A palavra “Símbolo” significa: “união das partes”. “Sim” tem o sentido de “união”, “composição”, “agenciamento”; e “bolos” significa “partes”. Tudo o que é autenticamente simbólico vive do agenciamento de partes em razão de um todo. A Constituição, por exemplo, deveria ser uma realidade simbólica na medida em que ela não é apenas forma jurídica, já que suas partes são os cidadãos , o povo, e não apenas os ministros do Supremo. Um símbolo é um agente de um agenciamento. Tudo o que é autenticamente um símbolo não tem valor em si mesmo, isoladamente, pois sua função é servir de elo ou ponte para que façamos parte de um todo, mesmo que seja um todo aberto, a fazer-se ( como realidade comum). O contrário de “simbólico” é “diabólico”. Esta palavra significa: “separar a parte do todo”. Também pode significar “esquartejamento” ou “despedaçamento”. Assim, diabólico é tudo aquilo que separa, divide , esquarteja, põe existindo sozinho, isolado, apenas ego. O diabólico impede os agenciamentos, obstrui os caminhos, impede as trocas e contágios. Põe todo mundo vivendo sozinho, mesmo que no meio de uma massa ou rede, presencial ou virtual. ( comentário ao capítulo "Do diabólico ao simbólico", do livro abaixo)
Segundo o poeta Manoel de Barros, “quem se aproxima da origem se renova”. Assim compreendida, a origem não está apenas no passado. Agora, por exemplo, é meio-dia. A origem do meio-dia não é a hora que veio antes, as onze horas. A origem do meio-dia é a mesma das onze horas e de qualquer outra hora. A origem de tais horas é o tempo. Não é o tempo que nasce das horas, são as horas que nascem do tempo. Renova-se quem acha o tempo , o redescobre, no seio mesmo das horas, e não alhures, além, na esperança ou na memória.E se renovará mais ainda quem achar o tempo ainda vivo no meio das horas mortas...
Os gregos inventaram a praça como espaço de poder. A praça era o plano horizontal das relações políticas, distinto do plano vertical dos Templos e da clausura dos Palácios. A praça era chamada de ágora , o coração da pólis. O termo "ágora" provém de “agon”, raiz presente também em “agonia”. Uma alma agoniada é aquela na qual quereres diferentes ou pensamentos distintos lutam para a dominarem. “Agon” significa “disputa”. A praça, a ágora, era o lugar onde aconteciam disputas, lutas, medições de forças. Mas a arma de tais disputas não era a faca ou a lança, e sim outra arma. Arma sutil, eminentemente simbólica, mas que podia ser mais forte do que Aquiles ou ir mais longe do que a flecha. Essa arma era a palavra. Contudo, a palavra dita na ágora era palavra proferida individualmente: não raro tal palavra servia apenas a quem a enunciava ( ou então ao círculo dos que professavam, ou fingiam professar, o mesmo credo, a mesma posição) . Por isso, quem tinha dotes retóricos saia-se vencedor nos embates dialéticos, mesmo que por de trás das palavras convincentes não existissem ideias consistentes. Muitos se valiam da retórica para esconderam não apenas interesses escusos, como também a carência de ideias.
Os gregos inventaram a praça como espaço político, mas eles não inventaram as ruas. As ruas foram invenção dos romanos. As praças são lugares de parada, são espaços centrípetos. As ruas, ao contrário, são espaços de circulação , de deambulação e mesmo de linhas de fuga a inventar. A praça possibilitou o surgimento do filósofo acadêmico, porém a mesma praça tornou-se oportunidade lucrativa para espertos sofistas, de tal modo que sempre foi difícil separar aquele destes. A rua, diferentemente, fez nascer o andarilho, o cosmopolita, o desterritorializado, o itinerante: o filósofo-cometa, o pensador-artista liberto de academias ou escolas.
Sob o Império Romano, entretanto, as ruas eram vias limitadas ligando as cidades que o Império dominava . Com o fim do Império, as ruas se tornaram chão dos peregrinos. Entre estes havia aqueles que, como São Francisco, iam de pés descalços em busca da rua que levasse à invisível Pólis Celeste. Com o fim do poder imperial, muitas das ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras, findavam agora em cidades em ruínas : as mesmas cidades que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com o crescimento da vida urbana, a rua deixou de ser mera coadjuvante da praça. A rua fez passar para dentro da cidade a experiência que outrora somente era vivida por aqueles que, saindo dos muros da cidade, cruzavam territórios ainda desertos. A praça tem limites. Mas as ruas não têm limites, pois uma se conecta com outra, às vezes se atravessam, rizomas que são.
A Revolução Francesa se inspirou no modelo grego da ágora. Contudo, o século XIX, sob a inspiração de anarquistas e socialistas, tal século descobriu a rua como espaço político. A política que vem da rua é diferente daquela que é feita na praça. Em Brasília, por exemplo, fala-se da "Praça dos Três Poderes". Mas é na rua que vive a potência inumerável. Na praça, a palavra ainda está refém da retórica individualizada, ao passo que a rua tem outra fala, às vezes anônima, mas altamente singularizada, pois por ela se expressam agentes coletivos de enunciação.
O espaço político da rua é um espaço de travessia, não para chegar ao Palácio , tampouco ao Templo; pois a rua descobre o deus dos caminhos, bem como a anarquia coroada, multifacetada, da multitudo em movimento. Enquanto espaço político, a rua tem vida própria, libertando-se até mesmo dos lugares aos quais ela leva, de tal modo que ela devém elo que liga o povo a ele mesmo, não exatamente ao seu passado, mas à sua condição ativa de povo por vir.
No poema O guardador de águas, Manoel
de Barros descreve o seguinte acontecimento
: sob um monturo de restos de
folhas apodrecidas e farrapos do que outrora respirou e foi
vivo, sob tal monturo que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no
ventre desse casulo úmido uma semente despertou: libertou-se dela um pequeno
dedo, que virou mão tateando o escuro, depois braço que achou o caminho .Uma
linha de fuga foi-se desenhando, transmutando o túmulo em útero .Movia este
rascunho de vida o desejo de ver o sol,
o sol que tal vida nunca viu. Mas algo nela sabia da existência do que nunca
viu ou conheceu, e este algo não era memória ou razão, talvez fosse viva
imaginação a inventar sentido para vencer passividade e resignação. O embrião
de futuro perfurou o monturo do passado
morto, fazendo-se verdez de broto
cantando a potência de existir.
Manoel de Barros define sua poesia como “Uma Oficina de Transfazer Natureza”[2]. Nessa Oficina há várias ferramentas. Queremos
falar de uma ferramenta em especial. Manoel constrói e reconstrói inúmeras
coisas com ela. Trata-se não de uma palavra, mas de uma “pré-palavra”: o
prefixo “trans”. O pré-fixo é o que vem antes de algo fixo, pronto, fechado.
“Fixo”, “acostumado”, é o significado que o uso enrijece: “significar reduz
novos sonhos para as palavras”[3] . Mais do que uma lógica, uma Oficina do Sentido : “Na ponta do meu
lápis / Há apenas nascimento”[4]
.
[1] Filósofo, autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite
(Editora 7letras/Faperj) ; publicou também
artigos sobre a obra de Manoel de
Barros .
Um planetário é uma instituição museal: são os doutos e acadêmicos que lhe colocaram essa etiqueta. Não há criança que não ame ir a um planetário ( os adultos também amam ir, se neles ainda estiver viva a criança).Qual é o "acervo" de um planetário? Qual é o "patrimônio" que ele guarda e expõe?O acervo de um planetário não são objetos, não são relíquias que alimentam vaidades, não são bens que o mercado de arte cobiça e rapina. O acervo de um planetário não pode ser tocado, cheirado, manuseado. O acervo de um planetário são as estrelas, o infinito."Corra e olhe o céu♫...", já nos ensinava, cantando, Cartola.
É ao nosso olhar que esse acervo se mostra e afeta. Esse acervo não é uma coleção, pois toda coleção é um conjunto finito. As estrelas são incolecionáveis, são inumeráveis: nenhum número pode dizer quantas são, embora sempre renasça na boca de uma criança essa pergunta.
"Acervo" procede de "cérvix", que significa "cervical", e assim é chamada a nossa coluna: coluna cervical. No corpo, a coluna cervical sustenta a cabeça.Na cabeça está não apenas o cérebro, pois nela também estão os pensamentos,as ideias, as inquietações. Um acervo não tem sentido em si mesmo, ele não é um fim em si : como a coluna cervical, ele deve ser um instrumento para apoiar o sonho.É com a ajuda do acervo que a cabeça se mantém erguida, para assim olhar o horizonte.Um acervo nunca deve ser um fim, mas sempre um meio : de descoberta, de conhecimento, de potencialização.
Do acervo de um planetário também fazem parte os cometas, as galáxias, os buracos negros...e ,sobretudo, dele fazem parte os mundos por descobrir.O acervo não remete apenas ao passado: do presente ele nos interroga sobre o futuro. O acervo de um planetário é fonte de um conhecimento que sempre se renova, posto que nasce do desconhecido sempre acessível ao olhar que se liberta das coisas pequenas. Enquanto acervo, suporte, o infinito deve ser vivido e experimentado como o que deve sustentar a nossa mais sublime leveza: a que nos alça para além do conhecido.
As estrelas são patrimônio. Patrimônio não do homem ou de qualquer outro ser.Elas são patrimônio por si mesmas, sem precisar que o Estado ou algum poder o diga.Elas se conservam, durando, sendo eternas.Segundo Espinosa, somente o que é produzido pode ser conservado.O infinito é conservado por aquele mesmo que o produz: do ponto de vista do infinito , conservar e produzir são o mesmo, pois o que é conservado não é algo fixo, morto, estático; ao contrário, o que é conservado é o ato mesmo de produzir, de dar vida e movimento, enfim, o que se conserva são os "inauguramentos".
Se houver algum outro planeta habitado em alguma das milhares de galáxias afora, e se neste planeta existir um planetário, alguém que olhe por algum telescópio de lá verá um céu do qual nossa terra é uma parte.Tudo é céu, nada lhe está fora, tudo lhe é imanente; mas este céu como patrimônio infinito somente pode ser visto com "olhos de descobrir", diria o poeta Manoel de Barros. Talvez o patrimônio só adquira essa dimensão existencial infinita, inesgotável como fonte de sentido, se ele for precedido por um "matrimônio". Aliás, só há patrimônio se houver, antes, matrimônio. O matrimônio é um acontecimento de enamoramento, de afeto, de encontro e elo. Se não houver esse matrimônio nascido de uma relação intensa com a realidade, tampouco se considerará qualquer realidade como algo que devemos herdar, cuidar ou preservar.
É como matrimônio e encontro que o sentido nasce: o patrimônio é o seu resultado, o seu produto ( e não causa). O matrimônio é o ato de conhecer, que é inseparável do ato de sentir, ao passo que o patrimônio é o conhecido, o que resulta do ato de conhecer. Quando a pequena criança agencia seus olhos com o telescópio, ela agencia também seu espírito, seu pensamento, o seu futuro.Ela se matrimoniza, se enamora, e somente depois ela entende que o ato de conhecer não é passivo ou inerte, pois ele também produz o conhecido. E este conhecido se manterá sempre vivo enquanto for vivo o ato de conhecer.
Quando em uma aula o protagonista não é a fala e a escuta,
ou seja, professor e aluno, mas a imagem
projetada por tecnologia última, em tal aula não há silêncio, pois a imagem
projetada nunca fica muda, apesar de não ser palavra. A imagem projetada na
parede não deixa vazio, pois o vazio dela seria apagar-se, mostrando a parede
que lhe serve de suporte (a parede é um
muro sem profundidade e horizonte).
A imagem tecnológica não deixa o vazio acontecer. Ela está sempre a
falar e falar. Ela fala não exatamente sobre o que ela mostra, ela fala
sobre como ela é mostrada, pela máquina
e não pelo homem, como se nisso estivesse sua modernidade, como se nisso
residisse o critério para uma aula boa e interessante.
Somente na palavra falada pode haver silêncio. Silêncio não
como ausência de fala, mas como tempo para se pensar no que se disse e ouviu, tempo para o pensamento respirar, ele que é sopro, spiritus, pneuma.
Nada contra as imagens que se refletem na parede (embora
esse seja o princípio da “Caverna de Platão”...). Porém prefiro as imagens que
se formam na mente e que se exteriorizam nas palavras, sobretudo quando as
acompanha a música da voz singular de cada um.
Tais imagens que vêm da imanência do pensar , e expressam
sua atividade viva, são fluxos que nascem de muitas fontes: o inconsciente
coletivo ou cósmico, os livros que se leu, as aulas que se ouviu, as músicas
que se escutou, os filmes que se assistiu, os poemas que se leu, enfim, os
acontecimentos que se experimentou e viveu.
O menino pegou a alma dele para brincar. Feito um lençol, ele a jogou sobre a
cabeça e fingiu ser um fantasma: saiu correndo pela casa para assustar os fantasmas
reais.
Depois, ele a amarrou no pescoço como uma capa e fingiu voar como um super-herói.
Criar e inventar eram sua arma salvadora, de si e da humanidade.
Ele quis brincar ainda de artista: forrou o chão com a tela
nua de sua alma. Com multicoloridos lápis de cor, nela desenhou sua casa,
seu bairro, o país, diferentes gentes, o planeta, as galáxias e, na borda
destas, sóis ainda nascendo e afastando para longe o Nada.
Muitos comparam a vida a um labirinto.Os caminhos dos labirintos são mais misteriosos do que aqueles desenhados pelas linhas da palma da mão.O mais famoso labirinto tinha em seu centro um monstro. Teseu, o protegido de Apolo, queria matar esse monstro, o Minotauro.
Teseu não é apenas um nome: ele é um símbolo, ele representa a racionalidade simbolizada pelo homem como padrão. Teseu anda sempre retilineamente, não dá um passo sem planejar antes onde pisa e como pisará. Teseu teme o imprevisto, e evita tudo o que não cabe em uma forma. Teseu quer a tudo dominar com régua e compasso. Seu caminho é feito de estradas retas , às vezes curvas.Mas raramente ele salta ou sai para “andar atoamente”, como diria Manoel de Barros.
Um dia, uma vontade nasceu em Teseu: matar o Minotauro. Este era um ser híbrido: nem homem , nem touro, mas a soma dos dois, cujo todo fazia nascer um ser diferente do que a mera soma das partes.E era isto que o fazia um monstro: ele não era uma coisa ou outra, porém as duas ao mesmo tempo, e esta coisa que ele era não se podia classificar segundo um conceito lógico.Um ser desse somente podia morar em um labirinto. Onde todos se perdem: era aí que o Minotauro se sentia em casa...
O labirinto é um lugar em que se entra, mas do qual não se sai, embora ele não seja infinito. No labirinto vira-se à esquerda ou à direita indistintamente, o que fere a lógica da direção: dentro do labirinto as bússolas enlouquecem, e não apenas elas...
( filme: O iluminado)
O labirinto é o fragmentar de uma reta: isso choca o que em nós cultiva a retidão. Ele é o fragmentar infinito de uma mesma reta que não leva mais a nenhum lugar. Isso faz nascer um estranho fato: o centro do labirinto não é como o centro de um círculo ou como o centro de uma caverna, uma vez que ele não é um centro que abriga ou protege. Ao contrário, nunca se sabe quando se chega ao centro de um labirinto, pois isso equivaleria a conhecer a própria ignorância. Contudo, conhecer a própria ignorância já é vencê-la.E ninguém pode conhecer o labirinto. O labirinto não nos permite conhecer para aonde se vai ou de onde se veio. Há apenas o desejo de se sair dele, sem se saber os meios. Pois o que poderia ser um meio para dele se sair, pode ser um meio para nele se entrar ainda mais e se perder, ignorando onde está seu meio ou onde se encontra, ao contrário, sua saída.
O Minotauro mora no centro do labirinto.Quem descobre o centro do labirinto, encontra o Minotauro, e deste encontro não há sobrevida: é a loucura, o absurdo da vida.Ligados umbilicalmente, um homem e uma besta, um homem e uma fera. E os dois formam um só. Isto devora e nos devora: devora o que em nós é homem, desafia o que em nós é razão e lógica. O que faz do Minotauro um monstro, um devorador , não é a parte taurina, vegetariana que é; a sede de carne e sangue vem da metade homem, que emprega a força do touro para lograr sua insanidade. Teseu não tolera esse um feito de contrários, dado que isso impediria, segundo ele, a distinção do Bem e do Mal, do Racional e do Animal, enfim, da Lei e da Força.Mas o que Teseu desconhece é que tanto ele quanto o Minotauro são um aspecto da vida: o animal fundido com o homem, com o predomínio daquele; o racional junto ao animal, com aquele reprimindo este. Teseu pensa que pode vencer o Minotauro, e de fato o poderia se o encontrasse em céu aberto, sob a luz do sol da Razão. Todavia, Teseu ignora que não pode vencer o labirinto.O impede de vencer o labirinto exatamente a arma da qual Teseu extrai seu poder: o conhecimento retilíneo, racional.Para entrar no labirinto , Teseu teria que se despir de sua lógica. Entretanto, se isto ele fizesse, ficaria Teseu sem seu escudo e sem sua arma.
( Escher, Labirinto)
Então, o salva um terceiro aspecto da vida: Ariadne. Em grego, Ariadne provém de um termo que significa “aranha”. Alguns realçam , com ironia, o longo tempo que Espinosa consumia observando a aranha à espera de sua presa . Porém , o fundamental é o processo que vem antes, que exige mais do que tempo, exige invenção. Era esse acontecimento produtivo o que realmente fazia pensar Espinosa, ao ver a aranha-ariadne extrair da imanência do seu corpo a sua teia-rizoma . A autêntica ideia não é cerzida para capturar cardumes, quantidades; ela é produzida no desejo de apreender uma existência singular - que, mesmo alada, nela vem pousar, capturada. A teia da aranha é uma espécie de labirinto onde a aranha aprisiona suas presas. Assim, Ariadne é uma produtora de labirintos, e é por isso que ela o conhece bem, pois conhecer uma coisa é ser capaz de produzir a ideia que nos permite conhecê-la. Ariadne não está presa dentro de um labirinto, tal como o está um prisioneiro dentro de uma cela, sobretudo se este prisioneiro ignora a prisão e imagina que a cela o torna forte pelo fato de ninguém conseguir sair dela, tal como acontece com o poder do Minotauro, mero poder da destruição; tampouco Ariadne vive o labirinto como se fosse um meio externo que a limitasse . Artista, ela conhece como se produz um labirinto, e sabe que para vencer um labirinto é preciso um fio, uma linha. Não uma linha que se traça com esquadro ou régua, e que vive presa entre dois pontos, o começo e o fim. Diferentemente, a linha que pode vencer o labirinto se desprende de um novelo, e deve permanecer ligada a este, tal como permanece ligado o produto ao seu produtor, o raio à fonte de luz, os atos ao seu autor, o rio à sua nascente. O novelo é uma virtualidade da qual a linha nunca se separa, o que faz dela uma linha de fuga, como diriam Deleuze e Guattari.O fio nasce do novelo, e este nunca tem fim.O novelo expressa outro aspecto da vida: fonte de caminhos que se inventam, como minadouros de elos que nos fazem não estarmos perdidos.Fio da memória, fio do desejo, fio da narrativa na qual se traça um sentido.Novelo significa: "novo elo". Um novelo é feito de elos, virtuais agenciamentos, e não de linhas retas que começam e terminam em pontos, em egos
Entre o racional de Teseu e o irracional do Minotauro está Ariadne como expressão da Arte. É com o fio de Ariadne que Teseu, desperto, entra no labirinto e mata o irracional enquanto este dorme. O fio de Ariadne, fio do Amor, permite a Teseu entrar e sair do labirinto, sem morrer ou enlouquecer. Porém, Teseu apenas seduzira Ariadne, pois calculadamente a abandona quando consegue lograr seus intentos neuróticos. Todavia, por muito tempo não chorou Ariadne , logo a desposa Dioniso, o deus cujo nome seu poder revela: Di-oniso, “aquele que nasceu duas vezes”,onde o segundo nascimento, que é em verdade um renascimento, uma regeneratio ao modo de Espinosa, explica e dá sentido ao primeiro nascimento.Dioniso é a Vida que nasce, renovada, de si mesma.
Ao contrário do latifúndio, que faz da improdutividade uma extensão sem fim ( extensão esta que é propriedade de uns poucos, ao preço de excluir muitos), o “nadifúndio” é a Terra dos que produzem , mesmo que excluídos, mesmo que explorados. Há latifúndios linguísticos aos quais o poeta invade com seus nadifúndios.
O nadifúndio é a Terra dos que produzem bens e valores que não se podem vender ou comprar no mercado.
Nos nadifúndios se plantam “rizomas”. Ao contrário da árvore (que se fixa ao solo e cresce verticalmente ) , o rizoma é uma raiz que troca a profundidade do solo pela sua superfície sem fronteiras.
O rizoma é uma raiz que faz do deslimite o seu chão. As plantas rizomáticas crescem horizontalmente: suas raízes espalham-se em todas as direções possíveis, e só visam a verticalidade se for por intermédio de um muro que se quer ultrapassar, transpor. Impossível determinar o número de raízes que servem de apoio ao movimento de uma planta rizomática, visto que suas raízes são múltiplas, incontáveis : brotam e nascem conforme as exigências de expansão da planta . As formações rizomáticas não possuem centro. Os rizomas são plantas sem “existidura de limite”. O substantivo é a árvore da linguagem, ao passo que os verbos são seus rizomas.
O saber que apreende os nadifúndios constitui uma poética da ignorãça:
A velhez não é uma idade. Ela é um estado. Ela é, a velhez, a antipoesia: a “velhez não tem embrião” [1]. A velhez é refém da “palavra acostumada”, da “mente acostumada”, da “sociedade acostumada”, da “teoria acostumada”. Torna-se um acostumado aquele que perdeu a capacidade de achar dentro de si “minadouros”[2]. O acostumado, em filosofia, tem um célebre nome: recognição. O olho acostumado perde o dom de descobrir: “O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir”[3].
A velhez é a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra até hoje me encontra na infância” ( 2010a, p.111).
As infâncias não remetem a uma fase de crescimento que antecede a vida adulta, elas são devires de (re)invenção.É sobretudo em Deleuze e Guattari ( 1980) que encontramos a idéia de devir tal como a empregamos ( SOUZA, 2010).Devir é uma forma de comunhão por imitagem (2010b, p. 177). A imitagem não é um tornar-se cópia de um Modelo, como em Platão; a imitagem é a produção de uma variação por contágio: “é ir imitando os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma” (1992, p. 314).O devir é uma metamorfose da qual o próprio poeta fez seu Tratado de Metamorfoses ( 1992, p.250).
No poema “Invenção” ( 2010b, p. 151), o poeta dialoga com um menino que nasceu do seu lápis: "inventei um menino levado da breca para me ser", diz o poeta, "passarinhos botavam primaveras em suas palavras", "(...) ao fim me falou que ele não fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele" . O "eu” deste último verso não é um eu lírico, ele é um agente coletivo como lugar da invenção.Ele é o “eu” do menino que o poeta inventou para (re) inventá-lo, empoemá-lo ( 1989), enfim, para terapeutá-lo ( 1996).Há um elo ,uma distância mínima, um hífen entre o poeta e o menino. Tal distância não é a do julgamento, não é a distância do afastamento; trata-se de uma distância que possibilita o afeto, o contágio, o ser tocado: é a distância intensiva de quem , como o poeta, "escreve com o corpo" ( 1992, p. 212).
O menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve” ( 2010b, p.147). O menino que inventa o poeta se torna um intercessor: “A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças"( 2010d, p.469) , como exercício de ser criança ( 1999).Por mais que passem os anos, esse menino será sempre um menino que nos faz devir um, por mais idade que tenhamos.
A distância mínima que possibilita a invenção não pode ser medida com régua: ela é a origem, a fonte, que está sempre no meio, como espaço de comunhão, de “imitagem”. Processo semelhante experimentou Clarice: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco” (LISPECTOR, 1984, p11). Talvez nosso poeta experimentasse algo parecido quando afirmou: “Nossa linguagem não tem função explicativa, só brincativa” . Entre o menino e o poeta há uma distância mínima onde ocorre um contágio, um afeto , uma transubstanciação (1992, p320), uma epifania, um devir-criança, enfim. Este intervalo não é um espaço vazio, ele é o lugar das “raízes crianceiras” ( 2010b, p 187).
O tempo do devir-criança não pode ser medido pelo relógio; ele é o “tempo quando” (2010b, p. 133). Do ponto de vista dos fatos cronológicos encadeados linearmente, o devir é um desacontecimento (1992, p. 238). O desacontecer remete a um “tempo quando” não cronológico, tempo de metamorfoses. O quando é o tempo de "ir às origens de uma coisa ou ser" ( 2010b, p. 133): “eu não amava que botassem data na minha existência.(...) Nossa data maior era o quando.O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio” (Idem).
O "des" do desacontecer é o mesmo "des" do desaprender que Manoel aprendeu de Klee: "Ocorre que falo em desaprender pra chegar ao degrau da infância" ( apud BARBOSA, 2003, p. 127). O “quando” do tempo quando não é data: não é passado, presente ou futuro. O quando é acontecimento que expressa uma metamorfose, tal como relatado no poema “Palavra” ( apud RANGEL, 2001): o poeta estava sentado em um lugar. Até que veio a palavra e tirou o lugar debaixo dele. Ele continuou sendo, porém sem lugar. Todo lugar limita um espaço de estar, de ficar. Sem o lugar, o poeta permaneceu ainda sendo, mas não no aqui, apenas no quando. Este quando é um lugar também, mas sem contornos, sem limites, posto que é um lugar de metamorfoses, de nadifúndios (1989, p. 14). "O artista está sujeito a essas metamorfoses" ( apud BARBOSA, 2003, p.125) que o fazem ir além do "mesmal" (apud BARBOSA, 2003, p123).
O valor de uma ideia não está em ser verdadeira ou falsa,
o valor está em saber se ela é interessante ou bela.
Gilles Deleuze
O ódio é como a chama que vai devorando um pavio. Ele não
cessa de destruir o que o mantém vivo, exatamente o fio. O ódio só para quando
atinge a bomba.
Talvez vivamos a época em que há uma bomba no meio de um pavio
que se estende à direita e à esquerda da bomba. As duas extremidades do pavio estão
acesas, e cada extremo vai consumindo seu pavio com o fito de ameaçar o outro extremo.O encontro desses extremos odiantes coincide com a vitória da bomba.
O afeto que afirma a vida não é como o fio do pavio, talvez
se assemelhe ao fio que sai de um novelo , e se oferece como linha de fuga aos que
estão em perigo, perdidos. Expandir o novelo através de si, criando conexões e bordaduras , é essa a maneira que uma linha de fuga tem de resistir.
O fio do pavio existe em razão de uma bomba, de uma
destruição. O fio do novelo se expande e se amplia, do tamanho de uma invenção,
como trama, bordadura, rizoma, conexão.
A bomba se expande destruindo tudo , o novelo se expande
construindo a tessitura de um mundo, mesmo que ainda por vir.
(participo de um capítulo deste livro, falando de Cláudio Ulpiano, Deleuze, Espinosa e Manoel de Barros, novelos dos quais extraio o fio para minha bordadura).
Na Grécia antiga havia os deuses do luminoso Olimpo,
os do oceano e os que vivam debaixo da terra, na escuridão eterna, como o deus
Hades, que reinava no mundo dos mortos. Porém, havia ainda um tipo de divindade
que não habitava em nenhum desses lugares com identidades determinadas. Tal
divindade até podia conduzir ao Olimpo, mas não era de lá; era capaz igualmente
de atravessar os oceanos sem se afogar, embora não fosse sua casa o mar; e até
mesmo ao Hades tal divindade conseguir ir, entrar, sair e voltar, vivo. Essa
divindade habitava um espaço de travessias, limares, passagens. Ela recebeu o
nome de Daimon.
O Daimon mais famoso foi Eros, o amor. Por não morar no céu, no mar ou sob o chão, por não ter casa
(mesmo a escuridão é um lar do que já não vive mais, tal como às vezes se torna
a memória presa no passado... ), Eros possui asas. Era com essas asas que ele se locomovia no meio onde nada podem
pés e pernas. Suas asas eram o instrumento de uma travessia.
Era na travessia
que Eros morava, e não no lugar de onde se parte ou ao qual se deseja chegar.
As asas de Eros somente podem conduzir se, antes, não mais nos prenderem os pesos, as gravidades.
Contudo, Eros não é uma
divindade que está fora, ele não nos carrega pelas mãos, exteriormente . Eros nos aparece
emergindo pelas costas, lentamente, após nos ter entrado imperceptivelmente pelo
coração. Suas asas não nos são colocadas por fora, já prontas e grudadas com artimanha
calculada, como as asas que prenderam em Ícaro. Asas assim tornam maior o tombo quanto maiores são as alturas que elas prometem...
A primeira aparição das asas de Eros em nós nada tem de coisa bela, pois
parece que estamos a virar monstros. Suas asas começam a despontar em nós semelhantes
a coisa pontiaguda a emergir das costas, como se fossem os ossos da coluna
vertebral que se rebelassem e apontassem para cima, furando a pele. A primeira
aparição do que nos liberta é sempre estranha, para ela falta um hábito, um
nome, um padrão.
Mas como aquilo que quebra todo hábito e padrão pode receber
um nome padrão e habitual? Onde estão fincadas as raízes dessas asas? Elas
estão fincadas no coração, no interior do peito. Elas nasceram dele como a
planta que nasceu do grão. Quem vê em si nascer tais asas, leva um susto com
seu início, pois pensa que lhe nasce uma anomalia :temendo não caber mais no
padrão dos que lhe rodeiam, foge de si mesmo, cobrindo sua singularidade com vestes padronizadas, procurando adaptar-se
.
Há nesse processo uma dor, como na do parto. Ele tenta cortar o broto, mas o
broto nascerá de novo, da semente do coração. Leva tempo até se compreender que
as asas de Eros nos escolheu para nascer, quando elas de fato nos escolhem. No início,
parece uma maldição. Porém chega um
momento em que já não se pode mais esconder que se tem tais asas, tais empoemamentos: elas desabrem
em nós, desabrindo-nos, horizontando-nos. Elas se tornam capazes de levantar o
peso que às vezes somos para nós mesmos. E o maior peso a vencer não é o peso
físico...
E o mais estranho é ver que não são asas de pássaro que nas costas nasceram,
foram asas de borboleta, pois de borboleta são as asas de Eros, frutos de uma
metamorfose, que no início parece uma morte.
Quando a nave
está pousada na terra, há um chão embaixo. Quando a nave se alça e sai dos
limites da atmosfera, há céu não apenas acima e dos lados, como também embaixo.
Torna-se inútil ter pés e pernas, pois já não há chão que possa servir de
apoio e lastro. Tudo se torna acima, mesmo o que está abaixo.
É lá no fim do
abismo que está o inferno, dizem os que creem no diabo. Estes vivem olhando
para baixo. Mas abismo é um fundo abaixo dos pés, região escura na qual a chama
queima os pecados. A fogueira do inferno é só para queimar, não é para iluminar
a noite de quem quer explorar desconhecidos espaços.
Porém, céu não é abismo,
céu não é fundura, céu é altura que se eleva sem que se lhe oponha uma baixeza
escura. Se tudo é céu , tudo é só altura, a qual somente se alcança na altivez
de um pensamento que deseja o infinito. Nesse
céu em todas as direções a única chama
que há é a dos astros, progenitores estelares da chama viva que é o calor de
nosso corpo.
A mente é como
essa nave. No entanto, muitos a vivem como se fosse um veículo apenas
terrestre, um carro. Assim, perece o
combustível antes mesmo que ele seja usado para o pensamento se
desterritorializar, alcançando seu meio infinito, sua imanência , seu horizontado espaço.