domingo, 30 de junho de 2024

Manoel de Barros e a zeroidade

 

Quando eu era criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não cabe  no  que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também com o pensamento.

Foi assim: após aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é , coisa nenhuma. Ele é coisa nenhuma  quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado.

Mas se engana quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo?

E essa interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando mais um zero, nasce o 1.000!

 Descobri então que o zero não é uma “nulidade”, a não ser que ele , autonegando-se, se deixe reduzir a isso. Pois  se a gente  colocar o zero  na companhia de outro número dele diferente, do encontro  nascem outros números, como se dentro do zero  existissem potencialidades que a gente só conhece quando ele  "desabre” ( “desabrir”  é  prática poético-pedagógica, existencial,   ensinada  pelo poeta Manoel de Barros) .

O  zero precisa do 1 para se saber mais do que zero. É a diferença, o outro, que o enriquece. Quando o zero  conhece a si próprio, ele vê então o que ele é de verdade:  não coisa nenhuma  , mas um “ovo”, uma realidade cheia de potencialidades a nascer.

Depois de fazer  essa descoberta, ainda bem criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de 1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na verdade eu  queria dizer , brincando, que o pensar  faz a alma aumentar em mil seu tamanho.

Depois aprendi com poetas e filósofos emancipadores  que o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto mais gente sair ( mil, milhares, milhões...) , mais difícil fica para o poder autorit4rio querer nos  reduzir  a coisa nenhuma.

 A autêntica  riqueza não é acumular    milhõe$  ou bilhõe$, a autêntica  riqueza está neste  zero transmutador  do qual não há nota ou moeda: com essa riqueza o “mercado” não lucra e nem pode extorquir juros com ela....

Manoel de Barros chama de “nada” a esse “zero” enriquecedor , e ensina: “perder o nada é um empobrecimento.”  

 

“Às vezes começa-se a brincar de pensar,

e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.”

( Clarice Lispector)

 

"A zeroidade é o plano de imanência do pensamento."

(Deleuze)

 

“Todas as ideias salutares devem estar em movimento, em permanente atuação, de modo a serem para nós não só objeto de conhecimento mas também de prática.” 

( Sêneca)




 

 


 

sexta-feira, 28 de junho de 2024

A terceira margem

 

As duas margens do rio prendem e limitam o fluxo das águas.  Mas , como ensina Guimarães Rosa, o rio possui ainda uma terceira margem . Essa terceira margem ora é a nascente e “minadouro” do qual o rio nasce; ora é o oceano no qual o rio se horizonta  e infinito se torna.

 A terceira margem nos mostra que rio, oceano, chuva, suor e lágrima...tudo é metamorfose diferente de uma mesma  água fontana que banha, batiza, rega,  orvalha e mata a sede de vida de quem bebe em suas libertadoras   águas.

A  gramática e suas formas constituem  as duas margens que contêm e limitam a palavra. Porém  a poesia é a agramatical  terceira margem  inaprisionável :exemplo a ser seguido para tornar emancipadoras  nossas práticas.

(No poeta Manoel de Barros, irmão poético de Guimarães, a “agramaticalidade” não é errar as regras da gramática; a agramaticalidade é produzir um dizer que , de tão potente , reinventa outras sintaxes e  gramáticas)

 

 

“A cisterna contém,

a fonte transborda.”

(W. Blake)

 

“Poeta é quem possui visão fontana.”

(Manoel de Barros)

 

“Um fluxo é como um rio cuja correnteza  é mais veloz no meio e rói suas margens.”

(Deleuze)

 

“Quero descrever o voo de um pássaro

escrevendo com a pena de uma asa.”

(Guimarães Rosa)

 

 

( ontem, 27 de junho, dia do nascimento de Guimarães Rosa)










quinta-feira, 27 de junho de 2024

Espinosa e o arco-íris

 

Espinosa não considera o ódio, a tristeza, a inveja, o ciúme, enfim, as paixões tristes como “vícios” da natureza humana, mas como propriedades dessa mesma natureza humana , assim como as tempestades e relâmpagos são propriedades do céu, e não vícios dele.

As paixões tristes são como que tempestades , trovões, nuvens cinzas; já as paixões alegres como o amor, a amizade e a alegria,  também propriedades da natureza humana, são brisas reconfortantes, raios de sol, arco-íris multicor. As paixões, tanto as alegres quanto as tristes, são propriedades da natureza humana que a explicam enquanto parte da Natureza.

Em Aristóteles, os “vícios” são por excesso ou por falta, sendo a virtude o “justo meio” entre o excesso e a falta: entre a falta dela mesma e excesso dela mesma. Por exemplo, a covardia é o vício da falta da virtude da coragem, enquanto que o excesso da virtude da coragem é o vício da  temeridade.

 Para Espinosa, é um absurdo supor que  a virtude pode  faltar a si mesma ou exceder a si mesma .  Exceder não é potencializar a si mesma, mas um  negar-se contraditório, no qual o negado e aquele que nega seriam o mesmo. Por outro lado,  se a virtude faltar a si mesma, ela simplesmente não pode existir e agir, na medida em que existir é agir.

 Se a temeridade, como pensa Aristóteles, é um excesso de coragem, a temeridade seria então a coragem estabelecendo para si mesma um limite para depois negar esse limite , excedendo-o. Mas tudo aquilo que é potente não se nega: afirma-se. E esse afirmar-se não é um justo meio, mas a virtude apreendida pelo meio, em seu coração actuante : assim como em relação ao corpo, ninguém sabe tudo o que uma virtude, enquanto potência, pode.

As paixões tristes não são vícios que nada explicam da natureza humana, as paixões tristes  são propriedades que explicam por qual razão a natureza humana padece e não conquista tudo o que pode, afirmando toda a sua potência.

A ideia de vício cria noções confusas acerca da natureza humana, ensejando discursos que a satirizam e zombam, ou então a condenam em nome de um ideal de comportamento  que se aplicaria apenas a santos , e não a seres humanos.

Enfim, a ideia de “vício” não nos faz compreender  adequadamente o que são as paixões tristes, e explicam muito menos ainda o que são as paixões alegres . Além disso, essa ideia de vício está sempre na boca e é instrumentalizada por aqueles que têm o pior dos vícios: o vício de  , por razões fundamentalistas,   em tudo ver demônios e , por esse motivo,  pregarem   mortificações ao corpo.




segunda-feira, 24 de junho de 2024

A tempestade...

 

"Considerei os afetos humanos, tais como o amor, o ódio, a cólera, a inveja, a glória, a misericórdia e outras comoções do ânimo não como vícios da natureza humana, mas como propriedades que lhe pertencem, assim como o calor, o frio, as tempestades e trovoadas pertencem à natureza da atmosfera e que, embora incômodos, são contudo necessários, têm causas certas pelas quais nos esforçamos de entender sua natureza." (Espinosa)

 

 

De repente, o céu fica escuro, tenso. Nuvens espessas mal conseguem guardar o ódio que lhes está dentro. O céu imenso se torna pequeno para elas.

As nuvens estão carregadas de fúria incontida: elas querem briga, vingança, ferida; uma quer destruir a outra, que só por existir e ser outra já é inimiga.

Quando se chocam, soltam faíscas, e retumbam ofensas que ensurdecem a terra.

Ao fim, todas choram a mágoa líquida, e são os homens aqui debaixo, crianças da terra, que sofrem a consequência da celeste briga.

Depois de muito chorarem, o ódio já não as incha. O vento lhes passa por dentro, mais calmas as nuvens respiram.

Os pensamentos que nutriam se vão desfazendo,  era apenas isso aquele chumbo: pensamento de ódio recíproco.

Elas vão ficando transparentes, leves se vão abrindo, se reconciliando com o infinito.

Quando a alma de si mesmo se apossa, é como o azul aberto que ela se mostra : horizontando-se, perdoando tudo.

                                                     ( "Campo sob o céu tempestuoso" / Van Gogh)






domingo, 23 de junho de 2024

A origem da geometria e o more geometrico de Espinosa

 

No texto A origem da geometria[1],  Michel Serres nos fala da origem egípcia da geometria e sua influência sobre a filosofia grega. Tales e Platão dão o testemunho  do diálogo inaugural entre a Grécia  e o Egito, entre a  pólis e a paisagem desértica, entre a escola filosófica e o plano abstrato e liso[2] do deserto, enfim, entre o pensamento filosófico e uma parte do mundo na qual África e Ásia fazem vizinhança.

É certo que todo monoteísmo é filho do deserto. Porém, não são o mesmo deserto o de  Moisés e Maomé e o que viu nascer a geometria em torno das pirâmides. O deserto teológico-político é mais hostil, pedregoso , carente de oásis...Neste tipo de deserto, o medo desperta a imaginação reativa que, fomentada pela palavra de ordem dos profetas,  passa a delirar oásis no além.  Já o deserto que viu nascer a geometria lembra um oceano branco e aberto , espelho na terra do amplo céu.

 O deserto teológico-político é sobrecodificado pelas “estrias da Lei”, ao passo que o deserto liso  é espaço nomádico: a presença de um sol sem nuvens projetando as  sombras das pirâmides sobre a tela plana do deserto, como uma lousa sem bordas,  criou um espaço abstrato propício à desterritorialização do pensamento em relação a todo empírico dado, para a mente então se reterritorializar sobre si mesma  e criar sua linguagem geométrica solar, apolínia. Não é uma linguagem fruto do medo e que exige  obediência a profetas, é uma linguagem que emancipa o pensamento e o ilumina com a ciência.

Ecos dessa geometria lisa criada pela própria natureza chega até Espinosa, que a reinventa. Pois em Espinosa  a Natureza não está contida ou limitada pelas formas geométricas-apolínias, como a interpretou Platão; ao contrário, são as formas geométricas que estão contidas e são explicadas pela Potência Incontível , “Dionisíaca”, da Natureza.



[1] Capitulo do livro Hermes : uma filosofia das ciências.

[2] “Lisa” , segundo Deleuze & Guattari, é toda realidade que é fluxo, devir; já “estriada” significa uma realidade codificada, estratificada, hierarquizada.




sábado, 22 de junho de 2024

A singularidade

 

Na abertura do belíssimo  filme Os girassóis da Rússia , de Vittorio de Sica, a câmera mostra um  imenso campo de girassóis  aberto ao  horizonte ( postarei nos comentários   essa abertura ).

 O campo de girassóis parece não ter contornos, pois no horizonte seu amarelo  se une ao azul do céu onde brilha o sol para o qual se voltam os girassóis.

 De repente, a câmera  parece que   vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto olhávamos  para o todo.

À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um  vento contrário[1]  que toca e agita a vida de alguns girassóis .

Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos  que um mesmo acontecimento, o vento contrário , provoca reações diferentes em cada girassol distinto, conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta a contrariedade do  vento   de forma firme, como um estoico; outro se curva e parece que vai se quebrar, triste.

Toda multiplicidade é heterogênea e composta de partes diferentes, como a “multitudo” de Espinosa. Preenchendo a tela, agora  essas partes vão ganhando vida,  realçando o seu jeito ,   sua existência única.

Então, toda a tela é ocupada por três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol. Esse girassol único  preenche toda a tela, antes preenchida pelo todo.

Uma singularidade[2] pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos realça cores, texturas, sutilezas, molecularidades... Saímos da  realidade extensiva do espaço  e entramos na realidade expressiva do afeto.

 Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não percebíamos a realidade expressiva que cada ser único é.

Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que seja, esse ser assim ampliado expressivamente   torna-se um rosto[3], isto é, uma realidade material na qual uma  alma , como uma artesã, esculpe o que pensa e sente.

Um rosto “desabre”, como diz Manoel de Barros,  o que por dentro sentimos e pensamos.

Preenchendo a tela, o rosto do girassol mira o nosso , e nele vemos    dramas, desejos e afetos, como um espelho dos nossos dramas, desejos e afetos  .

Embora não possua cérebro e nervos, um girassol é um ser vivo : ele também pensa e sente.

E seu rosto talvez  queira nos dizer  que ante os  ventos ameaçadores e sombrios da história não devemos nos curvar, e sim  perseverar, com todas as forças,   voltados para a luz do sol.

 

“As intensidades do girassol são forças do tempo?”

(Cláudio Ulpiano)

 

“Um girassol se apropriou de Deus:

foi em Van Gogh.”

“Nas fendas do insignificante

ele procura grãos de sol.”

(Manoel de Barros)



[1] O tema dos “ventos contrários” é uma ideia presente nos estoicos.

[2] Os medievais chamavam essa singularidade de “ecceidade”. Trazendo essa questão para o campo onto-semiótico, Peirce designa essa realidade singular expressiva de “Primeiridade”.

[3] Deleuze, “A imagem-afecção: rosto e primeiro plano”, capítulo do livro Cinema 1: a imagem-movimento.



 

Não consegui achar o filme inteiro na web. Segue a abertura e um pedacinho do filme:



 

 



[1] Os medievais chamavam essa singularidade de “ecceidade”. Trazendo essa questão para o campo onto-semiótico, Peirce designa essa realidade singular expressiva de “Primeiridade”.

[2] Deleuze, “A imagem-afecção: rosto e primeiro plano”, capítulo do livro Cinema 1: a imagem-movimento.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Espinosa : a constância do sábio

 

Segundo Espinosa, entre o sábio e o  homem simples dotado de  um mínimo de discernimento e generosidade no coração, entre ambos  não há um abismo ou algo instransponível. A diferença reside no fato de o sábio conseguir viver de maneira  mais constante o que o homem simples vive de forma inconstante.

O homem simples às vezes experimenta o mesmo que experimenta o sábio, mas faz depender essa experiência dos jogos fortuitos da contingência, de tal maneira que   ele tem da compreensão apenas a faísca,  mas não a constância de sua luz contínua ou a intensidade de seu intuitivo clarão.

Na verdade, a inconstância se encontra mais do lado daquele que experimenta do que do experimentado. Amor, amizade, desejo, etc., não tornam inconstante quem os experimenta, mas esses afetos só se tornam constantes se já o for aquele que os experimenta.

Por isso, o sábio torna a si mesmo constante primeiro, de tal modo que mesmo do inconstante e do contingente  ele consegue formar uma ideia consistente, constante e necessária, pois ele  torna a si mesmo necessário primeiro.

Todos desejam que a alegria, o amor, a amizade, enfim, a felicidade os acompanhem. Todavia, poucos se esforçam para se tornarem dignos e merecedores de fazer companhia a essas virtudes da vida. Todos experimentam momentos de alegria, de amizade, de amor, de coragem, de conhecimento, etc, e imaginam que isso depende da sorte, ou mais do outro do que de si. O sábio torna constante isso que nos outros depende de momentos, pois no sábio tais afetos não dependem do momento e das circunstâncias, mas de um esforço que nada deve à sorte ( a “fortuna”) e que jamais será impedido por ideias confusas tais como "azar" .

A constância do sábio não se mede por aquilo que ele faz, não é uma repetição de comportamentos ou atitudes que vemos do exterior. Ele é constante, primeiro, em ser ele mesmo, em se esforçar para tal. O sábio não é constante por fazer sempre as mesmas coisas, ele é constante por fazer coisas diferentes sendo sempre ele mesmo.

Possuindo como raiz  o verbo latino stare , que significa permanência, a constância é a virtude de quem permanece o mesmo a despeito das circunstâncias. Visto assim , o sábio nada tem de privilegiado, pois privilegiado se imagina exatamente aquele que crê que a sorte o favorece, e que isto o exime de qualquer esforço. 

 Sobretudo, um sábio nunca se autointitula sábio ou ostenta sabedoria. Sábio é aquele cuja  vida que constituiu para si assim o chama. Sua sabedoria nasce do esforço e da  perseverança , mas sem perder a prática generosa do  amor e o afeto clínico da  alegria.  E disso a própria vida de Espinosa dá o testemunho.

 

“Todo desejo quer eternidade:

quer profunda, profunda eternidade!”

(Nietzsche[1])



[1] Quando viveu  a sua intuição profunda do Eterno Retorno, uma de suas ideias principais, Nietzsche acabara de ler Espinosa e saiu para caminhar. Ou seja, Nietzsche não teve tal intuição   lendo sozinho em seu quarto, apenas intelectualmente;  ele  teve a intuição caminhando, agenciado com o mundo e o sentindo intensamente, provavelmente tendo em sua mente e em seu corpo a companhia de Espinosa.









quinta-feira, 20 de junho de 2024

a chegada do inverno...

Segundo a mitologia, Hades é a divindade que habita a região trevosa muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez,  Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a divindade  da fertilidade.

E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer em Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, ele raptou  Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de  beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava .

Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone subiria para viver entre nós,  sua chegada nos  trazendo a primavera.  Durante outra parte do ano, uma parte  doída para nós, Perséfone viveria lá embaixo . Desta maneira nasceu o inverno: o período em que Perséfone desce para ir morar com Hades.

 Mas para nos confortar um pouco e minorar a tristeza pela sua ausência, Perséfone criou flores que florescem no inverno. Foi assim que nasceram a Tulipa, a Angélica , o Crisântemo , a Orquídea e o Lírio que, como ensina Manoel de Barros, “brota  de monturos...”

Hoje começa o inverno. Perséfone nos deixa...

Ainda bem que pode nos socorrer e acalentar outra narrativa originária  , uma narrativa de autoria do povo  tupi-guarani, cujo sangue também corre nas nossas veias. Para esse povo, o   ipê  é  a árvore-filha mais potente e perseverante de Pindorama, a Mãe-Terra;  pois o ipê é capaz de florescer o ano inteiro em resistente primavera, mesmo sob o inverno.

“Árvore da Vida”, assim nossos povos originários chamam  o ipê. Nem o inverno , nem os vis predadores armados com  motosserra  impedem o ipê de dizer , florindo,  o que  o poeta Goethe disse em versos: “O céu da teoria é cinza; mas sempre verdejante é a árvore da vida.”

 

                                            (imagem: “Roots” /“Raízes”, de Frida Kahlo)








quarta-feira, 19 de junho de 2024

HOJE, 19 DE JUNHO, CHICO FAZ 80 ANOS

 

Antes de ouvir Chico, eu o li. Eu  tinha por volta  de 12 anos. Antes de ouvi-lo como música, eu o li como poesia: como poesia que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola,  ainda pairava sobre nós a sombra da dit4dura. 

Eu já  sabia ler livros : de história, de geografia e até livros de literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura.

Foi a poesia que vive na canção popular  que, quando criança,  me fez aprender a ler não apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por descobrir.

Li pela primeira vez Chico  numa aula de língua portuguesa . Ao invés daqueles livros re4cionários  que, na parte de interpretação de textos,  empregavam os “parnasianos” , a nossa querida professora  resolveu adotar um livro diferente, plural :o livro apresentava  as letras de músicas dos compositores que participaram dos Festivais da Canção . Tais Festivais eram ainda  recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram, não tinha memória ou vivência deles.

Quando em sala de aula  li  pela primeira vez “Construção”, de Chico, experimentei o que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”.  Desterritorializar-se é libertar-se  do acostumado de toda cartilha ,incluindo as cartilhas que tentam aprisionar  nossa mente e sensibilidade.

Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : eu também me reterritorializava num território composto de   sensações e afetos novos que me faziam crescer por dentro. Ao ler o poeta ,enfim, fui por ele lido: e me descobri  também  como poema a fazer-se.

 Esse novo território não tinha limites ou cercas, ele era ilimitado, aberto, e me  ampliava para além dos muros da escola: me lançava na rua , me inseria no cosmos.

Foi a partir dali que tomei gosto  pela leitura  e  compreendi que todo ler também é um “ ler-se ” : ler a si e a sociedade da qual fazemos parte  , para que a  leitura não seja apenas de palavras, e sim dos sentidos existenciais  que nunca poderão  ser reduzidos apenas a livros , muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milic0s queriam nos adestrar.

Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E não sem alegria, a mesma que depois aprendi em Espinosa.

Chico nos ensinava que era possível resistir cantando , e que o cantar  se torna ainda mais forte quando se canta junto, sobretudo quando os autorit4rios querem nos amordaçar, ontem e hoje.

E creio que foi ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo. Pois quando o pensar e o sentir  se tornam  duas asas abertas para voos de (auto)descobertas, aprendemos  o que Deleuze assim chamou: pop’filosofia!















E ontem foi o aniversário da grande Bethânia ( 79 anos):



Bethânia lendo Manoel ( trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna):




Chico & Bethânia:



Para esconjurar o f4scismo, os fundamentalismos doentios e toda forma de ignorância:



terça-feira, 18 de junho de 2024

O bem dito...

 

O nome completo de Espinosa é: Bento de Espinosa. Nome português, portanto.  “Bento” vem do latim “Benedictus” , que nasce da união de “bem” mais “dictio”, “dizer”. Assim, Benedictus , Bento, é : “aquele que diz o bem”, o “bem dito”.

“Espinosa”, por sua vez, significa : “lugar com espinhos”. Há vários sentidos possíveis para esses “espinhos”. Eles podem significar dificuldades, obstáculos, contrariedades, dores, sofrimentos...Mas também podem significar “ideias confusas”, “ódios”, “rancores”, “ressentimentos”  , assim  como as pessoas que fomentam e cultivam tais paixões tristes. Pois pessoas assim são "espinhos", para elas mesmas e para os outros. 

Bento de Espinosa  significa: aquele que diz o bem,  apesar dos espinhos que o cercam; aquele que diz o bem , não obstante  o mau que tenta feri-lo; enfim, aquele que filosofa , a despeito da ignorância em torno que o ameaça e quer calá-lo.

O anel de Espinosa tinha como imagem uma rosa com espinhos e mais a palavra "caute" escrita embaixo. "Caute" significa "cuidado". Espinosa parece querer dizer que tudo aquilo que vale a pena ser colhido requer perseverante cuidado no nosso proceder. Tudo o que merece ser colhido também é difícil de obter: não se colhe a rosa sem se aprender , primeiro,  a evitar  os espinhos. 




A coragem como sabedoria do corpo

 

Esta ideia  está tanto em Aristóteles como em Espinosa: a coragem é a primeira das virtudes, todas as outras virtudes dependem dela. Pois é preciso coragem para ser honesto, amigo, justo,  generoso, sábio...

A coragem é corpórea, cordial[1], torácica , enfim, cardíaca: ela nasce do coração ( cordis) . A coragem  é a sabedoria ativa do corpo.

Quando Espinosa afirma que “ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, ele está se colocando uma questão ética, concreta, corajosa, que nada tem a ver com as teorizações do intelecto.

Quanto aos vícios éticos, quase todos provêm do intelecto. A inveja, o ciúme, a avareza...Todos esses vícios supõem o cálculo interesseiro, a comparação autoindulgente, a contabilidade de perdas e ganhos, bem como a dissimulação empregando a  linguagem .





   ( Este é um dos maiores livros espinosistas : inspirado na frase de Espinosa que citamos, Michel Serres escreve sobre as potências [ignoradas] do corpo. Existe uma tradução do livro para o português. Infelizmente, na edição brasileira excluíram as ricas imagens que Serres se utiliza como apoio artístico-pictural ao  seu texto  )



[1] Michel Serres, Variações sobre o corpo, capítulo “Coragem”.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Empédocles

 

                                                            EMPÉDOCLES [1]

 

Empédocles viveu em uma época na qual poesia e filosofia, imagem e conceito, ainda não haviam se separado. Ao mesmo tempo poeta e filósofo, Empédocles era um pensador, um dos mais extraordinários.

 Platão e Aristóteles criticaram muito Empédocles, sobretudo por dois aspectos: eles não aceitavam a visão de Empédocles de que não existe nada acima e superior à natureza, e também criticavam o fato de Empédocles ensinar que os Afetos não eram apenas estados subjetivos, os Afetos também são Potências imanentes ao Cosmos.

Assim como a linguagem, a natureza possui um alfabeto  e uma poética . O alfabeto da natureza é composto por  quatro elementos-letras: terra, fogo, água e ar. Esses elementos-letras  são absolutos, isto é, não se dissolvem ( ab-soluto: o que não é solúvel, o que não se dissolve). Empédocles também chama terra, fogo, água e ar de as Quatro Raízes. Em Empédocles, a Natureza é a poética desses elementos tecendo uma trama rizomática.

Além desse alfabeto  dos elementos, portanto, há a poética da natureza que reúne essas letras , ou então volta a  separá-las. A poética da natureza é realizada por dois Afetos : o Amor e a Discórdia.

O Amor é uma força cósmica que faz água, fogo, ar e terra vencerem suas solidões e se reunirem para , juntos, formarem um novo ser, como uma nova palavra que reúne as letras.

Os seres vivos, as estrelas, as galáxias, os seres humanos...tudo isso é a obra que nasceu da poética amorosa da natureza que reuniu os elementos. “Amor”, aqui, não é o mesmo que sentimento romântico, mas  uma força cósmica .

Já a Discórdia é outra força cósmica, porém que separa os elementos e os faz existirem sozinhos, cada um em sua solidão cósmica, cada um bastando a si mesmo.

Algumas traduções, erradamente, empregam o termo “Ódio” em vez de “Discórdia”. Contudo, ódio é a mera destruição , ao passo que discórdia se origina de “dis-cordis”: “cordis” é “coração”. O contrário de discórdia é “concórdia”: “manter o coração junto”.

Assim , a discórdia não é o ódio: a discórdia é a separação daquilo que o coração ( o amor) juntou. Em geral, os que só odeiam são incazes de pôr o coração junto a alguma coisa...

Amor e Discórdia são forças cósmicas necessárias à vida em seu processo infinito de , a partir de seu alfabeto simples , criar sua poesia  múltipla, diversa  e heterogênea.

O Amor não é o “Bem”, tampouco  a Discórdia o “Mal”, pois a Discórdia não nega ou destroi os elementos, tampouco é inimiga do Amor . Não só o amor tem sua razão de ser, também o tem a discórdia.

Não se aprende com o primeiro Afeto sem compreender a necessidade do segundo. Nem há sabedoria em apenas amar sem nunca discordar, pois na vivência do amor há muitas discórdias, sem que disso nasçam ódios.

Contudo, para haver discórdia é preciso que, antes, algo tenha se reunido por amor. Para que o coração se retire de algo, é preciso que, primeiro, ele tenha feito parte desse algo. Nesse sentido, o amor acrescenta nova vida à vida solitária dos elementos, enquanto a discórdia desfaz essa nova vida e restitui os elementos à sua solidão.

Em Heráclito, os elementos se combatem , porém a vitória é sempre a do Fogo, imagem-móvel do tempo que destroi e constroi. Em Empédocles, os elementos se reúnem ou se dispersam conforme os Afetos do Amor e da Discórdia que, imagem inversamente especular um do outro, se complementam e  se necessitam eternamente.

 

“O tom de sua fala! Em cada sílaba

soavam todas as melodias! E o espírito

que animava suas palavras – gostaria  de sentar-me

horas a fio a seus pés, discípula

e criança, contemplar o Éter ,

e alegrar-me com ele, até minha alma perder-se

no céu que lhe pertence!”

( Trecho do poema “A morte de Empédocles”, de Hörderlin)



                                                         ( Este livro é apenas uma sugestão)



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

sábado, 15 de junho de 2024

os padeiros...

 

Uma das palavras de origem mais rica e  bonita  é “companhia”.  Oriunda do latim “com-pane”, companhia significa : “dividir o pão”. Companheiros e companheiras: “aqueles que sabem dividir o pão.”

Além do pão que alimenta o corpo, há também o pão que nutre a alma. O primeiro pão tem preço e se compra com dinheiro, o segundo não se compra ou vende, e somente o tem quem o partilha.

 A falta do primeiro pão gera  fome ; a ausência do segundo produz tristeza,  desânimo, resignação, apatia.

Um ignorante é um desnutrido do pão que alimenta o espírito. E tal ignorante se torna ainda mais   desnutrido quando acumula egoisticamente  o pão que o dinheiro compra muito além das necessidades do  seu estômago .

Do pão que alimenta o espírito, a filosofia e a poesia são as autênticas padarias: nelas podemos achar e saborear esse pão fresquinho, quentinho, recém saído do forno. E mesmo que o livro tenha sido escrito há mais de dois mil anos , como os poemas de Heráclito ou os escritos de Lucrécio, suas ideias-pães  sempre têm o gosto da descoberta e da novidade.

Não por acaso,  “sabor” e “saber” são palavras primas. Por isso, aprender  nada tem a ver com  adestramentos para o "mercado" e suas cartilhas , muito menos bater continência servil em escola militar , mas sim   tomar gosto pelo conhecimento que liberta e  emancipa .

Espinosa e Manoel de Barros são meus padeiros preferidos. O fermento que eles empregam nos pães que produzem  também faz crescer a mente e o coração de quem  se alimenta deles , pois  generosidade é o nome desse fermento.

Além dos pães, Espinosa e Manoel também fabricam sonhos, isto é, algo que nos alimenta de lúdico. Na padaria do meu bairro de infância havia sonhos saborosos, inesquecíveis. Para quem não se lembra ou nunca viu, o sonho é uma espécie de bolinho com um recheio delicioso . Tristes sinais dos tempos: não tenho visto mais sonhos nas padarias, e carente de sonhos também andam as mentes...

Os sonhos que Manoel e Espinosa fabricam não são utopias evasivas  ou fantasias  escapistas. Os sonhos que eles produzem são os afetos ativos que nutrem   nosso sentir e nos dão  forças para perseverarmos  ainda mais vivos: críticos, mas sem perdermos a criatividade; firmes, porém sem esquecermos a gentileza; combativos, mas sem nos privarmos de poesia.






quinta-feira, 13 de junho de 2024

Beatitude e riqueza em Espinosa

 

Espinosa ensina que cada ser singular que existe é um modo ou modificação do Absolutamente Infinito. Cada modo se distingue do outro não por aquilo que possui de coisas finitas, cada modo se distingue de outro pelo grau da potência infinita que ele expressa e conquista.

Quanto mais potência um modo expressa, menos egóico e inconstante é, de menos coisas exteriores precisa para afirmar-se e ser.

Potência ( potentia) e poder ( potestas)  não são a mesma coisa. Toda potência que expressamos é um grau da Potência Infinita da Natureza, já o poder se explica pelas relações dos modos finitos entre si ; e tais relações podem ser  de dominação ou de emancipação, de servidão ou de liberdade, de  tristeza ou de alegria , de ódio ou de amor,  de beligerância ou de cooperação, de tirania ou de democracia.   

Como o infinito não pode ser posse exclusiva de ninguém, aquele que mais expressa o infinito é aquele que mais riqueza tem. Não riqueza em ouro , posses ou capital, mas riqueza de ideias, riqueza de ações, riqueza de afetos, riquezas essas que se caracterizam pela generosidade.

Em latim, um dos sentidos de “beatitude” é riqueza . Ao contrário da riqueza associada à busca por  poder, a beatitude é uma riqueza que cresce quanto mais a partilhamos, quanto mais despertamos em cada um a sua potência.