Quando eu era
criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não
cabe no
que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também
com o pensamento.
Foi assim: após
aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é
, coisa nenhuma. Ele é coisa nenhuma
quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado.
Mas se engana
quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer
companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o
zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo?
E essa
interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem
deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando
mais um zero, nasce o 1.000!
Descobri então que o zero não é uma
“nulidade”, a não ser que ele , autonegando-se, se deixe reduzir a isso.
Pois se a gente colocar o zero na companhia de outro número dele diferente,
do encontro nascem outros números, como
se dentro do zero existissem
potencialidades que a gente só conhece quando ele "desabre” ( “desabrir” é
prática poético-pedagógica, existencial,
ensinada pelo poeta Manoel de
Barros) .
O zero precisa do 1 para se saber mais do que
zero. É a diferença, o outro, que o enriquece. Quando o zero conhece a si próprio, ele vê então o que ele
é de verdade: não coisa nenhuma , mas um “ovo”, uma realidade cheia de
potencialidades a nascer.
Depois de
fazer essa descoberta, ainda bem
criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de
1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na
verdade eu queria dizer , brincando, que
o pensar faz a alma aumentar em mil seu
tamanho.
Depois aprendi
com poetas e filósofos emancipadores que
o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto
mais gente sair ( mil, milhares, milhões...) , mais difícil fica para o poder
autorit4rio querer nos reduzir a coisa nenhuma.
A autêntica riqueza não é acumular milhõe$ ou bilhõe$, a autêntica riqueza está neste zero transmutador do qual não há nota ou moeda: com essa riqueza
o “mercado” não lucra e nem pode extorquir juros com ela....
Manoel de Barros
chama de “nada” a esse “zero” enriquecedor , e ensina: “perder o nada é um
empobrecimento.”
“Às vezes
começa-se a brincar de pensar,
e eis que
inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.”
( Clarice
Lispector)
"A
zeroidade é o plano de imanência do pensamento."
(Deleuze)
“Todas as ideias salutares devem
estar em movimento, em permanente atuação, de modo a serem para nós não só
objeto de conhecimento mas também de prática.”
( Sêneca)