Quem
o mais profundo pensa,
ama
o mais vivo.
Hölderlin
- Os primeiros filósofos e a filosofia
O nome “pré-socráticos” expressa um conjunto heterogêneo de pensadores.O
termo “pré” não significa que eles vieram exatamente “antes” de Sócrates no
tempo. Ao contrário, alguns lhe foram contemporâneos. Assim, o termo “pré”
designa uma visão da filosofia que toma Sócrates como referência e
padrão.Outros ainda empregam a expressão
“pré-platônicos”, uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.
É errada a visão que considera inexistir nos pré-socráticos uma reflexão sobre o ser
humano.Entretanto, a maior dificuldade
para a reconstrução dessa visão que eles possuíam do homem repousa
na escassez de fontes. Poucos escritos dos pré-socráticos chegaram até nós.
Sabe-se, por exemplo, que Demócrito , o atomista, teria escrito bem mais que
Platão!Todavia, apenas fragmentos nos chegaram.
Segundo argumentam Deleuze e
Guattari no livro O que é a Filosofia? (
Editora 34), é com os pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo
“filósofo”. Essa ideia nasce mais
especificamente com Tales de Mileto,embora a invenção do nome se deva a Heráclito.
O filósofo veio ao mundo antes da
filosofia. O filósofo surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o Oriente, pois
foi nessa área limítrofe das colônias da Grécia que o filósofo apareceu. Há
algo do Oriente em Tales,isto é, há nele um tipo de sabedoria que não se apóia
apenas em conceitos.Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem simbólica –
acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística.Enfim, o filósofo também
era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo Parmênides,
evocam as Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático, criara uma
doutrina esotérica acerca da transmigração das almas, o que faz dele o primeiro
filósofo a acreditar na imortalidade da alma .
A filosofia, sustentam Deleuze e Guattari, nasceu
um pouco mais tarde.A filosofia surgiu após já ter nascido o filósofo. Enquanto este apareceu às margens da Grécia, a
filosofia é fruto genuíno de Atenas, o coração do Ocidente. Para a filosofia
emergir, foi preciso que o filósofo perdesse essa aura poética e mística,foi
necessário que ele deixasse de ser um sábio:foi preciso que ele desse as costas
para o Oriente místico.
A filosofia aparece somente em
Atenas, no auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu em um determinado meio
político ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era um meio
atravessado por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente era fundamental a constituição de associações.
Nasce então uma idéia muito especial de
“amizade” que será considerada a base da filosofia. A filosofia seria um
exercício dialogado entre aqueles que buscam a sabedoria tendo como elo uma
forma muito especial, não privada, de amizade.Na Grécia Clássica, o filósofo se
torna um “amigo da sabedoria”, um “amigo do conceito”. Enquanto amigo do
conceito, o filósofo vai também defender
o conceito dos seus “falsos amigos”:os meros sofistas. Um amigo,um verdadeiro
amigo,nunca faz seu amigo de meio para obtenção de coisas materiais. Segundo
pensava Platão, os sofistas faziam da sabedoria um meio para obtenção de fama e
dinheiro. Na verdade, então, eles não faziam sabedoria,mas”falsa sabedoria”,
uma “aparência de sabedoria”. Sócrates, Platão e Aristóteles dedicaram boa
parte de seus ensinamentos para refutar esses falsos amigos do conceito.
No Banquete, porém, Platão demonstra
que o termo “philia” , presente em “philosophia”, não designa apenas “amizade”.
“Philia” também significa , de forma mais profunda, “amor”. De maneira provocativa
e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo não é apenas um amigo do
conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um enamorado do saber.
Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais e pretendentes,como os
sofistas.Mas como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele
e a sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com
certo misticismo pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande
importância a intuição silenciosa do Bem,isto é, daquilo que a mera palavra não alcança ( mais tarde , Plotino e Santo Agostinho dedicarão belíssimas
páginas a esse tema). Esse aspecto de amante da sabedoria dará ao filósofo uma
condição de “estrangeiro”, isto é, de alguém que não se deixa determinar pelas
convenções de uma determinada pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem
importantíssimo nos diálogos de Platão, talvez o mais relevante.Todavia, importante também é o
personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é, aquele que porta uma
fala que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes que os homens
estabelecem, de forma convencionada , em uma determinada pólis. Se a condição
de “amigo” liga o filósofo aos homens, nascendo assim questões pedagógicas e
políticas, a condição de “amante” o liga
ao divino que imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a união amorosa
com o Celeste.
- Principais pré-socráticos
Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de
filósofos, uma questão pode ser apresentada como sendo a característica geral
dos pré-socráticos: a busca pelo Um. Diante da multiplicidade de
aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da sensibilidade, os
pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável e
inteligível. A esta unidade eles deram um
nome: arqué.Esse termo grego
possui uma rica carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são:
origem, princípio, comando e causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no
sentido de causa. Perguntar sobre a
arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.
Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos
testemunham, o pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma
exigência: o Um, a arqué, a causa. A pré-socrática representou o primeiro
momento de tematização de um problema que acompanhará toda a filosofia , de
Tales de Mileto a Deleuze: as relações
entre o Um e o Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se
apresenta aos sentidos, alcançar o Um exige outro instrumento distinto da
sensibilidade. Assim, emerge igualmente nesse período uma visão de que o homem
é constituído por dois princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao
múltiplo, sendo ela própria múltipla, e o Logos,
este igualmente Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que
poria o homem em contato com a arqué, com o Um.
Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há
neles uma visão do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”,
palavra esta cujo sentido se reporta ao
processo de “nascer” ou “brotar”. Mais
do que se pautarem pela abstração dos conceitos, eles ainda se apóiam em
imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de racionalização comandada
pelo Logos.
Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual
tudo nasceu. Como ele chegou a essa posição?Após a chuva, ele percebia que a
natureza se renovava ou renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre
umedecidos. Do mar vêm vários seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço
de todo ser vivo, é um reservatório de água. As fontes trazem vida aos
desertos. Assim, onde está a água se encontra
a vida. Por outro lado, Tales
constatou que tudo o que morre e definha vai perdendo água e secando. A
terra sem umidade se torna estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o
princípio da vida. Então, existe a água visível em suas mais variadas formas.
Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa de tudo o que existe. Essa água
universal não tem um aspecto particular, e só o logos intuitivo a pode
apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água, a pura água que
apenas o pensamento pode intuir e conceber.
Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o Um do qual tudo é feito. Esse Um, no entanto,
reúne nele o múltiplo, de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo nunca fica imóvel, e é
por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso que diz o célebre
fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”.
Quando saímos do rio e retornamos para entrar nele, suas águas já passaram, assim
como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós.Nada é, tudo
devém,pensava Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do
devir é uma repetição, um re-venir.
Cada momento do devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente,
pois nunca ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo.Segundo dirá
Platão, ninguém mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo
sensível, que sempre é regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze
foram muito influenciados por essa intuição heraclítica do devir.
Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”(
Aristóteles , por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam
para realizar um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência”
pela qual o devir constrói e destrói,
tal como crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não
raro, Heráclito era visto observando
crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com elas
do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos
pensadores trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da
imanência. “Imanência” provém de “i-manare”.
“Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim,
imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo.
Por oposição, temos o vocábulo
“transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos entes” ( no
núcleo da palavra transcendência
existe o termo “ens”, “ente”).
Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para
apenas um elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as
quatro raízes e os dois princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar
e a terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor é a Vida, ao passo
que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes se combinam para
gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da água, da
terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser
organizado e faz as quatro raízes voltarem a existir separadas. O ódio faz as
raízes existirem sós.O ódio é a solidão.O ódio não destrói as quatro raízes,
ele apenas desfaz os seres que nascem de sua união e composição. Além de
realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos (Amor e Ódio) na
gênese do mundo. Esses afetos não estariam apenas no homem, eles não seriam tão
somente subjetivos. Tais afetos seriam
também cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do
universo.
Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o
pensamento atinge graus de abstração nunca antes alcançados. Para esse
pensador, a arqué não é a água, o ar , a terra, o fogo ou a mera combinação
deles. Segundo ele, a arqué não pode ser nada de determinado, pois tudo o que é
determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que possui limites não é
o todo. Assim, para ele a arqué ou causa
de tudo será chamada de Apeiron. A-peiron:o que não tem limites.Mas por
quê existem as coisas com limites, as coisas finitas? A resposta de Anaximandro
introduz um elemento de julgamento moral: as coisas finitas existem por uma
culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa. Dessa
forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a condição
existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que a
sabedoria seria um processo de reatamento com o que não tem limites, o que
implicava em uma regra de vida que se libertasse do império das coisas
limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores que sejam, são coisas com
limites.Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o limitado do
“ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão
moderna), todo apego alimenta ainda mais
a culpa e o sofrimento. Por essa razão, impede
a liberdade e o pensamento.
Por fim, existiu Parmênides.Para esse filósofo , a arqué não é mais nada
físico, tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele,
algo que se assemelhe a afetos humanos. A
arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para
Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de Parmênides é seca,lacônica, e já
anuncia,firmemente, o princípio fundante da
lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém.
Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra
coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um paradoxo:afirmar
que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move, ele não muda: ele
simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram o Ser, eles nos
mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois caminhos: o da Verdade,
caminho esse que apenas a alma pode trilhar, e o da opinião,que é o caminho no qual reinam
as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho
da Verdade é o do Ser,ao passo que o da
opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com Parmênides são
esboçadas as primeiras exigências de um
pensamento lógico, que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em
Parmênides também se dá início à célebre distinção entre Essência e aparência,
tema esse que merecerá especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o
vocabulário da filosofia.