avidamente nosso desejo através das expectativas e esperanças, parece que o possível não existe tanto quanto o que chamamos de real.Mas por que então não nos contentamos apenas com o real e esqueçamos de vez o possível? Por que criamos um possível que se opõe ao real?Por que necessitamos do possível?
Segundo o filósofo Bergson, além do real e do possível existe ainda uma terceira dimensão. Ele a chama de “virtual”. Muitos confundem o virtual com o possível, outros ainda reduzem o virtual ao possível. Essa confusão e redução  é danosa para a plena compreensão do que é   o virtual.Por que isso acontece?Isso acontece devido à nossa racional propensão de olhar para o novo com os olhos do que já é dado e conhecido, de olharmos para os processos com os olhos da forma, de olharmos para o infinito com os olhos do finito, enfim,de tentarmos ver Dioniso com as lunetas de Apolo.
Para Bergson, o virtual não é um possível, ele é real. Embora real, ele não está dado como o estão as coisas as quais chamamos de realidade, e que podemos tocar,medir,pesar.O virtual é real,  um real diferente daquele que chamamos e reconhecemos como o real  onde supomos estar, com todas as nossas certezas e opiniões.
Segundo a tradição, tudo o que é possível pode se realizar desde que não fira a lógica daquilo que já é real, desde que não transgrida a identidade do real. Essa identidade do que chamamos real não sabemos ao certo quem a fez...Alguns dizem que foi a própria razão,outros afirmam que foi Deus, e há aqueles mais pragmáticos que dizem que foi apenas o bom senso...Então, dentre as infinitas coisas que são possíveis,não podemos escolher qualquer uma.Não podemos  escolher o que fira a moral, a lei jurídica ou a lógica.Isso seria escolher o impossível. Nessa ótica, o possível é quase um fantasma, um sonho que temos de olhos abertos,sonho  este alimentado talvez  pelas frustrações daquilo que chamamos de realidade. Assim visto, o possível somente possui mérito se não transgredir as normas do real.O virtual , porém, não é o possível ou o impossível, ele é o necessário: ele é o necessário ato da criação.O virtual é o que  cria um novo real, ele é a realidade do novo.
Bergson diz que a oposição entre real e possível nasce de crermos ser o real algo dado,pronto,em si. Enquanto pensarmos assim, a criação e a invenção serão vistas como procedimentos mais ou menos imaginativos  que apenas inovam o que já é real, tal como a nova versão 2015 de uma marca de automóvel 2014.Confundiremos e reduziremos a criação  ao progresso.Quando olhamos para a criação e a invenção a partir de um real já dado, a arte se torna um clichê a serviço da opinião ou das vendas,seja a venda de mercadorias , seja a venda de ideias, o que acaba se tornando a mesma coisa.
Para Bergson, o virtual não é o possível, vez que o virtual também é real. Mas ele não é um real que se opõe ou nega .O virtual é uma realidade que se difere. Esta é sua natureza: a Diferença.O virtual  é diferente de tudo o que está dado,ele é diferente de tudo o que percebemos.Por isso,ele não pode ser reconhecido.Ninguém vê o virtual vindo,embora ele sempre chegue, novo.
”Virtual” procede de virtu ( assim como "virtude")"Virtu"  significa força.Força enquanto potência.Em Bergson, a potência não é um possível, ela é real.A potência não se opõe à forma,porém o encontro da potência com a forma põe esta última em estado de deslimite.Não é mais uma forma que limita,ela se torna forma em rascunho,como uma  membrana que aumenta conforme se complexifica seu núcleo,na imanência do qual cresce o embrião de uma vida nova.
O virtual não é algo sem força ou meramente abstrato ou universal. O virtual é o espírito, a força ou potência do espírito, do intangível;o atual é o corpo, o tangível. Espírito provém do latim "spiritus", que é a tradução do grego "pneuma", sopro. O virtual é um sopro de ar novo que impede que sufoquemos. O tangível é uma atualização do intangível,o corpo é uma atualização do espiritual. Toda atualização é uma produção.O intangível produz o tangível não como um tangível produz outro tangível;o espírito produz o corpo não como os corpos se produzem. O intangível  produz o sentido do corpo, sentido este inesgotável, e que nunca vai coincidir com um significado dominante invariável. O virtual não é Forma, ele é Força.O espírito é poesia, sopro poético.O virtual produz o atual, mas permanecendo diferente deste. O virtual não é isolado ou transcendente. É do virtual que vem a força que mantém vivo tudo o que é atual,mantendo-o   sempre aberto .O virtual é horizonte. “A poesia nos horizonta”, já nos dizia Manoel de Barros.
 O virtual, o espírito, é Diferença.Mas o virtual se difere de quê?Antes de tudo e em primeiro lugar, ele se difere de si mesmo, assim como a fonte se difere de si mesma quando produz um riacho que dela nasce e brota, permanecendo-lhe ligado, por mais longe que vá.O virtual é a generosidade que cria e que permanece ligada ao que cria.
Ao diferir de si próprio o virtual produz. O que ele produz? Ele produz aquilo a que chamamos de atualidade.Ao invés do par dicotômico,às vezes conflitante, Real/possível, Bergson nos fala de um impulso, de uma fonte. Esse impulso é fonte e riacho, ele é real de duas maneiras,e não apenas exclusivamente de uma. Para Bergson, então, há dois tipos de realidade: o virtual e o atual. Mas essa realidade somente parece ser duas se nos colocarmos na perspectiva do atual.Quando nos instalamos no virtual,que é o todo movente , percebemos que só existe uma realidade que se autoproduz como duração, impulso.
Duração não é a mesma coisa que o tempo medido por cronômetros e relógios.O tempo do relógio é o tempo espacializado e contado a partir de pontos descontínuos,os quais chamamos de hora, minutos, segundos,milésimos de segundo...O tempo do relógio é o tirano de nossas expectativas.Cada ponto do tempo cronológico é exterior ao outro.O tempo do relógio é o tempo quantificado, isento de qualidade e intensidade.  
O virtual não é esse tempo descontínuo e que  produz descontinuidade, sobretudo a descontinuidade entre o real e nosso desejo.O virtual é um continuum,uma continuidade. Não a continuidade de uma coisa que segue sendo a mesma enquanto atravessa o espaço, tal como um carro que muda de lugar atravessando os pontos do espaço, mas que permanece a mesma coisa: um carro.O virtual muda enquanto ele avança , ele nunca é o mesmo em cada momento onde ele se atualiza. O virtual se atualiza mudando,variando,devindo: devindo outra coisa.Cada atualização do virtual  é, por isso mesmo, uma invenção ou criação.Ele é a continuidade daquilo que muda em cada momento do seu processo.Ele é a continuidade da mudança: ele é desterritorialização absoluta,horizonte absoluto.Ele é abertura.Ele não é a expectativa de que as coisas mudem: ele já é a mudança que nos liberta das expectativas,sobretudo as expectativas das falsas mudanças.
Onde está o virtual? Ele está em tudo,desde que tenhamos olhos para vê-lo. São os “olhos do espírito”,como diz Espinosa, é a “visão fontana”, nos provoca Manoel de Barros.Não se pode olhar para o virtual com os olhos do atual,embora o virtual sempre produza olhares atualmente que  possam vê-lo. São olhares que nunca vêem apenas o que está dado, são olhares que vêem não as coisas como um “quê”,e sim vêem  o “quem” que está nas coisas,como dizia Guimarães Rosa.E o “quem”, o agente,  é sempre um processo, um “sujeito larvar”, diz Deleuze. O atual não é exatamente o presente. O presente passa, ele passa em razão do futuro.O atual se atualiza se diferenciando em relação a si mesmo, aberto ao virtual.
O virtual é um impulso.Quando nos impulsionamos para saltar,chega um momento em que, após corrermos,  tiramos os pés do chão e ,atravessando o vazio do espaço, caímos em outro ponto do espaço,pisamos em um lugar novo. Segundo Bergson, o virtual não é um impulso da vida,ele é  a própria Vida como impulso. Para se impulsionar, a vida se apóia nela mesma,corre sobre ela mesma e cai em si mesma, nova.Ela não salta para fora de si mesma: seu impulso é criação de si mesma,diferenciando-se,produzindo diferenças, sem se separar de si mesma.A vida não cai longe de si mesma,mas sempre cada vez mais próxima.O impulso da vida é em direção à vida  por intermédio da vida.A vida se impulsiona criando vida nova.
Todo processo de invenção vai do virtual ao atual.Aquele que cria já se instala,de alguma maneira,  no virtual:ele se instala se desterritorializando, produzindo uma linha de fuga.Mas entre o virtual e o atual não existe uma fronteira demarcando as duas realidades,como a linha de uma fronteira. A linha de fronteira só existe para separar duas coisas que já lhe pré-existem prontas.Assim,o “ponto” onde o virtual se atualiza é o mesmo ponto onde ele se difere de si mesmo como processo de criação de um atual.O atual não é semelhante ao virtual,como se fosse uma cópia.O virtual não é o Modelo do atual.O virtual é uma Diferença que se repete naquilo que dele se difere: ele se repete diferente.O virtual não “progride” em cada atualização que dele nasce. O virtual não progride: ele se difere, e é através dessa diferença que ele produziu que podemos perceber a Diferença como produção, como o Deus-Natura de Espinosa.Somente quando o atual afirma sua diferença é  que ele se torna “semelhante” ao virtual:ser semelhante ao virtual é ser diferente, é não ter modelos prévios.Em tudo o que é atual devemos achar o virtual que o fez nascer:na política, na biologia, nas artes,nas maneiras de se viver.Achar o virtual não é negar o atual,e sim  compreendê-lo e,quem sabe, agir sobre ele para mudá-lo.Fala-se muito em se ter consciência histórica,para assim alimentar uma consciência crítica. Mas do virtual não se pode ter consciência, e a crítica que ele enseja é inseparável de uma clínica que nos cura de apenas negar o atual em nome de um ideal sem força.
 É da sua diferença em relação ao virtual que o atual nasce : é da  sua  diferença que o atual nasce, pois ele próprio é uma diferença. É permanecendo ligado ao virtual que o atual pode (re)nascer - diferente de si mesmo,mas semelhante ao virtual. O virtual é Diferença pura; o atual é diferença nascida dessa Diferença.
Se formos do atual ao virtual chegaremos a um ponto em que a Diferença, enquanto produtora, mira a sua diferença produzida, e esta àquela?Mas esse ponto não será como um espelho que mostra o modelo e seu reflexo. Diferentemente, esse ponto é semelhante ao de uma metamorfose de uma Diferença que muda para continuar a ser ela mesma,atualizada.E a diferença atualizada, o atual, se abre ao virtual de que proveio e permanece ligada, para reinventar-se terra nova: não terra possível pela qual anseia o desejo neurótico,que confunde o desejo com o prazer, Dioniso com Hedon,mas terra do desejo.E a terra do desejo só existe desterritorializada,como habitação dos nômades,dos inclassificáveis,dos marginais,dos que são “Ninguém”,como atesta Manoel de Barros,ou dos ex-estranhos, como escreve Paulo Leminski. A terra do desejo é ,como diria o poeta, um nadifúndio:não porque  lhe falte tudo,mas porque  não lhe falta nada.Um virtual é um nadaO Livro sobre Nada é o livro que o ensina.O virtual não é informática, ele é invencionática.
Ser semelhante não é ser idêntico.Uma semelhança é produzida a partir da diferença, ao passo que ser idêntico  é negar a diferença. O semelhante à diferença é o diferente.O que é diferente não é uma evolução ou  involução, ele é o novo.E do novo não há modelo.O modelo 2015 de um carro 2014 não é um novo carro,mas a reprodução de um modelo que se quer o mesmo como marca.
O atual não é uma forma estática. Todo atual é inseparável de um processo de atualização. Todo atual é um território.E todo território nunca está fechado,uma vez que ele é inseparável de uma territorialização.Assim,todo atual é uma atualização, a começar pelo nosso eu atual, nosso pensamento atual,nosso ser atual. Toda atualização é, em verdade,uma criação, uma invenção. Mataremos o virtual se o olharmos de acordo com aquilo que é atual. Não só mataremos o virtual,também  tornaremos o próprio atual  sem sentido, e que facilmente se deixará (auto)destruir. Uma das formas de um atual se destruir é definir-se como um “Pós” alguma coisa.O perigo do atual é quando ele se imagina poder existir sem um virtual, e é dessa pretensão que nasce exatamente a ideia de um real que se torna juiz do possível, que se quer a medida do possível.Outro perigo é quando o atual trata o virtual como um atual antigo,clássico, no qual o atual busca seus cânones , ou ao contrário  o ataca  com  agressividade iconoclasta.O virtual não é um antigo atual: ele não é clássico ou moderno e,por isso, nenhum atual lhe pode ser “pós”.
 Contudo, o virtual não é um campo de escolhas possíveis,ele é a dimensão da criação.O virtual não é uma coisa, nem o processo de uma coisa.Ele não é apenas político,cósmico,vital,ontológico,poético. Ele é tudo isso,desde que apreendamos mais o processo do que os nomes diferentes pelos quais o chamamos.Ele é o processo do qual nasce toda coisa,bem como todo agente.O virtual é o Deslimite:uma Oficina de Transfazer,como nos ensina Manoel de Barros. No virtual  existem apenas as "pré-coisas". O "pré" não indica que lhe falta algo para ser uma coisa. Ao contrário, o "pré" expressa a existência de uma realidade que vem antes de toda coisa. Há sentidos que não podem ser expressos por substantivos, advérbios ou mesmo verbos.  Em Manoel, assim como em Deleuze,  os prefixos  tornam-se ferramentas para a artesania de um sentido a inventar. "Pré-fixo"= o que vem antes de todo fixo. "Fixa" é a forma, o limite. As formas em rascunho, as pré-coisas...antecedem a todo fixo, a todo acostumado que o uso consagra e constitui cartilha. O virtual antecede a todo limite : ele é experiência com o deslimite.
Quando Espinosa dizia  que "ninguém sabe o que pode um  corpo", não estava a  referir-se a um corpo atual, dado, orgânico, narcísico. Ele se referia à parte virtual que todo corpo é. É na atualidade que um corpo se encontra com outro, desse encontro podendo nascer a alegria ou a tristeza, o amor ou o ódio.Porém, o corpo infinito da natureza é a virtualidade da qual cada corpo singular é um modo, uma maneira de ser, uma atualidade. Um corpo somente possui limites em sua relação com outro corpo também limitado. São os seres limitados , finitos, que se autolimitam. Uma onda limita a outra, pois cada uma possui um limite. E é esse possuir cada uma seu limite que possibilita os choques ou a destruição de uma pela outra. Contudo, cada onda também é uma expressão do oceano. O oceano não limita cada onda, uma vez que o infinito não pode negar-se, tampouco pode a onda negar o oceano e ainda ser onda...O oceano é sempre produtivo, afirmativo: cada onda é uma modificação dele, e ele permanece imanente a cada uma de suas maneiras de ser. Quanto mais uma onda afirma o oceano, mais ela se torna a onda com a qual o bom  surfista deseja se agenciar e explorar.O que vale para nosso corpo e para o corpo da onda, vale para todo corpo, inclusive o corpo da linguagem. O corpo da linguagem não é a atualidade do "significante" apenas, ele também é o corpo virtual do sentido . O limite é sempre uma abstração nascida de uma vida que perdeu seu virtual, feito uma onda que não se percebe mais parte do oceano ( ou, o que é pior, que se acha um oceano...). É na relação com o virtual que um corpo deslimita os limites que o prendem a um limite que ele cria para si mesmo. 
Para os que vivem e sentem a necessidade do criar, essa necessidade nunca é vivida  uma questão de escolha. Perceber tudo o que é atual como o fruto de uma atualização é perceber,ao mesmo tempo, que tudo é processo, produção:tudo é forma em rascunho. O atual nunca pode se separar do virtual que o fez e faz nascer, assim como o fruto que permanece ligado à árvore. Contudo,  mesmo essa imagem tem seus limites, dado que  a árvore também é algo atual. E o virtual nunca poderá ser totalmente atual:pode-se especular acerca do fim da história, mas o virtual somente poderá ter fim se for assassinado pela mediocridade de um modo de  vida que não apenas perde o virtual e o possível, como também se torna impossível para si mesma.
Nossa liberdade está em nos tornarmos agentes dos processos de atualização que nos constituem, e isso não é uma questão de escolha ou expectativa futura,mas de necessidade sempre atual .