sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

a besta humana

 

Em seu comentário ao livro “A besta humana”, de Zola, o filósofo Gilles Deleuze fala de alguns  comportamentos hediond0s , de ontem e de hoje, identificáveis à  “besta”.

A besta não é um animal determinado da zoologia. A besta é uma espécie de “fundo indeterminado” propagador de (auto)destruição e m0rte, uma espécie de “buraco negro” que suga e extingue toda forma de luz.

Os instintos  protegem os animais  desse “fundo indeterminado”. Nenhum animal é capaz de cometer ato hediondo ou b4rbárie inexplicável, pois todos os seus comportamentos são explicáveis pelos instintos.

 A ferocidade do leão, por exemplo, não é maldade ou crueldade, mas um comportamento explicável por sua natureza de leão. Conhecendo essa natureza, podemos agir para evitarmos que essa ferocidade nos vitime.

No homem, o instinto não tem força suficiente  para protegê-lo desse fundo indeterminado . Tampouco pode a inteligência, sozinha, vencer esse “buraco negro”, o ninho onde dorme a besta.

Pois a inteligência , com suas teorias e invenções tecnológicas, é voltada para o domínio do mundo externo, de tal modo que a besta sempre se esconde às suas costas, como uma sombra.

Pode acontecer de a besta se servir dos frutos da inteligência e usá-los como  doenti4s armas suas : “mísseis  inteligentes”, por exemplo,  são a inteligência a serviço da besta e sua necrop0lític4 de extermínio que não poupa nem crianças...

 A Inteligência Artificial  , apesar de fruto da tecnologia avançada, também pode servir à mentalidade obscurantist4 e atrasada da besta.

Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a “besteira” como  antieducação e anticonhecimento.  A besteira é a besta empregando a palavra para destruir o próprio universo simbólico.

Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras; somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que tortur4m os ouvidos do espírito .

 A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como no f4natismo teológico-político  armado de int0lerânci4. A besta pode dominar o Estado, nascendo assim o Leviatã Fascist4 raivosamente militarizado e gen0cid4.

Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho imprevisível que nem  a natureza  explica mais...                                                                                                                                                             

Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem.  A besta morava num lúgubre labirinto que prendia a todos e parecia não ter saída.

Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala e doenti4 ,  que usava a seu serviço a força bruta do touro  .

Além da inteligência, a  vida criou o pensamento. O pensar redireciona e amplia a inteligência , tornando-a   também  (cons)ciência planetária propagadora de ideias e afetos emancipadores.

Quando aceso, o pensar é luz que resiste ao buraco negro, iluminando  por dentro e por fora,  brotando da mesma energia que os instintos da vida, potencializando-se  pelo cultivo social  da empatia que agencia , da cooperação que congrega  e da indignação que une os que lutam contra as tirani4s.









 



quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Conhecimento por progressão e conhecimento por conversão

 

        A CONVERSÃO FILOSÓFICA – CONHECIMENTO POR PROGRESSÃO E        CONHECIMENTO POR CONVERSÃO[1]

 

O filósofo Pierre Hadot[2] ensina que a ideia de “conversão” tem uma origem filosófica. Somente depois é que o cristianismo se apropriou da ideia e da prática da conversão, dando-lhe finalidades diferentes das filosóficas.

 A palavra “conversão” significa “voltar-se para”. Mas não se trata de qualquer “voltar-se”, uma vez que diz respeito a um redirecionamento , ou seja, de um mudar  de caminho que produz mais do que uma mudança, produz uma transmutação.  

Portanto, não é um voltar-se para qualquer coisa, é um voltar-se para algo que suscita a transmutação. Plotino dizia que os brotos se voltam para o sol para desabrocharem. Os peixes se voltam para a fonte do rio onde nasceram , e retornam à fonte para fecundarem. Manoel de Barros, por sua vez, dizia que sua poesia nasce de uma “Origem que renova”, e é para essa Origem que todo verso dele novo se volta. Não por acaso, na palavra conversão existe o termo “verso” nesse sentido de um voltar-se para a realidade que o cria, e permanecer-lhe ligado. Na Caverna de Platão, o primeiro prisioneiro se liberta ao voltar-se mais do que para a entrada da caverna: ele se voltou para a Luz que vinha de fora daquele mundo em penumbra. E foi assim que ele se converteu à filosofia, fez-se filósofo.

Enquanto conversão, a filosofia não é só um discurso, ela é , antes de tudo,   uma prática: uma prática de construção de uma vida filosófica. Uma vida filosófica não é exatamente uma vida livresca, tampouco uma vida que apenas filósofos vivem. Pois a conversão à filosofia é uma conversão à vida, uma conversão a si mesmo. Como ensina Nietzsche: “torna-te o que tu és”.

Os estoicos diziam que há  duas maneiras de se obter conhecimento: por progressão e por conversão. O  conhecimento por progressão é identificado ao ensino formal exercido em escolas e  academias . Nesse tipo de ensino, o conhecimento é passado como se fosse uma escada com vários degraus ascendentes: o primeiro degrau, nos nossos tempos,  é o da educação infantil. Depois, o ensino fundamental , seguido pelo   ensino médio até chegarmos ao degrau do ensino superior, a faculdade. E a faculdade possui ainda degraus a serem subidos por quem ingressa nela. Esses degraus são o primeiro período, o segundo, o terceiro...até chegar ao último período. Para quem quiser prosseguir nessa progressão , existe ainda o degrau do mestrado, acima deste o degrau do doutorado, até alcançar ao último degrau: o pós-doutorado. É um  questão de tempo até inventarem um novo degrau ainda mais acima do pós-doc...Não que esse conhecimento por progressão seja infinito. Ao contrário , ele é hierarquizado como uma pirâmide: o acréscimo de mais um patamar no alto da pirâmide não a torna infinita, apenas aumenta o seu tamanho, ao mesmo tempo em que diminui o número daqueles que podem alcançar seu topo.  

O que caracteriza também  o ensino por progressão é que aquele que sobe a escada, o aluno, deve ser conduzido por aquele que já a subiu no passado, o professor. Inclusive, o professor tem o poder institucional de conduzir o aluno a um degrau superior, no caso da aprovação, ou de manter o aluno no mesmo degrau, se o aluno não tiver desempenho suficiente para passar de ano. E o aluno , se quiser,  pode mudar de faculdade , ou ainda de curso , ou mesmo abandonar o estudo, caso decida ou precise ( por questões de saúde ou trabalho, por exemplo).

Porém, não acontece o mesmo processo com a aquisição de conhecimento por conversão. A conversão não é uma subida de degraus, ela não é apenas um aperfeiçoamento do intelecto. Ela não é a subida de uma pirâmide, parecendo-se mais com o achar um caminho que leva ao horizonte aberto. A conversão é uma mudança de vida , sem que haja entre a nova vida e a antiga uma linha reta, um roteiro ou uma ponte.

A conversão se assemelha mais a um salto, um salto realizado dentro de nós, mas que tem efeitos na nossa relação com o mundo fora de nós. Todo salto tem seus riscos, sem dúvida. Esse salto se parece com o que Deleuze e Guattari chamam de desterritorialização . A desterritorialização é uma linha de fuga de um território existencial dado , seguida de uma reterritorialização em novo território que não está dado, pois precisa ser criado. A desterritorialização é um voltar-se para a criação, ir em sua direção para assim encontrarmos a nós mesmos, singularizados.

A filosofia pode ser estudada como um processo de progressão, sem dúvida. Mas a filosofia é, sobretudo, um conhecimento que se conquista por conversão. Talvez aconteça o mesmo com quem se torna músico, pintor, poeta, enfim, artista. E mesmo que seja em outras formações acadêmicas ( medicina, psicologia, biologia, museologia, comunicação...), creio que somente se converte à tal prática quem também seja, além de técnico, um artista-pensador  em sua área. E quem , além de técnico, também  é um artista-pensador  em sua área de atuação , sempre busca a filosofia como um meio de potencializar ainda mais seu pensamento e prática, não importando qual seja sua faculdade de formação.

Muitas vezes a conversão à filosofia acontece antes de se adentrar à faculdade de filosofia. A minha conversão à filosofia, por exemplo, aconteceu bem antes de eu cursar a faculdade de filosofia. Não foi uma escolha que fiz, mas a descoberta de uma necessidade, um descobrir quem eu era.

A filosofia como conhecimento por progressão nos coloca em um processo de formação profissional e obtenção de títulos. Mas a conversão filosófica é uma conquista de autenticidade existencial .

As provas e exames realizados no ensino por progressão aferem a inteligência, porém as provas que envolvem o conhecimento por progressão são provas éticas e existenciais, uma vez que situações da vida põem à prova a condição de filósofo: são provas nas quais seremos testados por nossas ações.

Como dissemos, às vezes alguém pode trocar de faculdade ou mesmo abandonar os estudos, mas quem se converte realmente à filosofia jamais a abandona, mesmo na doença ou nas dificuldades materiais, pois isso equivaleria a abandonar a si mesmo. O júri que julgou Sócrates queria que ele abandonasse a filosofia para assim salvar sua vida, porém Sócrates recusou, uma vez que se fosse retirada a filosofia de sua vida, nada ficaria, nem mesmo Sócrates. Os tiranos prenderam e torturaram Sêneca querendo que ele se renegasse enquanto filósofo, mas Sêneca se manteve fiel a si mesmo, mesmo ao preço de sua vida. Espinosa sofreu as maiores ameaças por se ter convertido à filosofia, porém essas ameaças não o fizeram trair a filosofia, mesmo quando ele passava por dificuldades financeiras e lhe ofereceram um cargo para ser professor em uma importante universidade de então. Porém, colocaram uma condição: que ele , lecionando, não fosse tão filósofo, ou seja,  que seu filosofar fosse exercido sob certos limites , acatando  os dogmas religiosos e subordinando-se aos poderes conservadores da política de então. Espinosa, claro, recusou .

A conversão à filosofia, portanto, nada tem a ver com um processo de escolha profissional pesando oportunidades de emprego e ganhos salariais, tampouco é algo que leve em conta as “tendências do mercado de trabalho à luz das  exigências das novas tecnologias...”

É claro que a sobrevivência material é relevante, porém mais importante ainda é a sobrevivência como filósofo/filósofa, o que requer também perseverança e coragem. Nesse sentido, a história da filosofia está repleta de casos nos quais os filósofos sobreviviam materialmente realizando atividades as mais diversas, mas sem deixarem de ser filósofos. Espinosa, por exemplo, polia lentes...

A conversão não é uma escolha puramente racional ou intelectual levando em conta cálculos e probabilidades de sucesso ou insucesso. Ela é um processo intenso  e plural,  que envolve fatores afetivos, existenciais , sensórios e até mesmo inconscientes. Não é um processo que acontece, passa e vira passado. Ao contrário, é um processo sempre atual, mas sem perder a virtualidade de horizontes sempre abertos. E é por isso que a conversão à filosofia também é uma conversão à ideia de que o saber nunca está acabado, pronto, imutável. E desse processo também nasce a percepção de que o conhecimento nada é se não for, ao mesmo tempo, um processo de autoconhecimento.

Plotino traduzia  o processo de conversão à filosofia com a seguinte imagem, ao mesmo tempo filosófica e poética: “Nunca termine de esculpir tua própria estátua.”

 

“Só escrevo meus nascimentos.” (Manoel de Barros)

 

“Hoje se toma por sonhador aquele que vive o que ensina .” (Pierre Hadot)

 

“A filosofia transformada em livros deixou de instigar os homens. O que nela existe de insólito, de quase insuportável, se escondeu na vida decente dos sistemas.”( Merleau-Ponty)

 

 

Este livro é uma das referências deste texto que escrevi:




 

 



[1] Por Elton Luiz.

[2] Pierre Hadot , Exercícios espirituais e filosofia antiga.  São Paulo , É Realizações, 2014 ( Parte IV: Conversão).





segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O que é um afeto?

                                                  O QUE É UM AFETO?[1]

 

Há três ideias que  são muito confundidas e empregadas  como se fossem sinônimas, mas que na verdade se diferem quando as analisamos   mais de perto. As ideias são: emoção, sentimento e afeto. Essas ideias estão profundamente ligadas  às vivências cotidianas, não sendo , portanto, algo meramente teórico. Daí a importância de sabermos distinguir essas ideias, tanto na vida  pessoal quanto no campo profissional, sobretudo para aqueles que têm atividades criativas as mais diversas envolvendo o afeto, o sentimento e a emoção das pessoas.

Etimologicamente, “emoção” significa “ser movido”. Por exemplo, quando nosso rosto fica vermelho de vergonha, isso acontece porque nosso sangue é movido até à superfície da pele. Quando nossos pelos se eriçam de medo, é como se eles fossem movidos por um vento. A emoção é um movimento físico que acontece no corpo[2]. A emoção também pode gerar uma aceleração dos batimentos cardíacos  ,  uma respiração ofegante e outros aspectos fisiológicos. A emoção é algo tão profundamente ancestral em nós, que ela envolve  até mesmo movimentos involuntários que podem afetar os órgãos internos. Por isso, emoções fortes podem adoecer, tanto a mente  quanto o corpo

Em geral , as emoções são os traços físicos que os sentimentos deixam, como se fossem as pegadas que um passante deixa na areia. Na verdade, sentimento e emoção andam juntos, eles se acompanham.

Hoje, há um longo debate acerca das seguintes questões: os sentimentos são naturais ou são construções culturais? Os sentimentos têm uma origem natural que é ressignificada de forma diferente  conforme as culturas? Não há uma resposta única em relação a essas questões que envolvem diversas áreas de estudo. Mas é certo que  sentimentos e emoções têm relação com  comportamentos que remontam à origem do processo de hominização. Os autores parecem concordar que emoções e sentimentos são sentidos individualmente, porém recebem forte carga de codificação social[3].

Parece haver um lugar privilegiado no qual os sentimentos se deixam ver de forma mais direta. Esse lugar é o rosto, a face. Saber reconhecer um sentimento no rosto de alguém requer aprendizagem social, e esse é o princípio da empatia. Os psicopatas, por sua vez, são desprovidos dessa capacidade social associada aos sentimentos e emoções.

Enfim, medo, angústia, amor, alegria , ciúme, tristeza, etc. são sentimentos  da alma que também se traduzem como emoção no corpo. Sentimentos e emoções surgem das situações da vida, possuindo uma natureza social e psicológica.

A palavra “afeto” deriva de um termo latino que significa “ser tocado”. Há uma proximidade entre o afeto e o sentimento, porém eles não significam a mesma coisa e nem são vividos da mesma maneira. Por exemplo, há um livro de Sartre que se chama Náusea . Na vida concreta, em meio aos encontros que fazemos com pessoas e coisas, podemos viver situações que geram náusea. Se a náusea for forte, podemos até passar muito mal. Mas quando lemos o livro de Sartre, não estamos diante de situações concretas, já que entramos em um mundo construído pelas palavras. Porém, quando lemos o livro e entramos em contato com as descrições que o autor faz de certas situações, também sentimos náusea! Mas essa náusea sentida foi produzida pela palavra literária, pela palavra artística, e não por pessoas ou coisas concretas. Apesar disso, a náusea que sentimos ao ler o livro é real:  como  realidade do afeto.

O afeto é o sentimento depurado das condicionantes psicológicas, para assim ser recriado como experiência estética. Na literatura, o afeto está, ao mesmo tempo, na palavra e em nós. Portanto, o afeto não é puramente subjetivo ou psicológico, uma vez que ele é  expresso em uma materialidade criada para dar-lhe vida, como o corpo da  palavra na literatura, o corpo das tintas na pintura, o corpo dos sons na música.

Portanto, toda arte expressa afetos.  A música é feita de sons que produzem afetos. A pintura é composta por paisagens e seres pintados que geram afetos. Quando olhamos uma noite estrelada podemos ter vários sentimentos: admiração, encantamento, espanto, sublimidade... À medida em que as horas avançam, o dia amanhece e aquela noite estrelada desaparece, vai embora, nunca mais retorna, e passa a viver apenas em nossa memória. Mas quando olhamos a pintura Noite Estrelada sobre o Ródano, de Van Gogh, vários afetos podem ser despertados, inclusive esses afetos podem reavivar os sentimentos guardados em nossa memória de alguma noite estrelada que já vivemos.


Uma imagem contendo Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente

( Imagem 1: “Noite estrelada sobre o Ródano”, de Van Gogh. Acrescentei os versos do poeta Keats à pintura de Van Gogh)


Mas enquanto a noite estrelada que vimos no passado passou e foi embora, a noite estrelada que Van Gogh pintou nunca passa: ela conquistou a eternidade. Não a eternidade de uma vida após a morte , e sim a eternidade de uma vida que nunca morre, uma vida (re)criada como arte. É por isso que essa obra é conservada: o que se conserva nela não são apenas as tintas, mas o afeto que as tintas expressam. Sabe-se que as tintas que Van Gogh empregou para pintar não eram de boa qualidade. Mas a riqueza das obras não está nas tintas em sua materialidade, a riqueza se encontra nos afetos que Van Gogh eternizou em suas pinturas.

Quando a vereadora Marielle Franco era viva, a visão da porta do seu gabinete gerava vários sentimentos acompanhados de emoções, pois era uma porta na qual estavam colados adesivos com diversas mensagens que traduziam a luta de Marielle por justiça, igualdade e dignidade. Hoje, essa mesma porta se tornou parte do acervo do Museu da Maré. Através da porta, Marielle revive e nos afeta, pois a porta expressa afetos que mantêm viva a luta de Marielle.

 

Tela de jogo de vídeo game

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

( Imagem 2: a porta do gabinete da vereadora Marielle Franco)

 

Enquanto os sentimentos podem desaparecer quando alguém não os sente mais , ou quando aquele que os viveu deixa de existir, os afetos permanecem nos signos criados para serem seu corpo. Quando era parte do gabinete da vereadora Marielle , a porta não era percebida como signo, já que ela era usada segundo sua função. Mas a realidade semiótica já estava nela, porém  apenas em potência, da mesma maneira que o afeto está em potência nos sentimentos que vivemos em nossa vida cotidiana.

Enquanto pintava o quadro Noite Estrelada sobre o Ródano, certamente Van Gogh sentia sentimentos que o emocionavam , sentimentos esses acompanhados de emoções que faziam seu coração bater mais rápido e sua respiração ofegar. Mas Van Gogh não ficou  restrito apenas  aos sentimentos e à  vida psicológica subjetiva, ele se agenciou com as tintas e as fez de corpo para com elas recriar o  Céu Estrelado que via. Ele fez a potência se tornar ato: ele transmutou o sentimento em afeto, de tal maneira que aquilo que ele viu e sentiu sobreviveu a ele mesmo, oferecendo-se como arte para que a gente , ao ver o quadro, também veja e sinta o que ele viu e sentiu. Nunca a gente vai conseguir ver o céu que ele viu pessoalmente e que lhe gerou sentimentos , a gente vê através do quadro o céu que Van Gogh pintou ao transmutar seus sentimentos em afeto partilhado. Ao olharmos o quadro, a  gente não vê o céu que Van Gogh viu pessoalmente, a gente vê a visão do céu que Van Gogh eternizou , eternizando a si mesmo no corpo expressivo das tintas.

Arthur Bispo do Rosário viveu imensas dificuldades na vida, dificuldades sociais, financeiras, preconceitos, exclusões...Tais dificuldades produziram sentimentos e emoções demolidores, mais do que ele , ou qualquer um de nós, poderia suportar. Bispo do Rosário surtou, desmoronou por dentro...Foi através da arte , bordando afetos, que ele conseguiu de alguma maneira pôr-se de pé novamente. O afeto é conquista de saúde : ele também pode ter um efeito clínico.


Imagem digital fictícia de personagem de desenho animado

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

( Imagem 3: “Manto”, de Arthur Bispo do Rosário. Aberto, o Manto se assemelha às asas de uma borboleta, como se expressasse a metamorfose do sentimento em afeto)

 

Em seu livro Arte Poética, Aristóteles se debruça sobre as artes, sobretudo o teatro grego, para argumentar acerca de qual seria a principal “finalidade” da arte. Para ele, a principal função da arte é produzir uma catarse.  Essa palavra vem do grego katharsis , que significa “limpeza”, “purificação”. Originalmente, essa palavra designava o efeito que a água do mar produz em quem se banha nela. Pois o sal da água do mar sara feridas no corpo , além de ajudar igualmente a sarar feridas na alma. A água do mar limpa, purga.

Aristóteles transpôs essa palavra para aplicá-la ao efeito que a arte produz em quem entra em contato com ela. A arte tem a potência de expurgar os sentimentos represados e  reprimidos , liberando a energia retida por emoções negativas. A arte libera essa energia emocional , provocando dessa maneira o efeito catártico.

 No palco, os atores não estão sentido raiva, ódio e rancor de verdade. Sobre o palco , há afetos que os atores expressam mediante seus gestos, expressões faciais e voz. O afeto artístico é o sentimento reelaborado. Na vida, os sentimentos negativos podem adoecer  quem os sente, ou provocar violências que podem resultar até mesmo em crime ( como os crimes de ódio e vingança). Mas ao entrarem em contato com esses sentimentos transformados em afetos artísticos, essa experiência pode exatamente levar o espectador a perceber os efeitos perniciosos dos sentimentos e emoções, quando eles nos fazem de marionetes , roubando nossa autonomia. Por isso, o teatro grego tinha igualmente uma dimensão política, uma política dos afetos em favor da democracia.

Uma obra de arte não é sentimentalismo, tampouco é algo apenas pessoal. Uma obra de arte é afeto, isto é, transformação do sentimento pela reelaboração estética que cria um mundo que amplia e potencializa nossa sensibilidade e pensamento , fazendo-nos sentir e pensar. Somente a arte tem a capacidade de dar concretude aos afetos , possibilitando que possamos partilhar o que sentimos e aprendermos com isso, como conhecimento[4] e autoconhecimento.

Não é errado chamarmos de “afeto” os sentimentos que sentimos em nossa vida pessoal no encontro com situações e pessoas. Porém, a obra de arte depura esses sentimentos e os transmuta em afetos, isto é, em signo. É por esse motivo que uma obra  de arte, ou um objeto exposto em uma exposição, expressam afetos[5]. E tanto quanto os sentimentos, os afetos de uma obra de arte também podem  nos produzir intensas emoções, porém nos permitindo pensá-las através de um pensar do qual também participam ativamente a sensibilidade e o corpo.

Pensar os afetos através das artes pode ter um efeito positivo na nossa relação  com nossos sentimentos e emoções, levando-nos a ser menos passivos e dominados por eles  , aprendendo  a reelaborá-los para que potencializem nossas ideias e ações, tanto no campo pessoal quanto profissional.

Nietzsche dizia que os artistas são “os médicos da civilização”. Creio que podemos interpretar essa frase de Nietzsche no sentido que estamos apresentando aqui neste texto. O artista trabalha sobre si mesmo, inclusive empregando seu inconsciente. Ele não fica refém de seus sentimentos, e é por isso que não se deve reduzir o sentido de uma obra artística à dimensão pessoal e biográfica do criador. Sem dúvida, Van Gogh teve medos, inseguranças, raivas, decepções...Mas sua obra não é um efeito desses sentimentos. Ao contrário, sua arte é transmutação desses sentimentos em afeto depurados do aspecto meramente psicológico, subjetivo e pessoal. E é por isso que as obras dele nos afetam tanto e, através delas, podemos  ver o quanto que elas são um exercício de superação, transmutação e potencialização da vida.

Deleuze ensina que “a literatura é uma saúde”. Podemos acrescentar ainda: não apenas a literatura é uma saúde, mas todas as artes o são, desde que nelas possamos experimentar e viver o afeto.

 

 

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton luiz.

[2] “Emoção” também tem por sinônimo “afecção”.

[3] Uma boa referência contemporânea sobre esse tema é este livro: Ces émotions qui nos fabriquent – Ethnopsychologie des émotions  ( Essas emoções que nos fabricam – Etnopsicologia das emoções ) , de Vinciane Despret ( Editora Le Seuil, 2001). Infelizmente, essa obra ainda não está traduzida para o português. Mas a autora do livro não chega a fazer essa distinção entre emoção, sentimento e afeto que apresentamos aqui, cuja referência principal é a obra Ética , de Espinosa. Não por acaso, a psiquiatra Nise da Silveira, idealizadora do Museu de Imagens do Inconsciente, também se apoia em Espinosa ao empregar a arte como elemento terapêutico ( embora essa distinção que estamos fazendo aqui também não se encontra diretamente no  livro de Nise sobre Espinosa, cujo título é: Cartas a Espinosa ( participei recentemente , fazendo uma palestra, do lançamento de uma nova edição desse livro).

[4] Não por acaso, a palavra “musa” significa: “conhecimento que vem das artes”, pois as Musas eram as divindades associadas às artes. Não apenas os poetas, os atores e os cantores evocavam as Musas para os auxiliarem na criação de suas artes, os primeiros filósofos igualmente  pediam a inspiração das Musas , mostrando assim que pensar também é uma forma de arte.

[5] O objeto exposto e que expressa afetos se torna o que Deleuze, inspirando-se em Artaud, chama de “Corpo Sem Órgãos”. Aqui, “órgão” é tudo aquilo que se explica por uma função utilitária. Quando é exposto, um objeto se torna um corpo expressivo que  não pode ser explicado apenas pela ideia de função, isto é, mediante um sentido utilitário ou “orgânico”. Quando Espinosa, em sua Ética,  afirma que “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele também está se referindo a ações que não se explicam pelo aspecto orgânico e funcional do corpo, incluindo a ação de nos afetar de ideias e emoções agenciadas. Quando a bailarina dança, por exemplo, ela põe em ação seu Corpo Sem Órgãos; quando a cantora canta, igualmente é seu Corpo Sem Órgãos que se expressa por ela. Quando o poeta escreve seus versos, o corpo da palavra não se explica mais pela funcionalidade da gramática, uma vez que a palavra , ela também, se torna um Corpo Sem Órgãos, um corpo expressivo.  A porta que pertencia ao gabinete da vereadora  Marielle Franco , e que agora está  exposta no Museu da Maré , não é mais um corpo com uma função utilitária, uma vez que ela agora se tornou um Corpo Sem Órgãos, um “corpo sem função utilitária”, um corpo expressivo que expressa ideias e afetos. A realidade expressiva-afetiva do Corpo Sem Órgão não é uma diminuição do corpo funcional-orgânico; ao contrário, é uma potencialização.