terça-feira, 31 de agosto de 2021
domingo, 29 de agosto de 2021
potências clínicas
Inspirando-se nos filósofos Deleuze, Bergson e Espinosa, o
professor Cláudio Ulpiano nos
ensina que somos constituídos por uma
estrutura sensória-motora. A parte sensória compreende nossos órgãos da
sensibilidade que veem, ouvem, provam ,
tocam , enfim, sentem o mundo. Essa parte sensória são aberturas, como portas e janelas, para o mundo.
Da estrutura motora fazem parte nossas pernas,
braços e músculos: são os instrumentos com os quais agimos sobre o mundo. Já a parte sensória percebe o mundo sob a forma de
cor, som, texturas, sabores, e conecta esses elementos com nossa mente , para
assim formarmos ideias sobre o mundo.
Porém , vivemos numa realidade que, desde a infância, vai nos moldando por fora e por dentro padrões
de comportamentos utilitários , padrões que
passamos a reproduzir sem mesmo notá-los, de tal modo que os naturalizamos como “normalidade”.
Moldando-nos a um mundo onde tudo parece ter seu preço, o mundo capitalista-utilitarista-pragmático reduz
tudo à lógica do mercado, cujos valores a mídia comercial reproduz e propaga mediante
produtos culturais padronizados.
Essa “Matrix” ou “Caverna de Platão” mantêm nossa estrutura sensória no mais baixo grau de potência, para assim nos
adaptar ao roteiro de uma vida
controlada pelo relógio, pela agenda, por “bater metas”, enfim, por tudo aquilo que, cedo ou tarde, nos
adoece.
E o lugar onde esse adoecimento se anuncia é exatamente na sensibilidade, quando dela
nascem sentimentos que traduzem uma vida despotencializada. Geralmente, o
dinheiro que se ganha vivendo uma vida assim é gasto com consumos anestesiantes . Sem falar nas religiões que cultuam
esse adoecimento existencial para lucrar financeira e politicamente com ele.
O remédio mais potente para esse adoecimento de nós mesmos não vem da
indústria farmacológica e seu comércio; o remédio mais potente pode vir da arte e sua gratuidade.
A palavra “clínica” significa : “chegar perto, debruçando-se”. O mau médico olha
de longe seu paciente, fazendo deste um mero objeto . Mas o bom médico é sempre
um clínico: ele chega perto para ver, ouvir e tocar , agindo em favor da saúde
do corpo e da mente. O clínico se
debruça sobre uma vida para envolvê-la com cuidados que salvam.
Também a arte pode ser clínica na
medida em que ela nos auxilia a nos debruçarmos sobre nós mesmos, pessoal e
coletivamente, para assim pensarmos, com crítica , nossas relações com o mundo.
Pois a arte liberta nosso sensório do agir meramente reativo e
reprodutor de comportamentos clicherosos, despertando-nos olhos, ouvidos , gostos e tatos para apreendermos
realidades que a arte cria para nos
fazer pensar , sentindo.
A arte liberta e potencializa o
sensório, ao mesmo tempo que quebra e interrompe um agir-motor meramente mecânico e reprodutor
de modelos, tais como esses modelos de vida que a propaganda nos empurra junto
com a imagem de margarinas, carros e
contas de banco.
Quando o sensório é liberto do mero agir mecânico, nosso próprio corpo também se liberta de condicionamentos
reativos, tornando-se o instrumento ativo de um pensar crítico, clínico e criativo.
sábado, 28 de agosto de 2021
PARA O MEU TATATARAVÔ TUPINAMBÁ
Entre os tupinambás que aqui viviam ,
quando um guerreiro da comunidade morria era necessário um último ritual. Os
tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados. Eles só
consentiam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar do
poder e servir à comunidade.
Os tupinambás não faziam guerra para
ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade
em risco, pois não aceitavam viver sem honra. Para eles, a morte era a última
prova, prova do que foram em vida, especialmente para os chefes e guerreiros
tidos como corajosos, generosos, leais.
Então, quando um guerreiro morria,
pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo. Colocavam junto ao
corpo seu arco e flecha, bem como a flauta feita com o fêmur oco do colonizador. Pois os tupinambás
faziam flautas com o fêmur dos colonizadores que tentavam escravizá-los. Muitas
vezes, eles nem precisavam guerrear: quando os invasores se aproximavam da aldeia, bastava os
tupinambás começarem a tocar as flautas
para as pernas do homem colonizador,
pernas brancas igual a palMito, tremerem e saírem correndo com medo de
virarem flauta também ...
Ao fim da tarde , como parte dos
rituais fúnebres, punham o corpo do guerreiro numa canoa e a empurravam em
direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre mar e
céu. O azul comum de ambos confirmava suas crenças: o horizonte para eles era
apenas um limiar, uma passagem. Guardando essa passagem ficava o Grande
Ancestral.
Se o guerreiro na canoa fora um
dissimulado que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que
barraria o dissimulado na travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato
fora honrado , e não um farsante, o Guardião o deixava atravessar para no céu
ser eterna estrela.
Na manhã seguinte ao ritual, ao raiar
do dia, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela
do mar. Se achassem uma, choravam envergonhados diante dos Ancestrais. Mas se
não achassem tal estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa,
pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando como estrela viva a
protegê-los dos maus.
"Tenho em mim um sentimento de
aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.
Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre
chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de
ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer
melhor os indígenas.” (Manoel de Barros)
sexta-feira, 27 de agosto de 2021
a mariposa
Eu ainda não havia despertado totalmente,
mas já sentia no ar a presença de um
novo dia que nascia. De repente, ouvi um som agudo provocado por
um bater de asas agitado e aflito que
passou roçando meu rosto. Abri então os
olhos: era uma pequena mariposa que se
aprisionou em meu quarto ainda um pouco escuro.
Não sei se era
uma jovem mariposa aprendendo
seus primeiros voos, sem confiança
ainda; ou se era, ao contrário, uma
mariposa já muito vivida querendo fugir do mundo, desiludida. O que sei é que
ela rodopiava atônita e perdida, como se estivesse presa num labirinto cujo centro era um vazio .
Levantei
da cama rápido querendo arranjar um jeito de auxiliar a mariposa a se
libertar daquele rodamoinho angustiante
que ela mesma criou para se atar.
Fui
à janela e a abri toda para que entrasse
a luz. Foi então que vi o dia...Que dia! Após uma noite
de chuva e frio , o céu abria-se
todo azul , enquanto o sol aquecia de novo tudo o que é vivo.
Com cuidado, cheguei perto da
mariposa e apenas lhe disse ( com a franqueza dos amigos que desejam o
bem um do outro) : “Com um dia desse, com essa amplidão para explorar voando,
você vem se enclausurar em meu quarto com medo!?Quem me dera ter suas asas...”
Juro: a mariposa foi acalmando
seu rodopiar aflito , reorientou suas
asas para novo sentido , parou de antecipar na imaginação os perigos,
emendou-se. Tomou coragem e atravessou
a janela, foi pro mundo, aceitou da liberdade o risco.
(imagem: “A mariposa”/ Van Gogh)
quarta-feira, 25 de agosto de 2021
Sartre
Sartre foi um dos maiores
pensadores de todos os tempos. Porém, ao
invés de teorizar nas academias, ele preferia
escrever e filosofar nos cafés e ruas . Já perto do fim da vida, quando passava por dificuldades financeiras, Sartre ganhou o
Prêmio Nobel de Literatura, que pagava uma
fortuna. Mas Sartre recusou o prêmio, dizendo que jamais se deixaria
comprar pelo dinheiro burguês.
Sartre foi muito perseguido pelos intolerantes
religiosos da época. Gritavam para ele: “comunista, ateu!”, como se isso fosse
o pior dos xingamentos. Sartre respondia que , antes de tudo, ele era
um humanista.
Sua fé era na história e no ser
humano, embora dissesse que o ser humano ainda era apenas um projeto a ser criado,
cuja criação dependia que se transformasse a sociedade para libertá-la das garras dos homens que são lobos de outros seres humanos.
Sempre provocativo, Sartre dizia mais
ou menos o seguinte:
“Sou humanista, porém combato o poder
falocrático e predatório do homem. Pois se nós perguntássemos às florestas o que elas
acham desses homens que as derrubam por
ganância, e se pudessem falar, as árvores diriam: esses predadores não são
seres humanos, eles são demônios! Se indagássemos aos mares e rios o que eles acham que são os
homens que os poluem com lixo industrial , os mares e rios diriam: são demônios
esses poluidores! Se perguntássemos aos animais que são caçados e exterminados por
caçadores que arrancam suas peles , cortam suas asas e decepam suas cabeças por mera diversão doentia, se perguntássemos a eles o que é o homem, esses animais diriam: é uma besta, um demônio! Como um ser demoníaco assim pode se
proclamar à imagem e semelhança de um Deus que ele diz ser do Amor? De minha parte, busco construir um
humanismo em relação ao qual os bichos,
as árvores, os rios, enfim, a própria terra não veriam nesse humanismo um carrasco , mas um amigo e aliado . E mais importante:
no meu humanismo o amor e a fraternidade entre os seres humanos não dependeriam de um Deus que a isso obrigasse. Pois meu humanismo é liberdade.”
Quando Sartre faleceu, seu cortejo
fúnebre percorreu as ruas lotadas de Paris, milhares de pessoas foram se
despedir do filósofo. Nem todos os que ali estavam concordavam com ele, tampouco
compreendiam totalmente seus escritos.
Mas o afeto presente em cada uma
daquelas pessoas do povo era o testemunho da seguinte lembrança : quando Paris
foi ocupada pelos nazistas e seu terror, Sartre não se escondeu, ele resistiu e
lutou , sempre à frente e com coragem, mesmo quando a liberdade parecia apenas
um sonho, uma utopia. Ser livre, dizia Sartre, é se engajar na luta contra os
inimigos da liberdade.
“Vida sem utopia, não entendo que exista.”(Caetano)
"É sempre com a utopia que a
filosofia se torna política (..): ela [a utopia] designa etimologicamente a
desterritorialização absoluta (..). A palavra empregada pelo utopista Samuel
Butler, 'Erewhon', não remete somente a 'No-where', ou a parte Nenhuma, mas a 'Now-here', aqui-agora." (DELEUZE & GUATTARI)
sábado, 21 de agosto de 2021
procustos: ontem e hoje
Na mitologia, Procusto era um
personagem de índole perversa, ávido por poder, que oferecia uma “cama”
fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas por uma estrada.
Quando as pessoas se deitavam na tal
cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando a
pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava a cabeça
, deixando a pessoa acéfala ; ou então ele
cortava as pernas da pessoa , impedindo que ela ficasse de pé. Quando a pessoa
era menor do que a cama , Procusto amarrava as pernas e os braços dela com
correntes , esticando brutalmente até desmembrá-los...
Ninguém sobrevivia àquela cama
transformada em túmulo: querendo que cada um se amoldasse à força, Procusto
acabava violentando todo mundo.
Quando as pessoas protestavam,
Procusto pegava uma régua e media com rigidez militar a cama, e dizia autoritariamente
: “A cama é perfeita, normal, exata: cada lado é idêntico ao outro . A régua
não mente! O defeito está em vocês : diferentes e heterogêneos. Amoldem-se ,
mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade!”
A cama de Procusto pode receber
vários outros nomes: “Minha Opinião”, “Meu Dogma”, “Meu Credo”... O que não
couber em tais “fôrmas”, Procusto vingativamente corta, nega, mata – física ou
simbolicamente . Procusto odeia tudo que “não se pode passar régua”, diria o
poeta Manoel de Barros.
O mais triste nestes nossos dias é
que alguns, como obediente rebanho indo
para o matadouro , voluntariamente se deitam nessa cama negacionista . E assim perdem a cabeça : nada mais veem ou
pensam; ou então perdem as pernas , já não podendo ficar de pé, apenas de joelhos, como naquela cama-cercadinho em
Brasília na qual o Procusto-fascista se exibe para seus prostrados-acéfalos.
Mas qual o tamanho exato da cama de
Procusto? Qual a condição para se caber passivamente nela ? Somente cabem nela aqueles que aceitam
se reduzir à pequeneza.
(“Procusto” significa: “aquele que corta”. Em algumas versões, “Procusto” seria o apelido de um bandido sanguinário e covarde daquela época. Há outras versões nas quais Procusto constrói duas camas: uma maior do que todo mundo e outra menor que todos. Essas variações são comuns nos mitos, é por isso que eles existem para serem interpretados. Mas o trabalho de interpretação requer a atividade prévia de pesquisa do mito e suas variantes. Na interpretação que fiz, procurei contextualizar o mito em razão dos “Procustos” de hoje que nos ameaçam)
- Este mito de Procusto também pode
ilustrar o que é fascismo. Pois a palavra “fascismo” vem de um termo italiano
que significa “feixe”, um feixe composto por hastes
de madeira rigidamente amarradas até formarem um todo homogêneo, com cada haste perdendo sua singularidade, diferença e
iniciativa. Junto ao feixe está um machado, o machado que cortou as hastes. A
corda que amarra rigidamente as hastes representa a Ordem fascista ( Ordem não
muito diferente desta Ordem que está na bandeira brasileira sempre empunhada
pelos fascistas pseudopatriotas daqui...). O machado é o instrumento simbolizando o poder fascista,
um poder de destruir.
quarta-feira, 18 de agosto de 2021
a caverna...
Em sua famosa alegoria, Platão
compara a uma “caverna” o mundo no qual
vivem os homens alienados. Esses homens não entraram na caverna para explorá-la. Ao contrário, eles são explorados
dentro dela : nela vivem como
prisioneiros acorrentados.
Eles estão acorrentados de costas
para a saída da caverna e de frente para o fundo dela. Como esses homens
naturalizaram essa condição, ignoram que
são prisioneiros, não se dando conta que estão acorrentados.
As correntes não são de ferro ou aço,
elas são feitas de um material que vem dos próprios homens aprisionados: elas
são feitas com suas paixões e opiniões
. Ódio, ressentimento, preconceito, medo...são exemplos de paixões
que tornam os homens prisioneiros deles mesmos. A opinião é a palavra reativa e
negacionista destilada das paixões , tornando-se a voz da ignorância.
O mundo da caverna não é totalmente
escuro, pois entra nele um pouco da luz que vem de fora. Por isso, no fundo da caverna se reflete o
reflexo, apenas o pálido reflexo, das coisas reais que existem fora da caverna.
Mas como os acorrentados não sabem
que existe um mundo fora da caverna,
aprisionados que estão pelas paixões e opiniões, eles imaginam que o reflexo distorcido do mundo é o próprio mundo, e assim tomam por
real apenas sombras, “fake news”.
Os prisioneiros carregam a caverna não importa
onde estejam: ela é o mundo estreito dos
que estão acorrentados a si mesmos e
submetidos aos que os mantêm nessa condição de servos voluntários.
Aprisionados a si mesmos, eles não estão porém
privados de movimentos, desde que seus comportamentos não subvertam a ordem estabelecida pelos
“donos da caverna”.
Autointitulando-se “homens de bem”,
esses prisioneiros estão sempre falando
em pátria e Deus; mas a pátria e Deus deles são apenas sombras no fundo de uma obscura caverna
teológico-política.
Somente o pensar libertário é capaz
de quebrar as correntes , atraído
pela luz que vem de fora. E de fora
também vem o ar que não deixa que a gente sufoque. Primeiro, nossos olhos e
pulmões devem achar a saída, para que
depois nossas pernas encontrem
a direção e forças para nos levar
até lá .
terça-feira, 17 de agosto de 2021
segunda-feira, 16 de agosto de 2021
o sofisma político
A mídia comercial costuma dizer que
vivemos um período político “polarizado”. Porém, esse tipo de “informação”
dissimula uma intenção ambígua, para dizer o menos. Pois só podem polarizar
realidades que pertencem a um mesmo conjunto ou gênero de coisas.
Por exemplo, o alto e o baixo
polarizam no conjunto de coisas que têm dimensão física; o doce e o salgado
polarizam no âmbito das coisas que têm
sabor; direita e esquerda, conservadores e progressistas, polarizam dentro do
conjunto das perspectivas políticas.
Mas o fascismo não é um dos polos
dentro daquilo que compreendemos ser a democracia. Ao contrário, o fascismo é o
que quer destruir a democracia e sua possibilidade de perspectivas
diferentes buscando o governo do Estado . Democracia é divergência de perspectivas, porém sem rasgar as regras ou ameaçar com tanques quem pensa diferente.
Quando a mídia comercial coloca o fascismo e a esquerda como “polarizando”,
além de isso ser um erro de raciocínio (
um “sofisma”), na verdade ela está tomando partido, de forma dissimulada, pelo
fascismo, sobretudo quando esse promete uma pauta de venda do patrimônio
público, pauta que é a mesma da mídia comercial e do capitalismo predatório.
domingo, 15 de agosto de 2021
a filosofia e suas potências
A filosofia não é apenas livro, pois
ela envolve algumas atividades que não são do homem apenas, mas da própria vida. Essas
atividades são o conhecer ( base da Teoria do Conhecimento ou Epistemologia), o
agir ( núcleo da Ética e da Moral) ,o sentir ( do qual nasce a Estética ) e o
mais rico dos atos: o pensar. O pensar enseja uma disciplina da filosofia
chamada Metafísica. Pensar, conhecer, agir e sentir: são esses os atos que
fazem com que a filosofia não seja apenas teoria.
A filosofia existe por causa desses atos, atos
esses implicados com a própria vida .De todos esses atos, o mais identificado à
filosofia é o pensar. O pensar não é um ato isolado, pois deve participar de
todos os outros, como se fosse o coração de cada um deles.
Por exemplo, muitos agem sem pensar,
apenas obedecendo , imitando; mas somente é libertário , ou criativo, o agir
que nasce do pensar. Sentir é algo de que todos são capazes quando vivem os
sentimentos, muitas vezes de forma irrefletida. Porém o artista lapida o
sentimento até dele extrair o Afeto, fazendo do Afeto a matéria para um pensar
que também se sente: o artista pensa com o som ( música) , com as cores (
pintura) ou com o próprio corpo ( teatro e dança).Conhecer é prática que caracteriza
a ciência. Porém a ciência se torna mero instrumento do poder ou do mercado
quando se afasta do pensar. A ciência que também pensa se torna cons-ciência ,
isto é, consciência humanista e planetária, no sentido de Bergson e Sartre.
Se alguém diz: “Sou pragmático, odeio
filosofias”, também não escapa da filosofia, pois “Pragmatismo” e
“Utilitarismo” são correntes da filosofia. E mesmo quando alguém questiona :
“para que estudar filosofia?”, involuntariamente já responde a pergunta, pois
indaga sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da
filosofia.
Enfim, é impossível alguém estar vivo
e não se colocar questões como: “O que é a vida ? O que é a liberdade? Quem eu sou?...” Quem formula tais perguntas,
vislumbrando sentidos para elas, levanta temas da Metafísica, mesmo que nunca
tenha lido livros de filosofia. Há ainda as crianças , que são filósofas
/questionadoras por natureza, porém um sistema adestrador lhes corta as asas.
Em vez da palavra “ato”, Espinosa
prefere “potência”. Pois a alma é uma só e deve estar inteira , unida ao corpo, quando pensa, conhece, sente e
age. Quando o agir é de fato potente, ele nasce do pensar, intensifica o sentir e amplia o conhecer, do mundo e de nós mesmos. Um pensar
potente enseja um agir libertário, um conhecer emancipatório e afetos revolucionários para partilharmos.
Os tiranos sempre temem o pensar, e
fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens,
façam essa descoberta do pensar , ou se já o descobriram, não o exerçam ( não
importando a faculdade que tenham escolhido cursar). Descobrir o pensar é
governar a si mesmo.
sexta-feira, 13 de agosto de 2021
o pescador
Quando eu era ainda estudante,
fui acampar numa ilha. Certa noite , já
bem tarde, decidi dar uma volta pela praia. Vi então a seguinte cena: um pescador bem idoso,
porém firme, empurrava
sua canoa em direção ao mar. Corri para ajudá-lo. Com a canoa
ainda na areia, perguntei ao velho pescador aonde ele estava indo tão tarde.
Ele respondeu me pedindo para olhar para o céu e descrever o que eu via. “Vejo
muitas estrelas , a noite está linda...”, falei ao pescador. “Não sente a falta de nada?”, indagou. “É mesmo,
não vejo a lua...”, respondi. O velho
pescador então narrou mais ou menos a seguinte história:
“Quando a noite está assim , sem a
luz da lua, as estrelas parecem que ficam bem perto, e isso ajuda na pescaria.
Explico como acontece: como fazem todas as noites , os peixes sobem até próximo
à superfície e ficam à espreita de insetos que pousem na água. Mas em noites assim acontece algo diferente.
Peixe não sabe o que são as estrelas... Então, quando os reflexos das estrelas
vêm tremeluzir na superfície da
água , parecendo que pousam nela, os
peixes olham para cima e imaginam que
tais reflexos são o piscar de vaga-lumes. Tais
vaga-lumes só existem nos olhos deles, porém eles ignoram essa ignorância que os limita à
crença estreita. E essa forma rasteira
de ver , sem poesia e profundidade, é a pior das cegueiras que aos olhos pode acontecer. Ingenuamente crédulos, os peixes sobem para abocanhar a ilusão criada pela própria mente deles.
Se esses peixes fossem homens, essa cegueira da auto-ilusão teria o seguinte nome: opinião. ”
(Na filosofia , “opinião” não é a mesma coisa que ter uma perspectiva
sobre um assunto. Enquanto a perspectiva
faz parte da construção de um conhecimento, inclusive do
autoconhecimento , a opinião é uma forma
reativa de negar o conhecimento ,enraizada no desconhecimento da própria
ignorância )
(Imagem: “Noite estrelada sobre o
Ródano”, de Van Gogh. Sempre que revejo este quadro, e o revi ontem, lembro do
velho pescador...Se olharmos bem, veremos que
Van Gogh não pinta exatamente estrelas, ele pinta sóis que irradiam dias.
Pois é isto que cada estrela é de verdade: um sol . Em Van Gogh, o “Carpe Diem”,
o “aproveite o dia”, é multiplicado por mil. A noite que Van Gogh pinta é feita
de infinitos dias a brilhar , dias que nunca
morrem : dias que nos auxiliam a levantar a cabeça e os olhos no meio da noite)
terça-feira, 10 de agosto de 2021
o ovo da serpente
O filme “O ovo da serpente”, de
Bergman, mostra a ascensão do nazismo na sociedade alemã. O nome do filme
compara o surgimento do nazifascismo com o que fazem certas serpentes
traiçoeiras e venenosas : a serpente escolhe um momento de distração da ave dona
do ninho e coloca seu ovo entre os ovos já postos pela ave.
Metaforicamente, não é qualquer ninho
que tem a possibilidade de chocar o ovo da barbárie. A serpente autoritária
escolhe pôr seu “ovo” em ninhos onde já são chocados o “ovo da intolerância”, o
“ovo de uma crise econômica”, o “ovo do preconceito contra minorias”, o “ovo da
busca por um ‘Messias-Mito’ que, em nome dos ‘homens de bem’, persiga e
demonize os ‘Diferentes’".
É em ninhos onde já existem tais ovos
que a serpente nazifascista aproveita para pôr dissimuladamente o seu ovo, que
é então chocado por parte da sociedade incauta, ingenuamente crédula. Quando a
serpente nasce, a primeira coisa que faz é começar a devorar quem a fez surgir
, inoculando seu veneno na sociedade onde encontrou condições para ser chocada.
Depois, ela devora os outros ovos que foram gestados junto dela, pois tudo o
que nos enfraquece a faz crescer.
A serpente protofascista que saiu do ovo em
2018 nos ameaça não só com seu veneno, ela também age usando constrição para
nos provocar sufocamento . A ignorância, a idiotia , o preconceito...são alguns
de seus venenos ( além do agrotóxico que envenena literalmente nosso alimento,
enriquecendo ruralistas e bancos com suas “commodities”).
A serpente ainda tenta nos sufocar infiltrando
milicos no Estado, aparelhando o Ministério Público e o Judiciário, cooptando a
polícia e a PM, fortalecendo o poder das milícias, militarizando as escolas,
acumpliciando teológico-politicamente a Bíblia ao revólver (como os pastores
bolsonaristas mancomunados com traficantes para reprimirem as religiosidades
afro-brasileiras nas favelas);a serpente também nos sufoca cultuando o
obscurantismo negador da ciência, reduzindo o valor da vida a nada, para fazer
da destruição e da morte a sua política de governo.
A serpente-fascista assim procede
para nos roubar o ar aos poucos, querendo paralisar em nós a capacidade de
ação.
E assim se chegou a este quadro: de
um lado, os ignorantes envenenados e os cúmplices bem pagos desse
envenenamento; e do outro lado estamos nós, que somos vários, porém ainda
dispersos.
Precisamos encontrar um antídoto que
nos proteja a tempo. Para o vírus, a vacina
já está nos protegendo , porém contra a serpente-verme só mesmo nos
unindo para sermos maiores do que a
goela covarde dessa serpente oca.
(Amigas e amigos, fiz esta postagem em
2018, logo após a vitória da serpente-fascista. O texto de agora possui alguns
acréscimos. Mais recentemente, alguns artigos e livros também foram escritos
comparando o que vivemos hoje com este filme perigosamente atual)
domingo, 8 de agosto de 2021
o maraca
Sou o mais velho de cinco irmãos.
Filho mais velho, dizem, precisa dar o
exemplo. Porém, quando criança eu era
vizinho de um garoto chamado Edinho. Ele era quatro anos mais velho que eu,
diferença que contava bastante.
Edinho foi não só meu primeiro amigo,
ele também era o irmão mais velho que eu não tinha: com ele eu podia ser um irmão
caçula ( não em sangue, mas em afeto).
Foi Edinho que me despertou a vontade
de querer aprender a ler, pois quando eu tinha 5 anos via Edinho sempre
com gibi na mão, lendo. Como eu o
imitava em tudo, também queria aprender a ler para fazer amizade com os gibis,
que tanto roubavam a companhia do meu amigo de mim.
Aos olhos do meu pai, Edinho tinha
apenas um defeito : ele era “botafoguense” ( meu pai era flamenguista de
“carteirinha”).
Sabendo de sua influência sobre mim,
quando fiz 6 anos Edinho juntou dinheiro e me deu, como presente de
aniversário, uma camisa do botafogo novinha. Não pensei duas vezes: coloquei a
camisa, virei botafogo. Quando meu pai me viu com a camisa, a expressão de
decepção no rosto dele era indescritível, mas ele não falou nada.
Pouco tempo depois , ele me disse:
“filho, vamos ao maracanã?” Era a primeira vez que eu iria ao maraca! Era um
flamengo X bonsucesso, numa quarta à noite, mais de 40 mil presentes. O jogo
estava difícil, o bonsucesso tinha um bom time.
Mas eu não estava nem aí para o jogo, eu era
botafogo! E meu pai, querendo me agradar, pagava tudo o que eu pedia para
comprar dos ambulantes: sorvete,biscoito, doce...
Começou o 2º tempo, ainda zero a
zero. Até que, à beira do campo, começou
a aquecer um garoto para entrar no
flamengo. Meu pai me segurou no braço e disse, cheio de esperanças: “filho, não
tire os olhos desse garoto que vai entrar!”
Olhei para o garoto sem entender as
palavras esperançosas de meu pai: o garoto era magrinho, o uniforme o
engolia... Pensei comigo, enquanto saboreava um sorvete: “Meu pai não sabe
nada...”
Até que o garoto entrou...A primeira
vez que ele tocou na bola, esqueci o sorvete, pois ele fez um lançamento
maravilhoso que gerou o primeiro gol do flamengo. O garoto parecia um artista,
um pensador da bola. Enfim, ele acabou com o jogo. Aquele foi um dos primeiros
jogos do Zico.
Quando saí do maraca, esqueci o
botafogo e, pela primeira vez, divergia
do meu querido amigo Edinho. De mãos dadas com meu pai , olhei para ele
com meus olhos de menino e disse comigo: “Meu pai sabe tudo.”
( este texto é uma pequena homenagem
aos pais. Muito triste ver o flamengo hoje apoiar o fascista, embora exista a
torcida antifa do fla. Zico foi craque
com a bola. Infelizmente, em suas escolhas políticas , ao menos até hoje, foi um “perna-de-pau”. Quem sabe um dia ele
mude...)
sábado, 7 de agosto de 2021
destino e linhas de fuga
Os filósofos e poetas gregos falavam
do “Destino”. Na mitologia , o Destino
era representado por três sinistras irmãs : as Moiras. Elas eram cegas,
porém tinham à mão um estranho olho de
vidro com dom de ver passado, presente e
futuro. Esse olho é o tataravô das “bolas de cristal” , nas quais se crê antever o que os nossos dois olhos
não veem.
Uma das Moiras puxava o fio da vida,
outra o esticava, enquanto a terceira o cortava rindo e zombando , como se
cortar o fio da vida fosse uma diversão
macabra. Com o fio, as Moiras fabricavam uma “ordo”, uma “urdidura” , isto é, uma “Ordem” da qual ninguém conseguia
escapar. A “ordo/urdidura” era feita com
linhas retas na horizontal e na vertical, como as grades de uma prisão.
Muito diferente era o fio de Ariadne:
fio do Afeto, fio da Arte. Enquanto o fio das Moiras estava preso a uma roda (
a “Roda da Fortuna”), o fio de Ariadne era puxado de um novelo, e assim libertado . Quanto mais se confia nesse fio, menos as
Moiras conseguem cortá-lo.
“Con-fiar”: “fiar junto”, pois fia junto quem
tece novos elos (“novelo”: “novo elo”). O fio de Ariadne é puxado de uma
potencialidade que se desdobra em novos elos a serem tecidos e ousados.
Enquanto o fio do Destino é “ordo”,
“Ordem”, o fio de Ariadne serve para tecer tramas. A trama é feita de linhas
transversais formando curvas , desvios, “clinâmens”, espirais...Toda trama
borda uma linha de fuga que afirma a
liberdade a despeito da malha férrea das Ordens Sinistras.
As Moiras puxavam o fio da roda, o esticavam , para
enfim cortá-lo. Elas eram incapazes de bordar, pois bordar é tecitura da arte
enquanto força que estende ao máximo o fio da vida, vencendo aqueles que o querem cortar.
Toda bordadura parte de uma
Ordo/Ordem, porém lhe acrescenta tramas criadoras de caminhos que nos fazem
transpassar as grades ( físicas ou simbólicas).
A gramática é urdidura , mas trama é
a poesia; urdidura é a família, porém
trama é o amor; cartilhas são urdiduras, já pensar é trama que confia em sua
força libertária.
As Moiras cobriram Bispo do Rosário com lençóis que mais pareciam mortalhas , porém
Bispo do Rosário desfez o fio dessas grades
e com ele bordou sua linha de
fuga sob a forma de manto e asas. Apesar da
“Moira Social” que o urdiu louco,
Bispo do Rosário teceu sua
transversal, e assim tramou sua criativa
lucidez como fuga da
normalidade reta dos que pensam
igual.
Embora toda trama parta de uma
urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir
dela.
“A reta é uma curva que não sonha.”
(Manoel de Barros)
“Não há linha reta, nem nas coisas e
nem na linguagem.” (Deleuze)
“Quero
descrever o voo de um pássaro
escrevendo
com a pena de uma asa.” (Guimarães Rosa)
quarta-feira, 4 de agosto de 2021
Espinosa e o poder teológico-político
Espinosa dizia que há uma espécie de
“trindade obscurantista” que reduz os homens e as sociedades ao pior deles
mesmos, pondo em risco a pluralidade social , a educação e a democracia. Essa
trindade é composta pelos seguintes personagens ou tipos: o escravo, o tirano e
o sacerdote.
O escravo é aquele que se deixa
dominar pelas “paixões tristes”. O escravo não apenas as sofre, o que é natural
de acontecer tendo em vista a condição humana, porém ele se alimenta delas,
como se isso preenchesse algum buraco em sua vida. O ódio, a ignorância, o
medo, etc., são exemplos de paixões tristes. Se uma serpente nos morde, é
inevitável que em nós entre o veneno, cabendo-nos imediatamente buscar o
antídoto. Mas a paixão triste pode fazer do homem um dependente do veneno que o
enfraquece , ao mesmo tempo maldizendo quem traz antídotos.
O tirano é quem se vale das paixões
tristes para dominar os ressentidos e ignorantes. O tirano canaliza as paixões
tristes e as emprega a seu favor, inclusive politicamente. O tirano chega ao
poder não por amor à coisa pública, mas tirando proveito das paixões tristes e
as fazendo de arma contra os que ele estigmatiza como inimigos.
O sacerdote é aquele que passa a mão sobre a
cabeça do escravo, bendizendo a ignorância . Em geral, os sacerdotes são
pequenos, e só ficam maiores do que os escravos os mantendo ajoelhados. O
sacerdote prega que a tristeza é melhor do que a alegria, que o obedecer é
melhor do que o rebelar-se, que filosofia, ciência e arte são perigosas. O
tirano escraviza o corpo do escravo, o sacerdote escraviza a alma. “Sacerdote”,
aqui, não é exatamente uma autoridade religiosa literal, mas um tipo que se
aplica a várias espécies de homens que extraem sua força cultivando a fraqueza
nos outros.
Espinosa chama de poder teológico-político
a essa aliança abominável entre tiranos e sacerdotes, cuja força cresce quanto
mais o escravo ignora sua escravidão e é dominado.
Como um médico, Espinosa não aponta apenas para a doença, ele também
oferece o remédio - remédio que, em primeiro lugar , ele aplicou em si mesmo , para
que em suas palavras possamos achar um antídoto
que nos dê força para pensar e agir ante
a barbárie.
Esse antídoto aumenta sua força
quanto mais é partilhado , não sem perseverança, alegria e amor libertário. Esse antídoto tem um nome: filosofia prática.