sábado, 26 de outubro de 2013

artigo





Título do artigo publicado na Revista Museu: "Museologia e mitologia"

Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=38265

(trecho)

 Introdução
"Acervo" procede de "cérvix", que significa  "cervical", e assim é chamada a nossa coluna: coluna cervical. No corpo, a coluna cervical sustenta a cabeça.Na cabeça está não apenas o cérebro, pois nela também estão os pensamentos,as idéias, as inquietações. Um acervo não tem sentido em si mesmo, ele não é um fim em si : como a coluna cervical, ele deve ser um instrumento para servir de apoio a nossas idéias, sonhos, desejos, experimentações.É com a ajuda da coluna cervical que a cabeça se mantém erguida, para assim olhar o horizonte, e o mesmo deve nos proporcionar um acervo, para assim ampliar, de forma rica,  nosso conhecimento.Um acervo nunca deve ser um fim, mas sempre um meio : meio de descoberta, de conhecimento, de potencialização.O acervo não remete apenas ao passado: do presente ele nos interroga sobre o futuro.  
A mitologia grega é patrimônio cultural imaterial da humanidade, e não apenas patrimônio exclusivo dos gregos de outrora.Enquanto patrimônio , a mitologia não fala apenas do passado, ela toca  em questões que concernem à humanidade de não importa qual tempo.Como dissemos, a mitologia é um patrimônio imaterial. Como conservar o imaterial? Todo processo de conservação almeja dar aspecto perene ao que é conservado. A conservação é , de certo modo, uma luta contra o tempo,  para assim tentar preservar uma identidade , uma memória.
Todavia, o imaterial não é tangível: ele não pode ser pesado ou mensurado, tampouco pode ser guardado em vitrine. O imaterial somente pode ser preservado quando lhe damos vida, quando o fazemos viver. E vida é movimento, calor, afeto, espaço e tempo. A perenidade da vida é a sua constante reinvenção.
Onde vive o imaterial? Onde ele pode ser conservado? O imaterial vive em nossa alma, e esta nunca é uma vitrine. A alma é sempre abertura, encontro. Dar vida ao patrimônio cultural imaterial é , ao mesmo tempo, aumentar a vida da nossa alma, para assim fazê-la compreender que ela é parte desse patrimônio: sem ela esse patrimônio não vive e nem faz sentido.Por isso, "a preservação do patrimônio imaterial implica uma re-criação permanente"( Convenção da UNESCO para a salvaguarda do patrimônio imaterial, aprovada em outubro de 2003).A essência do patrimônio imaterial é a construção do Sentido.
 Esse patrimônio de que estamos falando não vive apenas na alma de Homero ou Hesíodo, tampouco ele reside apenas na alma grega. Esse patrimônio somente pode viver quando despertado: quando despertado na alma daquele que com ele entra em contato, pois preservar esse patrimônio é, ao mesmo tempo, potencializar a alma humana. Potencializar não apenas sua capacidade de conhecer, como também, e sobretudo, a sua potência de sentir, de fabular, de ludicizar sua existência. E este é o sentido fundamental da educação, da qual a educação museal é parte integrante.
A origem das Musas está associada a um acontecimento: a experiência de uma vitória. Não qualquer vitória, não se trata de um vencer um inimigo apenas externo, pois muitas vezes o inimigo se encontra dentro do próprio homem. Assim, não se pode compreender perfeitamente toda a riqueza que está contida nas Musas se não se atenta para o fato de que elas nasceram para co-memorar, e trazer novamente à memória, o fato de uma vitória: a vitória sobre tudo aquilo que representa a guerra, a violência, a ignorância, a incompreensão, o ódio, a avidez. As Musas celebram a destruição do ódio e a construção da cultura, do pensamento e da arte. As Musas  são, ao mesmo tempo,  preservação e criação, memória e imaginação, passado e futuro.
Em geral, é sempre citado o fato de que as Musas são filhas de Mnemósyne, a Memória. Todavia, perde-se muito do que as Musas expressam quando não se ressalta que elas também são filhas de Zeus, que é a divindade que expressa a justiça enquanto virtude ética.  Desse modo, musealizar algo também é um ato ético. A patrimonização é igualmente a construção de uma consciência ética."A dimensão política do projeto museal não se manifesta somente no nível mais elevado, aquele que envolve o Estado; pois ela se inscreve também em um contexto sócio-cultural e econômico , local e regional, e em relação ao qual o museu interfere".[i]  
1- Certa vez as Musas passaram por uma pequena aldeia. Uma das características das Musas é que elas fazem cantar. De “cantar” vem “encantamento”. As Musas transformam quem as vê. Não há quem as veja e permaneça o mesmo. Como diz o poeta Manoel de Barros: “Outra pessoa desabre em nós”. Uma pessoa melhor, posto que mais viva, mais intensa, reconciliada com o devir da vida, e que percebe que vida e arte são o mesmo.  Segundo o mito, as Musas não apareciam em qualquer lugar: elas se deixavam ver apenas onde existiam fontes, fontes já visíveis e fontes ainda por descobrir; de tal modo que muitos, sob o poder das Musas, achavam em si mesmos fontes e nascentes que nem suspeitavam existir.É o que parece dizer Manoel de Barros , quando afirma que “o poeta possui uma visão fontana”, uma visão que é fonte do que vê, pois ela não vê apenas o já conhecido, ela vê sobretudo o que ainda é apenas rascunho, e que nasce primeiro no desejo.
Encantados por aquela visita, os homens da aldeia começaram a cantar. Esqueceram as tristezas, as derrotas, as decepções, as intrigas, as invejas, a cobiça; esqueceram de si mesmos, encontraram a si mesmos, e começaram a cantar. Cantaram durante o dia e durante a noite; durante mais um dia e outra noite; e mais outro dia...e  outro...e outro...e outro...Não mais comiam ou bebiam, nada lhes faltava. Não tinham mais carências, pretensões e esperanças na felicidade prometida apenas para  amanhã. Pois eles já tinham tudo, e esse tudo não era uma coisa, mas um processo, um afeto: o cantar   a vida, o cantar tudo aquilo de que ela é feita, toda a sua multiplicidade e heterogeneidade; cantar sem motivo, sem data especial. Apenas cantar por terem visto as Musas.
Então, aos poucos emudeceram. Sem perceberem, forçaram um limite, transpuseram a fôrma humana. Morreram.
Ao verem aqueles corpos inertes, as Musas lhes concederam uma metamorfose: os transformaram  em cigarras. Quem ouve as cigarras pode sentir um pouco do encantamento que lhes gerou uma metamorfose. Ao contrário dos passarinhos, que mesmo presos em gaiolas continuam a cantar, as cigarras morrem se forem aprisionadas: elas somente cantam em liberdade, pois elas cantam a liberdade. Elas cantam de graça.
As Musas sempre eram acompanhadas pelas Graças. Estas eram três irmãs que sempre andavam de mãos dadas, nunca ficavam sozinhas. As Graças eram a alma de toda beleza. As Graças lembravam aos homens de que as coisas mais importantes não podem ser compradas. Não se pode comprar uma amizade, não se pode comprar um amor, não se pode comprar uma alegria, não se pode comprar um dom. Essas coisas ganhamos de graça, desde que nos cultivemos para nos tornar dignos delas.  Em uma conversa gratuita muitas vezes aprendemos coisas que não conseguimos aprender quando estudamos algo  de forma obrigatória. A desgraça é a ausência da graça. Não apenas recebemos uma graça, também somos capazes de ofertá-la. E quem mais oferta a graça mais rico fica: fica cheio da graça.
A razão profunda de um museu ser uma instituição sem  fins lucrativos reside no fato de que ele guarda e cuida de bens que não têm preço. Como indagam André Gob e Noémie Drouguet , "o papel econômico na gestão dos museus atualmente  não corre o risco de o fazer perder sua alma?".[ii]
Os poetas e os artistas em geral são essas cigarras nascidas da metamorfose de um encantamento. E é isso que se espera de um  museu : que ele seja um lugar de encantamento e metamorfoses.
2-Na Grécia Antiga vivia Orfeu. Poeta, Orfeu cantava suas poesias, mais do que as escrevia. E assim ele mais do que as recitava: ele as vivia. "Orfeu" significa: "o que toca a lira", o músico que exerce a arte da lira. A lira é um instrumento constituído por cordas singularmente  diferentes, cujo tocar exige sutil percepção das combinações heterogêneas, suas convergências e divergências.Muitos comparam a alma à lira : assim como esta , a alma é constituída de diferentes “cordas” ( o desejo, a imaginação, a razão, a memória...), cujo tocar adequado requer um autoconhecimento que demanda esforço e tempo.A riqueza de alma, a sua saúde,  é o seu tocar em harmonia: esta nos protege das mil formas de loucura que podem eclodir quando nosso ser de-lira ( "delirar" é , literalmente, “sair fora da lira”, o que acontece quando a alma, alienando-se, não consegue mais encontrar sua harmonia ).Era com sua lira, com sua alma, que Orfeu cantava.
A palavra "poesia" provém de "poiésis", que significa, em grego, "produção". Sob essa perspectiva ,a palavra poesia tem um sentido bem maior do que sua associação habitual a poemas.  Para os gregos , o termo “tekné” (de onde deriva “técnica”) também significa “produção” ou “fabricação”. Todavia, a técnica produz coisas em razão de uma utilidade , com ênfase no produto ( objeto) e sua função,  ao passo que a poesia revela também o produtor ( “o quem das coisas”, como dizia Guimarães Rosa) , seus desejos, seus sonhos, sua imaginação ( pois tudo  que o  homem cria é fruto do seu desejo e está inserido em um contexto, em um modo de vida). .A técnica é criatura do homem,mas por vezes também se transforma em sua senhora e dona, quando o aliena e o submete a uma visão instrumental da vida ( como o mostra Chaplin no filme Tempos Modernos).


[i]  André Gob e Noémie Drouguet, La muséologie: histoire, développements, enjeux actuels,Paris, Armand Colin, 2011, p. 76.

[ii] Ibid, p. 18.

[iii] Poema “Apontamentos”, livro: O eu profundo e os outros eus, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.

[iv] ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição, p. 70.

[v] “Polifonia” é uma ideia da arte barroca, sobretudo a música, e significa: “múltiplas vozes”.

Outras referências:

BRANDÃO, Junito. Mitologia grega – vol. I.  Petrópolis:Vozes, 1998.

CHAGAS, Mario. Os Museus na Sociedade Contemporânea: Um Olhar Poético. III Encontro Regional da América Latina e Caribe-CECA/ICOM Museus e Patrimônio Intangível - o patrimônio intangível como veículo para a ação educacional e cultural. : FAAP, 2004, v. , p. 17-30.

GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo. “Exposição: texto museológico e o contexto cultural”, Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional / Org. Maria Cristina Oliveira Bruno. ICOM – Brasil, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Volume 1- 1ª Edição, 2009.


sábado, 19 de outubro de 2013

gravidade





Apesar de invisível, e de quase  não notarmos sua presença, o ar pesa, o ar tem peso. Quando ele se desloca, por exemplo, é capaz de mover corpos. Segundo os físicos, de nossa cabeça e costa até o último estrato da atmosfera terrestre há uma quantidade de ar imensa, cujo peso equivale a duas toneladas! Se fôssemos até o fundo do mar e houvesse quantidade de água semelhante sobre nós, simplesmente seríamos esmagados pela pressão , pois a água pesa mais do que o ar. Mas o ar também pesa. A criança quando começa a se pôr de pé  é a esse peso imenso que ela, pouco a pouco, ergue sobre as costas. Ela o faz porque não o levanta apenas com os músculos ou com a vontade, tampouco com o “livre-arbítrio".Ela  levanta esse peso  com a potência vital de uma crença que desconhece o impossível. A criança que se ergue expressa  uma afirmação incondicional, sem a qual a vida não venceria tudo aquilo que a desafia. Os cientistas  afirmam que o período da vida no qual fomos mais potentes corresponde àquele onde éramos fetos, embriões. E mesmo a criança nascida vence desafios que derrotariam o adulto. Somos mais fortes quando ainda somos  “formas em rascunho”,diria o poeta Manoel de Barros. E assim permanece o poeta mesmo  quando adulto: como forma em rascunho.
O filme “Gravidade”  se passa em uma paisagem incomum:  a órbita da terra, um espaço limítrofe entre o conhecido e o desconhecido, o ordinário e o extraordinário. Três astronautas se encontram na seguinte missão: consertar a lente do telescópio Hubble. Eles se acham entre duas realidades: a terra e o infinito.
Há três formas básicas de enquadramento no cinema : o close ( ou primeiro plano), o plano médio  (ou plano psicológico) e o plano americano ( ou grande plano). Neste último, em geral o personagem aparece imerso em um fundo que o engloba. No faroeste, por exemplo, há esse grande plano quando são mostradas  carruagens  atravessando  o deserto árido. Em filmes urbanos, é o anonimato dos grandes prédios que constituem o fundo onde se desenrolará a cena com os personagens. O fundo mostrado passa informações e contextualizações sociais, históricas  ou geográficas. Ele ajuda a situar a história.
Mas e quando o fundo é o “sem fundo”? E quando o fundo é o infinito desconhecido? O infinito não é histórico ou social. Ele não é uma paisagem. O infinito não é um céu que vemos da terra. O infinito é, por isso mesmo, “abstrato”, pois nele não há nenhuma codificação ou estrato. “Ab-strato” :o que existe fora dos estratos. No filme, este é o fundo: o que não tem limites e não pode ser enquadrado, em todos os sentidos. É com esse fundo desconhecido  que os personagens são confrontados. Em vários momentos, o filme mostra o close de um rosto imediatamente circundado por um mistério que não se pode conhecer, e esse mistério exterior, do lado de fora, reflete-se no próprio rosto e realça a intensidade do afeto que desfaz os mundos conhecidos, tanto o mundo físico  quanto o psicológico.
Um dos personagens vê ao fundo a terra, e nada vê de sua vida conhecida. O céu se torna um fundo abstrato que põe em primeiro plano tudo o que ocorre na terra lá embaixo. Um acidente ocorre: satélites destroçados por mísseis russos se tornam projéteis disparados que destroem tudo o que encontram pela frente. Apenas uma astronauta sobrevive. No entanto,sua alma encobre um drama vivido.O fundo eterno do céu silencioso acentuou o drama que ela vivera na terra, pois ela perdera sua filha ainda criança, e esse acontecimento a fizera  maldizer a vida. Ir para o espaço foi a forma que ela encontrou de ir “para o espaço”, de “sair do ar” , mas o sofrimento a acompanhou  e a fez perceber que ir ao espaço  foi a forma que ela buscou  de tentar  fugir  da vida. Sob o fundo eteno e escuro,tudo se fazia claro.O efeito do contato imediato com o infinito foi  um contato direto dela com os conteúdos psíquicos mais íntimos: a amplidão do espaço ampliava o que havia de pequeno em seu íntimo,como se o próprio telescópio Hubble estivesse apontado para ela.Mas olhar para esse íntimo ampliado ela não o podia como cientista, que só vê o que está diante e pode ser medido; e assim ela descobriu que sua ciência era uma forma de ignorância.
 Quando subimos ao alto da montanha, aumentamos nossa visão do horizonte. E mais ainda a aumentamos se voamos muito acima do chão.Porém,quando o astronauta sai dos limites da terra,  ele próprio adentra a um horizonte absoluto que nunca se desfaz, pois tudo se torna horizonte absoluto. E a vida cotidiana, aquela na qual  imperam os gestos, os hábitos,os costumes...tudo isso some e se torna tão ou mais distante do que as estrelas. O horizonte absoluto opera uma desterritorialização que nos faz ver a Terra. Curiosamente, a terra não aparece mais sob os pés: ela surge sempre no filme acima das cabeças dos astronautas, ela aparece mais como idéia do que como realidade tangível.A terra surge de forma inseparável da maneira  como cada astronauta a pensa.
Sozinha, presa a uma nave que ela mal sabia como  dirigir, ela decide morrer(desligando o oxigênio que nutre a cabine). Na nave  chegam apenas as ondas de um rádio amador,uma vez que o contato com a Nasa se perdeu totalmente. Sons simples alcançam  a nave:um cachorro que late, uma criança que chora e o pai que canta uma música de ninar.  Intensamente tocada por esses simples sons, a astronauta   também começa cantar, e assim ela produz para si um ritornelo.Lágrimas saíam de seus olhos e, com a ausência da gravidade,formavam pequenos espelhos esféricos e translúcidos que gravitavam ao redor dela ,como ao redor da nave gravitavam as estrelas.Nos sons que vinham da terra, e que nasciam da cena mais comum e simples,  nesses sons vinha mais do que o sentido habitual de tais fatos: nos sons  vinha o sentido da terra, cujo sentido nunca é dado, dado que ele existe para ser criado. Opera-se então  na astronauta uma clínica cuja terapia a própria  vida fornecia, e nada mais. Ela decide lutar pela vida e se arrisca a voltar à terra. O infinito fez-lhe uma clínica,o infinito que também é choro e canto do mais simples ser vivente.
 A nave adentra a atmosfera e cai no mar perto da costa . A nave afunda rapidamente , porém a astronauta consegue se soltar e sobe à superfície, e não foi apenas à superfície do mar que ela retornou .Ela sobe e respira profundamente, novamente ela respirava como quando nasceu.Ela nada de costas olhando para cima. O infinito escuro , abstrato como fundo, não pode ser mais visto: ela vê um céu azul com nuvens. Ela chega à praia e ali fica deitada de bruços, pois seus músculos estavam desacostumados com o esforço que a gravidade exige para que fiquemos de pé. Ela agarra um punhado de terra e agradece .  Com o mesmo esforço da criança que aprende a andar , ela  vai pondo-se de pé; um sorriso lhe escapa; e se ergue tendo ao fundo a natureza da qual ela faz parte.Diante dela, e dentro dela, a mesma coisa: a Pura Reserva. E é com o esforço do seu conatus, do seu desejo, que ela se encontra e se liga a ambas as naturezas ( que são, no fundo, uma só).
Enfim, ela entende com seu espírito e com seu corpo que o peso da  gravidade física  é nada diante do peso que pode ter uma existência para si mesma quando dela se ausenta ou se enfraquece  a  força vital e inconsciente   que , agindo em tudo o que é vivo, desperta o desejo de ficar de pé e andar com as próprias pernas.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Anarquismo como micropolítica



Odeio tanto seguir como ser seguido:
para me acompanhar aonde vou
é preciso aprender a amar andar ao lado.

Nietzsche


"Anarquia"= "an-arqué". Um dos sentidos de "arqué" é "comando". A anarquia é um não-comando; "não" como crítica, e não como mera reação à existência de um comando. Sobretudo, a anarquia é uma crítica a um "comando externo", que se coloca acima dos comandados. Assim, criticar o comando é criticar também os mecanismos que nos tornam "comandados", e não apenas pelo Estado.O poeta  por exemplo, como afirma Manoel de Barros,é aquele que escapa aos comandos homogeneizantes da gramática.
Mas a crítica ao comando externo é o resultado ou consequência de uma atitude que a precede.Esta atitude não é negativa, ela não é um destruir, mas um construir:"Só podemos destruir sendo criadores", já nos ensinava o anarquista Nietzsche.Então, antes da crítica aos comandos externos que, de fora, querem nos impor modelos de como viver, devemos construir uma consistência interna, uma potência, uma saúde imanente. Assim, esse procedimento de consistência exige também uma luta, um esforço, que não se faz sem as ideias e sua força, e a força das ideias nada  tem a ver com a força física.O anarquista comanda a si mesmo não como um general a um exército, não como a bebida ao dependente, não como o pastor a um rebanho; ele se esforça para comandar, em primeiro lugar , a si mesmo, e deve se inspirar no modo como um maestro comanda uma orquestra, como um pintor comanda as tintas, como o poeta comanda as palavras, posto que, tal como essas coisas, nós somos uma multiplicidade.
Por isso, o autêntico anarquismo não é preto,branco ou cinza. Ele é multi e pluri-colorido, e em cada cor ele afirma ainda as nuances e matizes, os tons, as variações.E ainda: para pintar um quadro é preciso ter uma perspectiva.
Segundo Negri interpretando Espinosa, o anarquismo não é sistema político ou proposta de governo,simplesmente porque ele não é sistema , mas rizoma, conexão. O anarquismo não é sistema político, ele é modo de vida, ontologia, estética, poética. Ele é isso porque ele é afirmação da heterogeneidade da existência, e esta heterogeneidade não pode ser representada, dado que ela pode apenas ser vivida, experimentada, produzida.A poesia vive no "antesmente verbal", escreve Manoel de Barros; a anarquia precede a política, tal como o fazer precede o produto.
Por isso, o plano do anarquismo é sempre micropolítico, o que nada tem a ver com a macropolítica dos partidos."Micropolítica" não significa política das coisas pequenas, pois política das coisas pequenas costuma ser a prática da macropolítica."Micropolítica" é a política que não pode ser separada das práticas, sobretudo daquelas práticas que a macropolítica diz não serem práticas políticas, como as práticas de ensino, as práticas artísticas, as práticas de consumo, as práticas de prazer, as práticas culturais, etc.
O anarquismo não é discurso de um partido, ele é expressão de uma parte, de uma parte sempre heterogênea que, em sua diferença, expressa um todo. Assim, o anarquismo não é pulsão de morte contra o todo, ele é a afirmação de um todo que potencialize as partes. E este todo nunca é um partido ou um Estado, pois estes também são partes. O Estado fascista é aquele que se comporta como um todo à parte, que vive à custa da sociedade.
É na micropolítica que se luta contra os fascismos e suas várias manifestações, principalmente os micros fascismos cotidianos que infestam as práticas mais rotineiras.Mas se luta com alegria, e não com ódio. Sobretudo, nunca, jamais um anarquista pode ensejar comportamentos que alimentem  a menor confusão entre suas práticas e a de um fascista.