domingo, 29 de janeiro de 2023

as "insignificâncias" do poeta

 

A nave Voyager , enviada ao espaço há mais de 30 anos, ultrapassou as fronteiras  do sistema solar:  ela agora navega  no oceano desconhecido do cosmos. As últimas coisas que a nave  viu foram os berçários cósmicos  com  sóis e estrelas recém-nascidos, como crianças .

A nave é feito uma carta que  tem apenas o endereço do remetente :  o planeta terra. E seu destino lembra   o  daquelas mensagens  lançadas ao mar no interior de uma garrafa.

A Nasa colocou um  cd feito de ouro nessa nave. Há sons gravados no cd :  são mensagens com as quais desejamos expressar quem somos  ao cosmos. O ouro foi escolhido pela sua durabilidade,  não pelo seu valor monetário.

Esse disco-cd pode durar até um milhão de anos, tempo superior ao que os cientistas supõem que a humanidade ainda durará.

Daqui a um milhão de anos  talvez sejamos apenas o relato de certo ser estranho já extinto , um mistério a decifrar gravado num disco de ouro.

Estão gravados  no disco , como poéticos testemunhos do que somos e sentimos: sons   de grilo e sapo; uma baleia cantando; as batidas do coração de um recém-nascido, e as primeiras palavras de sua mãe quando ele abre os olhos; o som das ondas cerebrais de uma jovem que acabou de se apaixonar; um cão  latindo feliz com o retorno à casa de seu amigo-dono; o estalar  de um beijo; sons de chuva e vento; o ribombar de um trovão ; o estrondo de um vulcão que acaba de acordar; risos de crianças brincando; o som suave de uma página de livro sendo folheada; e um “bom dia” dito em  diferentes línguas e dialetos, feito uma  multitudo sonora.

Daqui a um milhão de anos   talvez já  tenha virado pó tudo o que o dinheiro hoje compra; e apenas pó também sejam  o Paraiso e o Inferno  que os fanáticos teológico-políticos vociferam e em nome dos quais nos ameaçam com  suas fogueiras ( literais e simbólicas).  Mas  para que  durem ainda muito nossas vidas, que não tarde o dia em que  virarão  pó o obscurantismo e a necropolítica.

O poeta Manoel de Barros dizia :“ poderoso não é quem descobre ouro, poderoso  é quem descobre as insignificâncias”. As “insignificâncias” são pequenos acontecimentos vitais cuja grandeza é ignorada pelos homens e suas “importâncias”. Naquele disco da nave estão gravadas “insignificâncias”  endereçadas a  olhos e ouvidos cósmicos .

Talvez sejam esses mesmos olhos e ouvidos que, no aqui e agora, abrem-se no  poeta :  alguém que vê essas “insignificâncias” e as  eterniza como palavra poética que faz pensar, sentir e educa. São essas insignificâncias sentidas , vividas  e partilhadas a verdadeira riqueza daquele disco de ouro que enviamos à eternidade.

 

(imagem : a primeira foto do universo enviada pelo telescópio James Webb junto a uma   pintura expressionista de Pollock, ambas parecendo expressar o mesmo estilo e arte. Nome da obra de Pollock : “Reflexões sobre a estrela Ursa Maior”, de 1947)






"Insignificâncias manoelinas" = "as coisas favoritas" que Coltrane musicou:






quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

devir-indígena

 

Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um indígena e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca  como se fosse um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros.

Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura branca autointitulada “civilizada”. O antropólogo nada perguntou ao indígena, e retornou   a Londres para tentar entender aquele ato que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto.

 O antropólogo   consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que explicasse   o gesto do indígena.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como objeto artístico...Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o indígena fez com a máquina de escrever...

Graças ao ato artístico-subversivo do indígena, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos. 

O indígena era o “outro” do branco, mas o branco também era o “outro” do indígena. Nem todos são brancos, nem todos são indígenas, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal.

É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele sempre quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( como diz Manoel de Barros).

O indígena da narrativa  nos ensina que talvez a arte e a educação comecem no olhar, um olhar que interroga e recria, também criticamente, o sentido de nós mesmos e do mundo .

 Um olhar assim é sempre pensante, questionante, insubmisso , estrangeiro. Ele é estrangeiro não no sentido literal , e sim porque ele suspende nossas habituais certezas e nossos roteiros prévios acerca de como viver e agir. Ele não é um olhar de fora, mas sim um olhar ainda não colonizado por aquilo que está estabelecido e etiquetado pelos poderes dominantes.

Nesse sentido, pensar é sempre produzir em nós um devir-indígena no seio mesmo de nossa sociedade que se intitula “branco-civilizada”. É preciso construirmos um devir-indígena nos parlamentos, nas sociabilidades e também nos espaços acadêmicos onde são produzidos nossos conhecimentos.

Pensar essa Diferença que o indígena exerceu é  fazer dela um “devir-outro” de nós mesmos . Precisa haver   um  devir-indígena  em toda educação-libertária  cujas lições sejam  arcos e flechas em ação de resistência e defesa da comunidade, e não  meros enfeites teóricos.

Para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a barbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  o olhar ancestral que também é subversivo, crítico e  criativo : nada mais contrário ao olhar vestido com uniformes militares do fascista-genocida e seus garimpeiros do que o olhar nu e livre do indígena.

 

 

“Nós, os bruxos.” (Deleuze & Guattari)

 

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os indígenas ”. (Manoel de Barros)




 



domingo, 22 de janeiro de 2023

semente, fonte e criança

 

“Ancestral” não significa aquilo que está no passado e passou. Ancestral significa: “o que já estava aqui”, e que deve dar sentido ao nosso aqui e agora construtor do amanhã.

O ancestral já estava aqui e continua existindo  naquilo que nasceu dele: a semente é a ancestral da árvore, a fonte é a ancestral do rio, a criança  é a ancestral do adulto. Não existiriam árvore, rio e adulto se não existissem semente , fonte e criança.

 A ancestralidade da semente se renova no fruto que a árvore gera, a ancestralidade da fonte revive na sede que a água do rio mata, a ancestralidade da criança renasce em cada criança nova que vem ao mundo ( seja a criança literal , seja o devir-criança que o poeta reinventa em seus versos).

Os povos da Europa não são  nossos ancestrais,  nossos ancestrais são os povos originários que já estavam aqui e que aqui continuam : no nosso corpo, na nossa cultura , na nossa linguagem .

Na raiz  da palavra “genocídio” está a palavra “gens”. Dessa palavra também vêm “gente” e “gênese”. O genocídio é um crime contra gentes . No caso do Brasil atual , o genocídio contra os indígenas é um crime contra nossa ancestralidade, contra nossa gênese.

Nesse momento, só na Amazônia há mais de 100 grupos teológicos-políticos cúmplices do miliciano tentando “evangelizar” à força os povos da floresta. “Genocídio” é quando um povo extermina  com violência física ( incluindo a violência da  fome e das doenças)  a existência de outro povo. Mas quando exploradores teomilicianos  tentam roubar  a alma do outro povo  para engordar rebanhos e explorar dízimos,  essa violência na alma se chama “etnocídio”.

O miliciano e seus cúmplices  pregam :"Os indígenas querem viver como nós". E a voz  ancestral que vive em nós se indigna e pergunta: “ 'Nós' quem, cara-pálida?"

Muitos brasileiros têm antepassados na Europa, e assim buscam a dupla nacionalidade. Mas o Brasil enquanto Mátria tem nos povos originários a sua ancestralidade. Nenhum povo tem dupla ancestralidade, pois a ancestralidade é sempre única e primeira: a ancestralidade tem primazia sobre a ideia de pátria e nacionalidade.

O miliciano costumava dizer que “as minorias devem se submeter à maioria”. Para justificar seus impulsos genocidas, ele colocava os povos originários como minoria. Mas nossos  povos originários  não são minoria, eles estão na nossa gênese e no nosso valor enquanto gente.

Por isso, o genocídio não é só contra os povos originários, ele também é contra a gente enquanto parte da  humanidade em contraposição à barbárie .  É  como  um criminoso  contra a humanidade que o genocida deve ser denunciado. 

( parte do escrevi se inspira neste  novo e necessário  livro de Krenak)





sábado, 21 de janeiro de 2023

o poeta e os fluxos...

 

Certa vez, uma turma muito simpática me perguntou de qual poema de Manoel de Barros eu mais gosto. A resposta  era muito difícil, são tantos poemas dele que amo...rs... Mas para não deixar a turma sem resposta, citei este: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

Interpreto esse “trilho” do qual fala o poeta como uma espécie de “amarra prévia” que impede criações, invenções, ousadias, subversões , enfim, descobertas. Pois todas as descobertas , inclusive as  autodescobertas, acontecem em desvios ou caminhos  trilhados   por um  andar livre.

Como todo libertário, o poeta não aprecia trilhos já demarcados, ele prefere trilhas que se traçam em chão ainda não pisado: “O andarilho abastece de pernas as distâncias”, ensina o poeta.

Os machistas gostam  de dizer: “Mulher correta anda nos trilhos”. Para os machistas, “trilho” é o poder falocrático  que sujeita a mulher ao caminho pré-determinado sob domínio   do homem.

A água de que fala o poeta é fluxo perseverante que vence as pedras, tanto as pedras físicas quanto as simbólicas. Fluxo é movimento que avança.

Há uma diferença fundamental entre a água compreendida como fluxo libertário ( ou “linha de fuga”)  e a água que, passiva e acomodada, amolda-se à forma do recipiente na qual ela é contida e aprisionada.

O hoje muito citado sociólogo polonês Zygmunt Bauman criou a ideia de “realidade líquida” para descrever a volubilidade e falta de consistência das realidades políticas, afetivas e até cognitivas que hoje vivemos. O modelo de tais realidades líquidas é a liquidez volátil do Capital que a todos assujeita à sua lógica desumana.

Segundo Bauman,  o Capital modela as realidades sociais e psíquicas  e as torna líquidas para conformá-las em  seus moldes efêmeros, descartáveis,  rasos: após serem hoje novidade e assim  “consumidas”, em pouco tempo tais realidades   já serão  sucata e irão  para o lixo...

Porém , muito diferente de tal “realidade líquida” descrita por Bauman são os fluxos incontíveis  enquanto potência poética-existencial  ensinada por Manoel.

 Os fluxos não cabem em moldes,  fôrmas, trilhos...Todo fluxo nasce de uma fonte, e por isso todo fluxo sempre fontaneja:  produzindo  fontes em nossos olhos, mente e sensibilidade, para que deles fontanejem ideias e ações que  não se deixam barrar  por pedras, por mais duras e intransponíveis  que elas aparentem ser.

Como também ensina o poeta W. Blake: “A cisterna contém, a fonte transborda”.

 

(Imagem: Manoel lendo  o poeta-filósofo Heráclito, o primeiro a pensar os fluxos...)







sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

trevo, girassol, rosa e agenciamento

 

Algumas pessoas me perguntam no facebook por qual motivo  coloco sempre a folhinha verde🍀 , o girassol 🌻, as mãos enlaçadas ( esse recurso não existe no blog)  e uma rosa vermelha 🌹  em minhas respostas às amigas e amigos quando, gentilmente, comentam em minhas postagens .

A folhinha verde simboliza, para mim, a “arruda”: para pedir proteção e sorte aos que não se resignam e agem . Poesia e filosofia também podem ser   arruda para a  proteção e clínica  da nossa  mente.

O girassol ,por sua vez,  simboliza Van Gogh  e o poeta Manoel de Barros : “Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh” , diz um verso do poeta. O girassol como  fé inabalável na criação e na arte , apesar de tudo que nos ameaça: mesmo no meio da mais densa noite, o girassol sempre gira na  direção do horizonte onde nascerá o sol.  Como ensina o mestre Cláudio Ulpiano: “As intensidades do girassol são forças do tempo.”

As mãos enlaçadas simbolizam a necessidade de fazermos agenciamentos e criarmos elos .

Já a rosa simboliza para mim a intenção  de Espinosa ao colocar  a imagem de uma rosa para ilustrar seu livro intitulado “Ética”. Abaixo da rosa Espinosa escreveu a palavra latina “caute”, que significa “cuidado”. “Cuidado” não no sentido de medo ou receio, e sim enquanto ação de cuidar, proteger  e potencializar  tudo o que é digno e libertário.

 Tudo aquilo que é frágil necessita de cuidado. “Frágil” não é o mesmo que “fraco”. Frágil é toda realidade que guarda em si uma virtualidade ou potencialidade a desabrochar . Essa virtualidade é uma “reserva de futuro”.

A criança e  a semente são frágeis  nesse sentido: existem em razão do futuro. Fraco, ao contrário , é tudo aquilo que usa  armas e força bruta querendo  impor o retorno de um  passado trevoso. As ideias são frágeis, porém fraca é a mente ignorante de ideias.

O poeta Manoel de Barros dizia que “Tudo o que é verdadeiramente novo nunca vira sucata”. O novo celular hoje tão desejado, amanhã  será descartado: virará sucata. As coisas  que o mercado de consumo hoje vende como promessa de felicidade , amanhã já serão sucata...

Mas tudo o que em seu coração traz auroras , seja uma palavra que ensina ou uma ação que transforma,  essas realidades nunca viram sucata, desde que para ela tenhamos ouvidos e olhos, para que nós mesmos nunca nos tornemos sucata, apesar do tempo que passa.

Uma aurora é sempre nova, nunca vira sucata : “os poeta são instalados na natureza igual se fossem uma aurora”, ensina Manoel de Barros.

Sobretudo nesses dias em que as mentalidades  antidemocráticas nos ameaçam e  agravam  as tragédias sociais , que em 2023 não nos faltem proteção , saúde, agenciamentos , força e arte.

 

 

 ( Imagem:    “Girassol” / de Klimt; é um girassol feminino , que parece proteger, com cuidado, as muitas flores que, em plurais cores,  florescem em sua base)




 

 

Hoje é feriado no Rio: dia de São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade  sob o olhar do poeta Chico:



domingo, 15 de janeiro de 2023

massa, povo e multitudo

 

1- Em razão dos episódios hediondos do último domingo, está sendo muito lembrado o texto de Freud “Psicologia das massas e análise do eu”.

Segundo Freud, a massa anula a personalidade dos indivíduos que entram nela, ao mesmo tempo desfazendo nesses indivíduos mecanismos psicológicos que freiam a subida à mente  de impulsos associais destrutivos. Na massa esses impulsos circulam e amalgamam  cada indivíduo , desumanizando-os.

Cada indivíduo tem um nome, porém a massa é anônima: fazendo parte dela, cada indivíduo perde criminosamente a noção de responsabilidade  por seus atos, uma vez que quem age é a massa : na massa  são  reveladas as sombrias faces ocultas   que se escondem atrás do rosto do  chamado “homem de bem...”

Sob o poder da  massa, pequenas antipatias se tornam ódios mortais , enquanto  seus líderes são tratados como  seres divinizados cujas mensagens se tornam palavras de ordem a serem repetidas e obedecidas  fanaticamente.

Segue um trecho de Freud: “As massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões(...). Nelas o irreal tem primazia sobre o real.”


2- Acrescentando ao que diz Freud, trago Espinosa. Não são a mesma coisa as ideias de “massa”, “povo” e o que Espinosa chama de “multitudo”.

As massas são instrumentos passivos de “líderes” que as fomentam e as mantêm arrebanhadas  canalizando a seu favor , e contra seus inimigos ( reais ou imaginários),  impulsos como o ódio ,  o medo , a violência e a obediência cega, servil.

Já o povo é um conceito jurídico-político. O povo não tem um líder que o submete e arrebanha; ao contrário,  o povo escolhe seus líderes mediante preferências  eleitorais democráticas. É verdade que “todo poder emana do povo”, porém povo não é massa.   

A palavra “multitudo” tem por sinônimo “multiplicidade”. Multiplicidade é tudo aquilo que potencializa e torna múltipla a singularidade que dela faz parte.

A multiplicidade não tolhe, ela multiplica; ela não destrói, ela cria; ela não odeia, ela ama a si própria e por isso se  indigna contra as tiranias; ela não escolhe líderes, ela afirma a si mesma como soberana.

A multitudo não é massa anônima que dissolve os eus na irresponsabilidade insana, a multitudo é a expressão de um “nós” ético-político enquanto agenciamento plural de singularidades não egoicas .

Ao contrário de uma nação , a  multitudo não habita apenas um país, ela habita a Terra, embora seja sempre num país, numa cidade ,ou mesmo num bairro, que ela se manifesta.

E onde a multitudo se manifesta, neste espaço também se expressam as questões sem fronteiras determinadas que concernem à humanidade inteira em seu avançar educacional-democrático-civilizatório.




 

sábado, 14 de janeiro de 2023

brincatividades...

 

A imitação é um dos comportamentos mais singulares que podemos observar entre os seres vivos. O filhote de passarinho, ainda no ninho, aprende a voar imitando seus genitores; o pequeno leãozinho aprende a ser leão imitando seus pais. Pois imitar é a forma primeira de aprender : não só aprender a se comportar desta ou daquela maneira, mas aprender a ser aquilo que se é.

A arte também é prática de imitação (mímesis): quando um pintor  pinta uma maçã, a maçã pintada imita a maçã real; quando o escultor esculpe uma estátua de Sócrates , a escultura  imita  Sócrates .

Quando um músico compõe uma música sem palavras, a música também imita. A música não imita mediante a criação de uma imagem icônica, como na pintura e na escultura; a música imita por intermédio do ritmo. O que a música imita? Ela imita os afetos.

Como o afeto não tem uma figura visível , tal como Sócrates o tem,  toda imitação musical  de um afeto na verdade o recria. É por isso que a música também pode ser uma terapêutica clínica: ouvindo a música, nós mesmos nos ouvimos através do afeto que sentimos.

 Ouvindo  a música,  imitamos  o ritmo dela  a partir do ritmo do nosso corpo, incluindo  os ritmos respiratórios e  cardíacos. A música nos ensina que somos ritmos que imitam ritmos maiores: Pitágoras dizia que o universo é música composta pelo ritmo dos astros.

Mas há duas formas de imitação: a servil e a criativa. Na imitação servil aquele que imita  anula  sua diferença própria para assim  ser a cópia servil de um modelo.

Quem tem a propensão a imitar servilmente se submete a qualquer modelo , mesmo que o imitado seja um ser abominável . Quando muitos imitam servilmente um crápula tornado modelo, surgem os rebanhos fanáticos que pouco valor dão à vida, uma vez que pouco valor dão a si mesmos.

Porém há também a imitação criativa. Nela, a imitação é atividade para descobrir e potencializar a própria potência-ritmo, dado que o imitado é criado para favorecer agenciamentos para singularização de ritmos.

As ideias que emancipam e educam são assim: conhecê-las é vivê-las como meios que potencializam nossos ritmos , maneiras de ser e estilos. Aprender ,  ensinar, partilhar, empatizar, amar... são  composições  de   ritmos.

A própria sociedade também possui seus ritmos: a democracia é um ritmo social que protege e estimula os ritmos heterogêneos. Já a tirania é a tentativa de impor comportamentos mecanizados segundo a lógica do rebanho “mesmal” .

Por isso, não podemos deixar que as forças destrutivas que agem em torno   nos produzam movimentos internos que nos ponham sob riscos, pois tristeza, medo e apatia  são enfraquecimentos dos nossos ritmos.

Mas com nossos ritmos potencializados, aprendemos a agir sobre o mundo externo sem violentar nossos ritmos.

Na foto, é a menina, e não a pintura, a maior obra de arte. Ela não copia servilmente, ela interpreta a partir do seu ritmo, e assim se autodescobre brincativamente e afirma seu estilo: autonomiza-se.




 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

eureka

 

Um poema, uma música, uma exposição, um filme...não servem apenas para nos distrair ou fazer passar o tempo. Uma das funções da arte é a sua função heurística. A palavra heurística significa “descoberta”.

O famoso cientista, matemático e pensador Arquimedes estava submergido  em sua banheira meditando sobre um problema aparentemente irresolúvel. Até que, de repente, ele gritou: “Eureka!”.

A palavra eureka é prima da palavra heurística, e significa: “descobri”. Arquimedes descobriu a solução para um problema abrindo  seu pensamento  à  imaginação e à sensibilidade , tal como faz um artista quando   uma ideia nova, como um raio, o  ilumina e o faz ver , com olhos novos, a obra por criar.

A arte também produz conhecimento. Não um conhecimento teórico para ser decorado e repetido passivamente, mas um conhecimento que possibilita (re)descobertas, do mundo e de nós mesmos.

É por isso que a arte nunca morre ou envelhece: mesmo num poema muito antigo podemos encontrar um sentido novo que gere descobertas que potencializem nosso existir aqui e agora, abrindo-nos à construção do futuro. Isso também explica porque os obscurantistas, presos a  passados autoritários,  têm tanto ódio da cultura e das artes...

Este é o valor maior do conhecimento: produzir descobertas. Sobretudo aquelas que vêm quando a gente menos espera, quando  imaginamos que não há saída e tudo está perdido. Até que , de repente, a ideia nova nos ergue e não submergimos mais,  e gritamos: “Eureka!”.  


( este livro de Clarice, livro de descobertas, é apenas uma sugestão de leitura)




terça-feira, 10 de janeiro de 2023

mentalidade, palavras e ações

 

Não existe “ato pacífico” para pedir a guerra, não há “ato pacífico” para gritar por violência. Guerra e violência nascem de falas violentas , intolerantes, odiosas, beligerantes.

Pois é isto que desde o início moveu a fala desses bolsonaristas: que os milicos interviessem com força e brutalidade empregando tanques e canhões  para violentar a democracia e a nós.

É uma falácia fomentada pelo miliciano e reproduzida pelo governador de Brasília, pelo Srº Múcio  e por setores da mídia a versão de que era uma manifestação majoritariamente pacífica que foi deturpada por uma minoria de  “vândalos”.

Nunca essa contestação delirante  do resultado das eleições foi pacífica. Ações pacíficas nascem de falas pacíficas, argumentadas e pautadas em ideias. Nunca a fala dessa gente  foi pacífica. Sempre foram falas paranoicas, agressivas, negacionistas, preconceituosas, terroristas,  nascidas que são da ignorância e de delírios teológicos-políticos-militaristas.

Além do mais, o vandalismo hediondo de domingo foi gestado pelo vandalismo da fala miliciana nascida lá atrás naquele voto do fascista  evocando um carrasco torturador ( Ustra) como referência de seu voto contra Dilma.

A natureza de uma ação , se construtiva ou destrutiva, se democrática ou fascista, nasce  das palavras proferidas que revelam que tipo de mente está por trás dos atos.

Pois a fala e o discurso também são ações que mostram   que tipo de   mentalidade  os produziu : se é uma mentalidade de fato pacífica ou , ao contrário, é uma mentalidade doentia, negacionista, antidemocrática.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

ato em defesa da democracia - 09/01

Essa violência ocorrida ontem começou a ser gestada pela serpente fascista em 2016, mais especificamente no voto hediondo feito pelo miliciano evocando e idolatrando um torturador sádico (Ustra) como inspiração de seu voto no golpe contra Dilma.
Durante quatro anos essa serpente cresceu acenando ao tal mercado e mídia corporativa com benesses e negociata dos bens públicos.
Foi parte do veneno dessa serpente o ódio e perseguição destilados pela mídia golpista e setores do judiciário contra o PT e a esquerda.
Todo esse terror não cessará enquanto a serpente estiver livre . Basta olhar nas redes sociais do miliciano para ver nos comentários as arquitetações desses atos terroristas inspirados nas falas do fascista que há 30 anos prega "guerra civil onde morra uns 30 mil", pregação essa hoje repercutida por pastores teológicos-políticos e setores das forças armadas, cujas frentes dos quarteis se tornaram ninhos da serpente.
Somos maiores do esses fascistas . Mas é preciso ação , união , coragem e firmeza .


domingo, 8 de janeiro de 2023

universal concreto X universal abstrato

 

O fascismo e o autoritarismo sempre se apoiam em “universais abstratos”. Um universal abstrato é uma ideia vazia que nega a heterogeneidade real, ao mesmo tempo   colocando acima  de todos uma noção homogênea que serve de biombo ou máscara  que esconde a face do poder excludente.

 “Deus” , “pátria”  e  “família”, por exemplo, são “universais abstratos” que escamoteiam a intolerância a vivências distintas do sagrado, o ódio às etnias diversas  que compõem nossa nação e o preconceito às formas diferentes de conjugalidades amorosas.

O pensamento reacionário parte de um raciocínio de “quebra-cabeça” para pensar a sociedade: eles imaginam que cada grupo social diferente, que cada minoria, é como uma peça de um quebra-cabeça cujo lugar no “todo” deve obedecer a uma ordem que as submete a uma maioria branca, proprietária, cristã, heterossexual, conservadora, militarista, falocrática.

A lógica desse raciocínio de quebra-cabeça não é a combinatória pautada na  igualdade, mas a da submissão a uma  hierarquia  não democrática que tenta colocar as minorias sob o poder de uma  maioria que as nega , exclui e persegue. “Maioria”, aqui, não é ser em maior número, e sim querer ser padrão.

O sonho de todo fascista é transformar a sociedade num quebra-cabeça submetido  a uma ordem autoritária na qual as peças , à força combinadas , formem  a face do ditador. Hitler dizia : “Eu sou a face da Alemanha”.

O contrário dos “universais abstratos” é o “universal concreto”. Todo universal concreto é uma singularidade. O universal concreto não é um ego, pois o universal concreto, em suas palavras e ações,  expressa a força de muitos que com ele se identifica, mas sem perder cada um a sua diferença.

O universal  concreto não  é um universal vazio que se preenche e   dá visibilidade ao rosto autoritário ; ao contrário,  o universal concreto inclui a face daqueles que o poder excludente quer invisível.

O universal concreto expressa a potência da heterogeneidade social em sua riqueza inesgotável.

O universal abstrato tende a se confundir com o rosto do tirano querendo-se acima  de todos,  já o universal concreto , em sua singularidade, é sempre a imagem viva do rosto  plural do povo.




sábado, 7 de janeiro de 2023

Epicteto: a libertação pela filosofia

 

Sob o Império  Romano , alguns mercadores de escravos obrigavam seus servos  a decorarem  Homero, Hesíodo, Safo, Píndaro...Esses escravos decoravam os textos e sabiam informar onde se encontrava cada verso.

 A elite de Roma, preguiçosa de estudar porém ávida para ostentar erudição superficial, essa elite comprava esses escravos, que eram os mais caros.

Quando tal elite promovia banquetes e festas, os ricos esnobes mantinham  tais  escravos por perto. Assim, quando um elitista pedante  queria esnobar conhecimento citando alguma passagem dos poetas e literatos, ele chamava o escravo do qual ele era o dono e perguntava  no ouvido dele onde ficava tal passagem da obra, recebendo então a informação do escravo ( que a cochichava em seu ouvido , dando   a “cola”).

Os convivas de tal elite esnobe aceitavam esse  expediente hediondo  com naturalidade, uma vez que os escravos não eram vistos como seres humanos, mas como um instrumento a serviço de seu dono.

Por razões políticas que escapavam à sua vontade, ainda muito jovem Epicteto foi feito escravo em Roma. Inclusive, seu nome verdadeiro não é “Epicteto”, que significa “comprado” ( pois ele foi comprado como escravo). Seu nome verdadeiro se perdeu, ninguém sabe. Porém , Epicteto adquiriu o nome de filósofo ao exercer seu pensar autônomo,  sem dono e algemas.

Em vez de ser decorador de textos e  servir de instrumento útil à elite  escravocrata, Epicteto estudou clandestinamente filosofia, fazendo desta um meio libertário a favor dos perseguidos e injustiçados .

Epicteto foi um dos primeiros filósofos a ensinar a igualdade não apenas entre os homens, mas sobretudo entre homens e mulheres. Foi exercendo o pensar contra toda forma de grilhões que Epicteto  se libertou , ao mesmo tempo libertando muitos, ontem e hoje .

Como já dito, ninguém sabe ao certo o nome de nascimento de Epicteto, porém todos reconhecem que ele deve receber o nome de pensador-filósofo, nome conquistado efetivamente por meio de  sua prática pedagógica emancipadora.

Não importa em qual área,  ninguém se educa e se autonomiza apenas decorando cartilhas que o poder obriga. Quem apenas decora informação é escravo e não pensa, sendo útil a alguém que o explora: ontem, a elite  romana; hoje, a visão instrumental/privatista  do ensino negadora da filosofia e submetida  ao poder imperial do “mercado”.

Pensar nada tem a ver com erudição pedante ou “decoreba” de textos .  Em Roma, era proibido aos escravos  interpretarem os textos , pois interpretação é atividade de um pensamento livre que , sem dúvida, se apoia em  textos, porém não está algemado neles servilmente.

Além disso, a autêntica interpretação, a que realmente autonomiza e educa, nunca é apenas interpretar textos, mas interpretar/ler, primeiramente , o mundo ( como ensina o educador Paulo Freire). Quem aprende a   interpretar crítica e criativamente o mundo faz dessa leitura a chave que abre algemas ( literais e simbólicas).




 



terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O avô do mercado

 

Durante os  quatro anos de fascismo autoritário e negacionismo da educação e ciência, ninguém viu o “mercado” nervoso ou agitado. Ao contrário, ele estava bem acomodado : havia um representante dele no governo miliciano , representante esse que se formou sob a  ditadura hedionda  de Pinochet no Chile.

Durante esses mesmos quatro anos a mídia corporativa “escondeu” o  “risco país” ( um aferidor internacional que mede a saúde social de uma nação). Para essa mídia, parece que o fascismo não representou risco aos seus  “negócios”.

Agora, com o retorno de um governo popular, a mídia está ressuscitando o tal “risco país”, dando a entender que a inclusão dos pobres no orçamento é  risco à sua avidez por  lucros.

O tal mercado que hoje faz terrorismo especulativo  frente ao novo governo recém empossado, esse mercado tem um avô: o mercado de escravos.

 Além da colonização e das guerras, o mercado de escravos foi um dos pilares de expansão do capitalismo nascente (sobretudo na exploração da América Latina e África).

Se em 1888 já  existisse  bolsa de valores no Brasil, a notícia sobre a Abolição da Escravatura faria com certeza a bolsa despencar, instrumento que ela seria da Casa-grande.

 

(imagem: Banksy)





domingo, 1 de janeiro de 2023

limpezas...

 

Agora que  o miliciano fugiu com medo de ser preso, podemos voltar  a respirar um pouco de ar puro... Mas  será preciso todo um trabalho de limpeza em tudo aquilo que ele tocou no Palácio do Planalto.

Será necessário  limpar não apenas o que ele sujou com suas mãos sujas de sangue, mas também o que ele poluiu com sua língua e fala torpes.

Será preciso  benzer  os espaços que ele entrevou com sua presença maléfica, sendo preciso igualmente  defumar os ambientes   com  as ervas purificadoras da floresta amazônica; e que os pajés possam expulsar os maus espíritos que por quatro anos fizeram morada em Brasília.

Exorcistas, pais e mães de santo, caça-fantasmas, especialistas em desfazer mau agouro...toda ajuda de todos os planos será necessária para afastar tudo o que de ruim criou raiz ali .

Como na Lavagem do Bonfim, que as sábias baianas também venham ajudar na limpeza  espiritual purificando o lugar com suas águas de cheiro imantadas com arruda.

Para dissolver as sujeiras físicas acumuladas : álcool, creolina, desinfetante, água sanitária...Para despoluir outras  sujeiras de maldade carregadas : espalhar  sal grosso.

Após a limpeza  física e espiritual do lugar , que não tarde o devido julgamento do poluidor-miliciano  por seus crimes contra os indivíduos, contra o coletivo  e contra a humanidade.

Nietzsche dizia que só mesmo tapando o nariz do espírito conseguimos não ser envenenados pela espurcícia que exala de seres como esse que poluiu o país por quatro anos.

Para sobrevivermos a épocas assim, aconselha Nietzsche, é preciso respirarmos fundo e enchermos nossos pulmões com o ar livre que nos mantenha resistindo vivos.

Estávamos há quase quatro anos com nossa respiração suspensa , mas ainda vivos pelo oxigênio das ideias e afetos que soubemos reservar e partilhar para não sufocarmos.

Já podemos voltar a respirar... Mas o ar só estará purificado mesmo quando , não por vingança mas por justiça, o  miliciano e seus cúmplices forem processados, julgados e presos.  

 

(Imagem compartilhada de Madre Tierra Das Crianças. A pintura é de Matheus Ribs: https://www.facebook.com/matheusribsoficial)