quinta-feira, 29 de novembro de 2018

suburbano


"Suburbano" não é um sub-urbano, um urbano de segunda categoria. O prefixo “sub” não indica um ordenamento hierárquico. Seu sentido original é o mesmo do “sub” presente em “substância”, pois substância, em Espinosa por exemplo,  é o que sustenta toda instância, tanto as instâncias físicas  quanto as simbólicas, as tangíveis e as intangíveis. No Rio, o espaço suburbano não é apenas um espaço físico distante do Centro e da Zona Sul. No território suburbano vive o que sustenta todo espaço urbano: a sociabilidade pautada pelo afeto ao que é  comum. É este o “sub” do suburbano: o afeto, antes mesmo da propriedade e do comércio. O afeto é meio de agenciamentos não totalmente codificáveis pela lógica do planejamento racional urbano. Brasília não podia dar certo: não se pode  colocar no papel um espaço suburbano, pois este nasce da vida espontânea que existe fora do que se pode criar apenas abstratamente no papel.
Na Grécia, “demos” era o nome dado aos subúrbios de Atenas. Curiosamente, “democracia” é, literalmente”, “poder daquilo que em nós é suburbano”, e que é a base da vida urbana. Sem esse “sub”, o urbano se torna apenas coleção de indivíduos reclusos e emparedados em   suas solidões privadas cercadas de câmeras de vigilância  paranoicas e arame farpado nos muros.






terça-feira, 27 de novembro de 2018

os criadores


Ter e afirmar uma perspectiva não é a mesma coisa que emitir mera opinião. Em geral, a troca de opiniões termina mal porque quem opina quer fazer prevalecer seu ego, não importando o assunto tratado. O que caracteriza a opinião é que ela é exclusivista, particularista e excludente do que lhe é diferente. Ter uma perspectiva , ao contrário, é afirmar-se a partir de algo que permite outras perspectivas diferentes. A perspectiva mais potente não é a que simplesmente derrota a outra, mas aquela que leva mais longe a ideia comum que lhe dá existência . No vídeo, duas perspectivas diferentes sobre o que é ser músico, sobre o que é criar e afirmar sua singularidade.Eles não opinam sobre o que é a música, com cada um achando que música é apenas o que ele faz . Eles expressam perspectivas diferentes sobre o que pode a música, fazendo a música viver ainda mais, afetando os que ouvem , dançam e tocam juntos. Cada um potencializa sua singularidade ao afirmar o jazz como comum que os une, mas sem querer homogeneizar em um “amém” sem espaço para discordância . É na imanência de uma ideia comum, de um afeto comum, que se pode discordar sem brigar ou meramente querer destruir o outro. É tocando que cada músico constrói o seu estilo acerca do que é tocar. Eles não afirmam seu ego, eles afirmam a arte que lhes permite ir além do que pode o ego de cada um tomado isoladamente. Apesar de aparentemente disputarem, na verdade eles se agenciam e celebram, em coletivo, a alegria de inventar algo junto. Não os move o ódio egoico recíproco ou a inveja  um pelo outro, mas o afeto potente, em contraponto, pela arte que os faz ser o que eles são: autênticos criadores .



domingo, 25 de novembro de 2018

- o embrião e o poeta

O poeta Manoel de Barros já passava dos 80 anos quando um editor  pediu que ele escrevesse  três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. Afinal, quem chega aos 80 anos parece que tem muito a  falar de si...Depois de algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro: “Memórias da primeira infância”. Meses depois, nova publicação: “Memórias da segunda infância”. Após novo intervalo, outra obra nasceu: “Memórias da terceira infância”. Como as memórias da vida adulta e da velhice não apareciam, Manoel foi indagado a respeito, e assim o poeta  respondeu: “ só tive infância, não tive velhez: na ponta do meu lápis há apenas nascimento”. Para o poeta, a "velhez" não é  uma idade,  a "velhez" se vê em  uma vida, individual ou coletiva, que se perdeu de seu "embrião" enquanto "pura potência"(Deleuze). Embrião não é o que precede a criança e  morre para que a criança  vire adulto e também morra,  até que  o adulto também morra para que venha o velho, para que esse enfim morra pondo fim ao reinventar-se da  vida. O embrião não está num passado remoto morto. Mesmo o imenso e antiquíssimo rio amazonas tem seu embrião lá no alto dos Andes. É graças à vida de sua nascente que o rio também vive e persevera, sem se separar de seu “minadouro”. Em todo minadouro há uma criança que brinca inocentemente: lá onde nasce, o velho amazonas ainda é criança umbilicada à potência que gera.O embrião é a “origem que renova”. O embrião de nossa sociedade não é a Grécia antiga ou a Europa iluminista,  estas são ainda partes do rio da história ,  não são o embrião-fonte enquanto “minadouro” sem o qual não podemos dar novo curso ao rio do tempo, para que este não seque nos atuais desertos de ideias. O embrião-fonte  vive naqueles que, pessoal e coletivamente ,  põem nascimento naquilo que dizem e fazem aqui e agora, resistindo aos que  são pedra e obstáculo para que a vida avance : “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito.” (Manoel de Barros)

-imagem: Deleuze e seu filho Julian:


sábado, 24 de novembro de 2018

a escova do poeta


No poema “Escova”,  Manoel de Barros  diz ter visto, quando criança, dois homens sentados no chão  "escovando osso" . No início, diz o poeta, “achei que eles eram loucos” . Mas ele olhou bem e viu que não podiam ser loucos aqueles homens. Louco ,  o mais perigoso,  é  quem  quer impor aos outros o seu   “mesmal” . O “mesmal” é a doença de quem imagina que seu modo de viver é o único normal. Aqueles homens não podiam ser loucos, pois pareciam ver a novidade onde todos veem o igual. No escovar deles  também havia uma  artesania semelhante à de Espinosa a polir lentes com cuidado:  eles queriam livrar o osso da craca e poeira que nele grudaram .  O poeta descobriu então que aqueles homens eram arqueólogos. Eles queriam ressuscitar no osso o mundo no qual ele foi parte de um esqueleto sob músculo e pele. E mais do que isso: eles desejavam reviver  o sentido que estava no osso , pois nada faz sentido sozinho: o osso foi  parte de  um esqueleto  que era   parte de um ser vivente,  igualmente parte singular de um mundo que ainda vivia , como sentido a descobrir, no osso. E os próprios arqueólogos eram partes de um conhecer  explorador  que ressignificava o sentido daquele osso metamorfoseando-o em signo de um mundo.  Sem esse ressignificar explorador  o conhecimento se torna apenas   adestramento para os significados que o poder nos quer impor. Para eles  o osso era mais do que osso: era também o fragmento de uma história , a nossa história,  que a vida  ainda está a escrever, com ideias e corpos. Enquanto viver em nós aquele impulso inventor de mundos ,  não seremos o epílogo de tal história: a faremos perseverar   como a mais necessária  lição que devemos ensinar   às crianças, para que a vida pensante não se extinga.   Ao ver os arqueólogos ,   o poeta compreendeu qual seria seu destino: escovar as palavras, retirar delas a idiotia, a ignorância, o preconceito, o clichê  e as banalidades que nelas colocaram as mentes obtusas,  de tal maneira que seria também uma “ecologia mental” o que o poeta faria  ao escovar das palavras tais sujeiras e craca. Ao escovar as palavras, o poeta  não acha  “Verdades” , “Ordens” ou “Mandamentos”; ele acha  a poesia como sentido primeiro, não conformista, das coisas : “A poesia está guardada nas palavras, é tudo o que sei” (Manoel de Barros).  





terça-feira, 20 de novembro de 2018

a origem do museu


https://jornalggn.com.br/blog/strelitziaamigobrancarosa1/museu-deriva-de-musas-filhas-da-memoria-e-de-zeus


“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, “musa” significa “conhecimento”. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão,  ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto.
As Musas expressavam a  memória do que não pode ser esquecido. No mito, as Musas são filhas de Zeus , divindade ligada à justiça e à ética, com Mnemósyne, Deusa da Memória.  Zeus uniu-se a Mnemósyne após uma guerra vencida por ele contra as forças da barbárie vinculadas à  ignorância em seus variados aspectos. Dessa união entre a ética e a memória nasceram as Musas, divindades da cultura e do patrimônio. Assim,  todo patrimônio cultural  nasce do matrimônio gerador de uma ética da memória, de uma memória da ética.
A cultura não existe apenas para relembrar algo que se deu no passado e passou. A cultura existe para  fazer lembrar e dar a conhecer que se é possível vencer a barbárie da violência física e simbólica. Foi este acontecimento a origem do museu: a luta contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não pode vencer. Não a ignorância em relação a datas e regras, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a beleza, a natureza, enfim, a vida. É esse acontecimento que dá ao museu o seu sentido. Mesmo que destruam todos seus prédios , não podem destruir sua ideia geradora.
Na singela foto , vemos a bailarina em seu gesto eterno  imortalizado nas tintas. Na menininha, esse gesto renasce, outro. Ele renasce em seu corpo, em seu jeito: a criança interpreta, dançando, o que é dançar , reinventando o dançar à sua maneira. Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa,  nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado: que é possível vencer, com cultura e conhecimento, a barbárie e suas várias faces.


domingo, 18 de novembro de 2018

- o filho do Príncipe

Tempos atrás ganhei de presente um jovem canário. A pessoa que me deu já o tinha batizado de “Príncipe”. De fato,  assim ele era: um “Príncipe”, no porte e no canto. Não gosto de gaiolas, sou contra prender os seres, ainda mais os que têm asas. Mas não queria fazer  desfeita. Aceitei o canário. Com o tempo, adquiri feição por ele, e ele por mim. Bastava eu chegar em casa que ele já começava a cantar. Ele passou a confiar em mim a tal ponto que comia  alpiste em minha mão. O tempo passou, ele envelheceu. Mas ainda havia nele vida. Decidi então que o Príncipe não podia morrer na gaiola sem conhecer o que é voar livre. Levei-o ao Parque do Flamengo, lugar amplo e arborizado. Quando abri a gaiola e o apanhei, pela primeira vez ele bicou minha mão. Parecia que ele adivinhava o que eu queria fazer: libertá-lo de mim. Ele não compreendia que aquele ato também me  era doído , mas nascia do meu amor por ele. Quando o soltei, ele mal conseguiu voar. Creio que ele compreendeu que suas asas estavam atrofiadas. Ele pousou na grama, olhou ao redor, parecendo admirado com o horizonte tão perto. Virei as costas e fui embora. Mal caminhei alguns passos não resisti e  me virei para a “última olhada”. Ele não estava mais lá... Passados mais de 10 anos do fato, sempre que passo por ali inadvertidamente o procuro nos galhos, mesmo com a realística razão sempre a me dizer que eu nunca mais o verei...
 Hoje, porém, sai bem cedo para deambular . Fui sem roteiro prévio, andei muito. De repente me vi no Parque do Flamengo e me sentei nas raízes de uma amendoeira. Estava uma manhã linda. Curiosamente, ouvi um canto estranho vindo dos galhos. Levantei a cabeça e vi um tipo de canário que nunca vi antes: parecia um pardal! Tinha a cor  e o jeito de um pardal, mas cantava como um Príncipe. Seria um mestiço?  Só então me dei conta que havia sentado exatamente a poucos metros de onde  libertei  o Príncipe anos atrás. Tentei segurar a imaginação, mas não consegui, ela foi mais forte, como sempre ela é mais forte em mim do que os objetivos fatos. Retornei mentalmente àquela manhã do passado, e vi o que aconteceu quando fui embora: de um galho, uma pardal observava toda a cena. Vendo o Príncipe em perigo e  perdido no meio da liberdade, ela desceu e  pousou ao lado dele  e o levou consigo para aprender a ser livre .  E assim o Príncipe foi salvo pela pardal livre . Juntos construíram ninho e engendraram uma nova raça.


sábado, 17 de novembro de 2018

assobios


Há uma passagem do livro “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, na  qual Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava amor e amizade  a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém  não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo destino dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar aos carrascos perdão. Zaratustra já se inclinava para prostrar-se  derrotado  quando, de repente, um grito veio de dentro dele e protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”. Livrando-se das seduções  da autopiedade, Zaratustra  expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da vida,  da vida que resiste e avança, que protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de Zaratustra. Em alguns, essa voz se faz alta para acordar quem dorme para a vida; noutros, nos já despertos, ela apenas canta, como em Cartola ou Orfeu, ou sabe se transfigurar em assobio, como em Manoel.



terça-feira, 13 de novembro de 2018

- lançamento de livro

(Amigos, divulgo aqui lançamento amanhã do livro da poeta portuguesa Sandra Santos. Tive o prazer de escrever o Prefácio e também apresentarei amanhã o livro no lançamento. Abraços!)

"aceita que és só morada
de algo que muda e forja
e range e rasga
aceita que és miríade
de algo que dói e cala
e rumoreja e abala.
aceita que és só
um pedaço recrudescendo
num todo de tudo".

(Sandra Santos)


sábado, 10 de novembro de 2018

procustos, ontem e hoje


Sim, o “coiso” é mito, quem assim o chama tem razão. O “coiso”  lembra muito um personagem mitológico: “Procusto”,  conhecido por ser intolerante e rígido. Certa vez, contudo, Procusto propagandeou que havia mudado e iria provar. Ele veio para perto de uma estrada por onde passava o povo cansado voltando do trabalho. Procusto construiu uma cama e a oferecia ao povo como prova de sua “ bondade” e apreço pelos outros. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Às vezes, a cama parecia pequena: a cabeça e as pernas da pessoa sobravam. Procusto pegava então um machado e as decepava. Noutras vezes, a cama se mostrava de tamanho demasiado. Procusto amarrava os membros da pessoa com correntes e os esticava violentamente para amoldar à força, acabando por desmembrar quem acreditou e se deitou confiando em Procusto . Enfim, ninguém sobrevivia àquela cama: ela prometia ser um amparo, mas era mesmo uma sentença de morte.  Quando o povo reclamava, Procusto se limitava a tirar do bolso uma régua tão inflexível quanto sua mente, passando então a medir com rigidez militar cada lado da cama, para depois recriminar as pessoas, acusando: “Do que vocês estão reclamando? A régua não mente e nem tem Ideologias: ela mostra a Verdade Objetiva. Cada lado da cama é igual ao outro, sem divergência. A cama é homogênea, perfeita! A imperfeição está em vocês que são diferentes, heterogêneos. Amoldem-se, mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade! ”.



terça-feira, 6 de novembro de 2018

plotino, narciso, ulisses

O tempo tudo tira,
e tudo dá.
Giordano Bruno

Segundo Plotino, a alma humana pode ser compreendida segundo dois mitos: o de Narciso e o de Ulisses.Tais mitos são símbolos da condição humana, independentemente da época histórica.
Narciso representa a alma que foge de si mesma e se apaixona pelas imagens corpóreas que lhe estão fora. Fisga-o a imagem-aparência dos outros corpos a agir sobre o seu. Narciso ama o que vê, e pensa que tudo o que existe é o que vê. Porém,  ele vê somente  uma volúvel existência carregada pela correnteza inconstante da superfície sem espessura de um lago turvo, que nada mais é do que a projeção de sua imaginação ensimesmada.
Narciso quer parar o imparável : apega-se ao que não pode ser pego, então sofre por amar um espectro. Na verdade ele desconhece que ama apenas uma projeção de si mesmo fora de si mesmo: ele procura no fora o dentro do qual se perdeu. Narciso é como o molde que molda a areia,mas que se aliena no que moldou, passando a  sofrer com o vento a desfazer movediça certeza. 
 Narciso é o extremo oposto, o avesso , da divisa do Oráculo de Delfos: ele desconhece a si mesmo e , por isso, procura a si mesmo onde  um si não pode haver. Narciso simboliza a saída da alma de si mesma e a sua perda fora de si mesma: seus olhos não são janelas que dão para dentro, são janelas através das quais a alma salta para fora e não mais retorna, como o suicida em seu desespero.
Ulisses, ao contrário, é o personagem do regresso, do retorno. Enquanto Narciso é perda na contemplação estéril, egoica,   Ulisses é ação laboriosa e paciente para vencer os obstáculos e barreiras que se interpõem entre ele e sua casa, seu lar.
Ulisses quer retornar, porém perdera o mapa , seu navio queimou, os companheiros o abandonaram, enquanto  nuvens sombrias cobrem as estrelas que poderiam orientá-lo. Faltam-lhe os meios para o retorno, porém não lhe faltam a memória e o desejo de ao início retornar.
Até à morte Ulisses foi, pois ele esteve no Hades, como Orfeu também esteve. Todavia, enquanto Orfeu foi ao Inferno buscar o amor que vivera , para assim fazê-lo viver novamente, Ulisses foi parar no "Mundo Subterrâneo" perdido por um amor infernal, que no Hades o fez refém como a um morto.
Porém , no Hades Ulisses  encontrou o que não esperava: lá estava  sua mãe, que morrera sem Ulisses o saber. Embora ela fosse sombra sem memória, do gerado a geradora  não esqueceu. Assim,  em meio à morte ele encontrou a sombra da vida.  Embora sombra,  tal encontro despertou em Ulisses a força para querer rever, e viver,  a vida e sua luz, fora daquele mundo de coisas mortas.
Ulisses é o retorno ao caminho já feito que agora parece novo, pois o caminhante já não é o mesmo. Ulisses é a alma em busca de si mesma, do seu natal, e que sabe que o seu si mesma está onde se encontra sua origem: esta não é só o fim, ela é também invenção de  meios.
O retorno da alma a si mesma não é como o cogito cartesiano, que se compraz apenas com pensamentos racionais interiores ao eu; o autêntico retorno é desejo de achar-se fora do eu, porém perto do pensamento que não é egoico. A origem não é uma ideia inata ao eu, ela é o natal que gerou o eu para ser mais do que eu. Chegando ao seu natal, o eu pode até mesmo libertar-se de si mesmo, e ser ninguém ou outro : "Perdoai, mas eu preciso ser Outros"(Manoel de Barros).
Ulisses retorna ao preço de provas éticas pelas quais é testado. Isso acontecia para o destino saber se era apenas em palavras que  Ulisses retornava, ou se havia autenticidade em seu retorno, em ações também.
 A última prova de Ulisses foi a “dobra do arco”. Ele tinha que provar força para dobrar seu instrumento de guerra e autonomia, urgia  provar que era ele mesmo, que era autêntico, e não uma farsa, um engodo, para os outros e para si mesmo.
Em latim, força da alma se chama “vis”, de tal expressão nasceu “virtude”. “Vis” era o nome que se dava à força potencial que nascia da corda do arco quando tensionada, para assim lançar a flecha longe. 
A alma virtuosa é corda (in)tensa que lança longe as palavras e ações nascidas de sua autenticidade,  de tal modo que tais palavras e ações sobrevivem àquele que as fez e disse.
São as virtudes a força que reconduz a alma a si mesma. Virtude não é apenas palavra, é ação que dobra as impossibilidades pela força de querer mais do que o possível. É a ética, enquanto campo das virtudes, que faz a alma reentrar em sua pátria, para ali ser soberana.
Narciso achou-se em um lago; Ulisses buscou-se na travessia de um oceano. Narciso submergiu ao fundo , morrendo; Ulisses pôs-se ao horizonte, para viver.




escrever à mão e a lápis

Manoel de Barros só escrevia à mão sua poesia, e sempre a lápis. Nunca lapiseira de plástico,sempre  lápis de madeira. Curiosamente, “digitar” é um ato que faz parte da atividade de “bater”, “golpear”. Quem digita, bate com os dedos nas teclas. Escrever à mão expressa outro tipo de movimento: desenhar. Quem escreve agencia sua mão com o corpo do lápis, e  por intermédio deste é nosso corpo que também escreve, com seus nervos e fibras, incluindo as do coração.
Quem escreve à mão  desenha, parecendo às vezes que o lápis também dança na ponta de seu grafite, como a bailarina  equilibrada na ponta dos pés. Para tal arte de expressar-se escrevendo, mais adequado  é o lápis do que a caneta: a tinta que sai desta é coisa química, mas o grafite que o lápis liberta veio da imanência da terra, é vida. O cérebro não funciona da mesma maneira quando se digita e quando se escreve à mão, quando se bate e quando se desenha, quando se golpeia e quando se dança. Há certa violência em bater-digitar. Talvez essa seja uma das razões que explique porque  os fascistas gostem tanto de violentar também as teclas e, por intermédio destas, as ideias, encontrando no meio digital um ampliador de suas violências físicas e simbólicas.Nada contra o digitar, porém escrever à mão, a lápis, é ato mais afim ao poema que , como gente, também nasce: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”(Manoel de Barros).
                                                                                                                                                                        
( fonte da foto: blog “Os Fazedores”. A foto  é uma composição com um desenho feito pelo  próprio Manoel)

sábado, 3 de novembro de 2018

- espinosa e o direito de resistência

Espinosa evocava  um “direito de resistência”. O sentido original de “Resistir” é : “pôr-se novamente de pé”, após ter caído. “Pôr-se de pé” não apenas no sentido físico, também    simbolicamente, já que o “permanecer  de pé” é a ação que define o que é ser humano. Os vermes rastejam, os bovinos andam de quatro. Mas se   o homem  rastejar ou se conformar a ser quadrúpede, não é mais humano, torna-se outra coisa sem nome. Esse direito de resistência não é um direito  que dependa exclusivamente de juízes ou ministros do Supremo para ser evocado e defendido. Quem o pode evocar  e defender é quem se vê em perigo, sobretudo quando até  juízes se põem de quatro perante o poder do arbítrio. Esse direito de resistência é mais do que um direito: é um dever quando estamos sob a ameaça de um tirano. Para Espinosa , não se esquivar a esse dever é o que caracteriza o autêntico pensar em sua dimensão prática, ética, política. O contrário da resistência é a obediência: esta produz súditos-servis, aquela produz cidadãos. Existe a solidão individual, mas há também a solidão em grupo, mesmo que neste haja  muitos. A solidão individual é aquela de um indivíduo sem relações externas, já a solidão em grupo  é a de um rebanho sem relações outras que não seja a de obediência a um tirano. Essa solidão em grupo   tira a singularidade de cada um em nome de uma identidade  homogênea  reativa. Por isso,  tal identidade  não é um pensamento  comum nascido do agenciamento de pensares singulares, mas um modo de viver padronizado que não tolera alteridade.  Somente a multiplicidade se ligando a si mesma, reinventando-se povo, pode pôr-se de pé e resistir aos tiranos. O direito de resistência significa exatamente isto: o pôr-se de pé de um indivíduo na imanência de um pôr-se de pê coletivo que não se deixa derrubar  pelo arbítrio.