O tempo tudo tira,
e tudo dá.
Giordano Bruno
Segundo Plotino, a alma humana pode ser compreendida segundo dois mitos: o de Narciso e o de Ulisses.Tais mitos são símbolos da condição humana, independentemente da época histórica.
Narciso representa a alma que foge de si mesma e se apaixona pelas imagens corpóreas que lhe estão fora. Fisga-o a imagem-aparência dos outros corpos a agir sobre o seu. Narciso ama o que vê, e pensa que tudo o que existe é o que vê. Porém, ele vê somente uma volúvel existência carregada pela correnteza inconstante da superfície sem espessura de um lago turvo, que nada mais é do que a projeção de sua imaginação ensimesmada.
Narciso quer parar o imparável : apega-se ao que não pode ser pego, então sofre por amar um espectro. Na verdade ele desconhece que ama apenas uma projeção de si mesmo fora de si mesmo: ele procura no fora o dentro do qual se perdeu. Narciso é como o molde que molda a areia,mas que se aliena no que moldou, passando a sofrer com o vento a desfazer movediça certeza.
Narciso é o extremo oposto, o avesso , da divisa do Oráculo de Delfos: ele desconhece a si mesmo e , por isso, procura a si mesmo onde um si não pode haver. Narciso simboliza a saída da alma de si mesma e a sua perda fora de si mesma: seus olhos não são janelas que dão para dentro, são janelas através das quais a alma salta para fora e não mais retorna, como o suicida em seu desespero.
Ulisses, ao contrário, é o personagem do regresso, do retorno. Enquanto Narciso é perda na contemplação estéril, egoica, Ulisses é ação laboriosa e paciente para vencer os obstáculos e barreiras que se interpõem entre ele e sua casa, seu lar.
Ulisses quer retornar, porém perdera o mapa , seu navio queimou, os companheiros o abandonaram, enquanto nuvens sombrias cobrem as estrelas que poderiam orientá-lo. Faltam-lhe os meios para o retorno, porém não lhe faltam a memória e o desejo de ao início retornar.
Até à morte Ulisses foi, pois ele esteve no Hades, como Orfeu também esteve. Todavia, enquanto Orfeu foi ao Inferno buscar o amor que vivera , para assim fazê-lo viver novamente, Ulisses foi parar no "Mundo Subterrâneo" perdido por um amor infernal, que no Hades o fez refém como a um morto.
Porém , no Hades Ulisses encontrou o que não esperava: lá estava sua mãe, que morrera sem Ulisses o saber. Embora ela fosse sombra sem memória, do gerado a geradora não esqueceu. Assim, em meio à morte ele encontrou a sombra da vida. Embora sombra, tal encontro despertou em Ulisses a força para querer rever, e viver, a vida e sua luz, fora daquele mundo de coisas mortas.
Ulisses é o retorno ao caminho já feito que agora parece novo, pois o caminhante já não é o mesmo. Ulisses é a alma em busca de si mesma, do seu natal, e que sabe que o seu si mesma está onde se encontra sua origem: esta não é só o fim, ela é também invenção de meios.
O retorno da alma a si mesma não é como o cogito cartesiano, que se compraz apenas com pensamentos racionais interiores ao eu; o autêntico retorno é desejo de achar-se fora do eu, porém perto do pensamento que não é egoico. A origem não é uma ideia inata ao eu, ela é o natal que gerou o eu para ser mais do que eu. Chegando ao seu natal, o eu pode até mesmo libertar-se de si mesmo, e ser ninguém ou outro : "Perdoai, mas eu preciso ser Outros"(Manoel de Barros).
Ulisses retorna ao preço de provas éticas pelas quais é testado. Isso acontecia para o destino saber se era apenas em palavras que Ulisses retornava, ou se havia autenticidade em seu retorno, em ações também.
A última prova de Ulisses foi a “dobra do arco”. Ele tinha que provar força para dobrar seu instrumento de guerra e autonomia, urgia provar que era ele mesmo, que era autêntico, e não uma farsa, um engodo, para os outros e para si mesmo.
Em latim, força da alma se chama “vis”, de tal expressão nasceu “virtude”. “Vis” era o nome que se dava à força potencial que nascia da corda do arco quando tensionada, para assim lançar a flecha longe.
A alma virtuosa é corda (in)tensa que lança longe as palavras e ações nascidas de sua autenticidade, de tal modo que tais palavras e ações sobrevivem àquele que as fez e disse.
São as virtudes a força que reconduz a alma a si mesma. Virtude não é apenas palavra, é ação que dobra as impossibilidades pela força de querer mais do que o possível. É a ética, enquanto campo das virtudes, que faz a alma reentrar em sua pátria, para ali ser soberana.
Narciso achou-se em um lago; Ulisses buscou-se na travessia de um oceano. Narciso submergiu ao fundo , morrendo; Ulisses pôs-se ao horizonte, para viver.