Fui alfabetizado fora da escola, antes de conhecer qualquer cartilha. Confesso que disso me orgulho muito. Aprendi a ler, então, fora do Estado e em um espaço privado não regido pelo valor exclusivamente familiar determinado pelo sangue. Comecei a aprender a ler na casa da minha primeira professora particular. Sua casa virou minha casa, sem que o fosse. Ela não tinha meu sangue, mas tinha algo que é o sangue do espírito: o afeto. Por isso, não era um espaço meramente particular ou privado este em que me iniciei no alfabeto . Não era um espaço regido pelo valor econômico. Havia, isto sim, a economia do afeto. Lembro-me que em seu quintal havia um viveiro com passarinhos de todas as cores. Aprendi a ler ouvindo também o canto, igualmente plural, desses passarinhos ao fundo. Quando entrei para a escola, já sabia ler e escrever; por isso, entrei diretamente para o segundo ano. Desculpem-me pela pretensão do orgulho, mas me marcou, pelo resto da vida, essa inicial autonomia filosófica.
Aprendi a ler graças ao esforço da minha mãe, ao amor da professorinha que me dava aulas em sua casa e, claro, graças também ao meu desejo de aprender a ler. Esse desejo está associado a um encontro, a uma amizade. Edinho, meu primeiro amigo, era cerca de 4 anos mais velho que eu. Quando eu tinha 5 anos, ele possuía 9. Naquela época, era uma diferença considerável. Nesse sentido, ele era para mim um exemplo. Edinho adorava ler gibis. Ele me emprestava vários, e eu os folheava todos os dias, vendo apenas as imagens.
Então, numa certa noite antes de dormir, como de costume eu folheava um gibi. A professorinha havia me ensinado o nome de cada letra. A partir do nome que eu ouvia , aos poucos fui conseguindo identificar o referido nome à figura de cada letrinha que eu via desenhada no papel. Depois, a professorinha me ensinou que cada letra podia, ao se encontrar com outra, formar um novo ser: as sílabas. Estas não tinham nome, mas eram a base de todo nome de coisas. Porém, eu aprendera que “b” com “a” formava “ba”; e que “l” com “a” formava “la”. Mas quando eu via a palavra “bala” escrita no papel, na verdade não a via, pois eu não conseguia ver o nome : via apenas ora as letras b,a,l e a , ou então as silabas “ba” e “la”. Ou seja, embora a palavra estivesse escrita no papel, ela ainda não estava escrita na minha pequena alma. Eu via apenas fragmentos, ou a união destes, mas não via o todo, pois o todo está apenas na alma , e isto descobri depois ( pois a palavra, em relação à frase, é um fragmento desta; mas a frase, em relação ao texto, é um fragmento deste; mas o próprio texto também é um fragmento: um fragmento da língua; porém , a alma não escreve apenas com a língua:esta é sempre um fragmento quando comparada com as ideias que alimentam e constituem a alma; e o todo da alma não pode ser medido "com régua", pois é um todo medido em intensidade, em potência: potência de pensar, potência de sentir, potência de criar; nesse sentido, a alma também é um fragmento: um fragmento do absoluto, como nos ensina Espinosa).
Voltando então àquela noite de minha vida, talvez a noite mais decisiva em relação ao que me tornei depois. Mais do que do fato, lembro-me da alegria que senti - alegria esta que nem mesmo o meu mais querido brinquedo , a bola, me proporcionou !
Eu folheava naquela noite, como de costume, um gibi. Eu ia das letras às sílabas, e mais longe não ia. De repente, como se fosse um saber adquirido instantaneamente, e não por progressão, de repente saltei um abismo: diante dos meus olhos eu vi, enfim, mais do que o “ba” e o “la”. Eu vi a palavra “bala”. Esta sempre estivera lá, fora de mim, escrita no papel. Mas agora ela estava em mim, e também fora de mim, e ao meu pensamento ela pertencia agora como instrumento de exploração do mundo. Depois da primeira palavra, passei para outra, e depois outra, e outra...Eu estava com tanta alegria, que corri até minha mãe para mostrar que aprendi a ler. Vi nos seus olhos que ela não entendeu tanta alegria. Aliás, nem eu entendia.Depois, fiquei com medo de ir dormir e esquecer o mundo que descobri, mundo este que estava dentro e fora de mim. O curioso é que foi graças à influência do meu amigo, ao meu desejo de ser como ele, que me esforcei para ler os gibis. Mas este meu amigo nunca passou muito além dos gibis. Sou-lhe grato , porém, por eu ter ido muito além dos gibis, pois foi nos gibis que comecei: querendo ser outro, terminei por me descobrir.
Hoje, ao me lembrar dessa experiência, entendo melhor o que diz Espinosa acerca do conhecimento e do autoconhecimento. Segundo ele, uma coisa é o conhecimento; outra coisa é a relação que estabelecemos com ele . Por exemplo, se um homem imagina que o conhecimento serve apenas para ele conseguir um bom emprego , ou se um cientista acredita que o conhecimento é útil apenas enquanto possibilita o domínio das coisas externas, embora o conhecimento assim obtido seja verdadeiro, dele não brotará, contudo, um autoconhecimento. E metade da verdade não é verdade: a verdade é sempre inteira. E a verdade inteira é feita de conhecimento e autoconhecimento.Um conhecimento só se torna o instrumento de um autoconhecimento se , enquanto conhecemos , conhecemos também que somos capazes de conhecer. Quando descubro que sou capaz de conhecer, descubro também, ao mesmo tempo, a potência que tenho de pensar, e que esta potência pode ser aperfeiçoada e servir de orientação para que eu possa agir adequadamente: o autoconhecimento me torna autônomo em relação às coisas que o conhecimento conhece. O conhecimento pelo mero conhecimento é, no fim das contas, ignorância de si, tal como no caso do Fausto ( o cientista de Goethe que quanto mais aumentava seu conhecimento mais aumentava seu desespero e vazio existencial). Mas o desprezo pelo conhecimento, tal como acontece no fanatismo religioso, torna impossível, ao mesmo tempo, a compreensão da natureza e o verdadeiro conhecimento de si. E tais ignorâncias acabam por se corporificar, na imaginação dos ignorantes, no Senhor das Trevas: Mefistófeles.
Assim, mais importante que o conhecimento que obtemos, é o modo pelo qual nos relacionamos com ele. Se o tomamos como um fim em si, ele nenhum poder terá para nos ajudar a vencer nossa ignorância sobre nós próprios; o mesmo acontece quando o tomamos como um meio para obter poder, prestígio, etc.
O homem nasceu ignorante das causas. E muitos crescem sem vencer essa ignorância: herdam os medos e superstições dos adultos que lhes cercavam e, acreditando-se livres, passam adiante tais fantasmagorias aos seus filhos ameaçando com castigos, no caso de uma saudável desobediência dos mesmos, ou os premia com elogios e presentes por identificarem neles os mesmos traços de escravidão passados como herança. É por isso que não podemos nos conhecer diretamente sem o exercício do conhecimento das coisas que não dependem das opiniões herdadas. Pois tais conhecimentos servem, antes de tudo, para nos libertar da impotente criança que ainda somos.
Enfim, o verdadeiro conhecimento nos ensina, ao mesmo tempo, sobre aquilo que conhecemos e sobre a capacidade que temos de conhecer. E quanto mais desenvolvemos essa capacidade, mais nos conhecemos como um espírito que pensa. Não devemos dizer “penso, logo existo”; e sim : “conheço o mundo, logo sou capaz de conhecer o mundo, e isto porque sou um ser dotado de pensamento livre, e é através deste pensamento que me conheço como um ser do mundo, que possui um corpo que é a expressão do infinito; e que meu espírito não é inimigo desse corpo, pois quanto mais conheço meu corpo mais me autoconheço como espírito”. É uma ilusão achar que existe um autoconhecimento apartado de todo conhecimento. Essa ilusão alimenta a idéia equivocada de que existimos à parte do mundo que a razão conhece. Essa ilusão nos divorcia do mundo, e nos faz crer que existimos como um puro espírito sem corpo, ou que o corpo nada tem a ver com aquilo que somos. Essa ilusão nos faz crer que espírito e corpo vivem em mundos diferentes : apenas o espírito viveria em um mundo verdadeiro, ao passo que o corpo viveria em um mundo aparente. É a essa ilusão que conduz a filosofia de Platão quando ele diz que “o corpo é o túmulo da alma”. Mas Espinosa nos diz que o corpo e a alma são a mesma coisa vista de duas perspectivas diferentes. Uma alma que crê que o corpo é seu túmulo é uma alma que, ainda em vida, já está morta.
Em francês, a expressão para “conhecer” é perfeita: “co-naitre”. Isto é, “nascer junto”. Naquela noite, ao ler o gibi, aprendi que aprendia não apenas a ler: aprendi que aprendia a (re)nascer.