sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O cacto e sua primavera

 

Muito se fala, com razão, das flores. Girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras flores já foram homenageadas em poemas , músicas e pinturas.

Flores também são empregadas como símbolos: o lírio é símbolo da pureza e Iluminação; a rosa vermelha, das revoluções igualitárias.

Com a chegada da primavera, essas flores são ainda mais lembradas...

Mas pouco se fala das flores que o cacto também sabe produzir. Considero essa omissão uma injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção ou fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que expressam rara beleza e simbolizam generosidade.

Assim age esse perseverante e resistente poeta da natureza : o cacto é a planta que possui a maior raiz. Em alguns cactos, a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!

Quem mede o cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca.

As raízes do cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe-Terra a água que o Céu lhe nega.

Quando encontra a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce, de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados.

Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu de um cacto : o mandacaru, símbolo da força do povo nordestino.

O cacto mandacaru expressa a resistência da vida, uma resistência que também se faz com poesia e beleza, apesar da aridez que a cerca. O mandacaru matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

Como ensina o grande poeta nordestino: “Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”(João Cabral de Melo Neto)


(imagem: os cactos-poemas de João Cabral / o mandacaru e sua flor)






 

sábado, 20 de setembro de 2025

@semanistia / @pecdabandidagemnão

 

Em suas obras políticas, Espinosa critica a ideia de liberdade como “independência”. Para ele, ao contrário, toda liberdade autêntica é sempre a construção e afirmação de algum tipo de relação da qual  dependemos  para sermos livres.

Pois nada é livre vivendo à parte, toda liberdade é uma forma de relação ou agenciamento. Ser livre não é não depender de nada, ser livre é depender, antes de tudo , de nós mesmos para sermos livres, uma vez que a primeira das relações fundamentais é a relação consigo mesmo.

Um povo livre  não é aquele que se coloca à margem do mundo e em guerra com todos. Um povo livre é aquele que mais depende de si mesmo para governar a si mesmo.

Um povo que sabe que depende de si mesmo para construir sua liberdade nunca imagina que sua liberdade dependerá do Mercado, da Religião , do Patrão, da Mídia, do Capital... e muito menos da Casa-grande.

Quem  governa um povo livre é ele mesmo, pois um povo livre é aquele que mais depende de si mesmo para construir sua história.

Um povo livre  não é aquele que imagina  que houve uma data histórica no passado onde ocorreu sua suposta “independência’. Um povo livre é aquele que a cada vez cria a compreensão, aqui e agora, de que depende de si a construção de sua liberdade, para assim afastar milicos aproveitadores que se imaginam “donos da Independência”.

O governo mais favorável à luta do povo não é aquele que se coloca “acima do povo”, como um “pai” ou “padrasto”.

Um governo autoritário teológico-político de pretensos  “ungidos” sempre teme um povo esclarecido e autodeterminado.

O governo mais favorável à liberdade do povo é aquele que,   vindo do próprio povo, age para que o  povo mesmo compreenda que é ele que governa ao escolher os governantes. E que depende antes de tudo dele, do próprio povo em sua heterogeneidade,  escolher quem o auxiliará a depender cada vez mais de si mesmo na construção histórica de seu destino.

Um povo que depende cada vez mais de si para ser e construir a si mesmo é um povo que se educa, que cria sua arte, sua memória e seu futuro.

Não existe “Independência do Brasil” como se fosse um fato consumado. O que existe é a necessidade de construção da nossa liberdade coletiva com a compreensão de que depende de nós mesmos construirmos a nossa soberania, e que isso requer decisão, perseverança e coragem.

E melhor ainda se pudermos fazer isso cantando juntos, com Gil, Chico e Caetano.







 



sábado, 13 de setembro de 2025

evento: Deleuze - 100 anos.

 

Bom dia, estou participando desse evento organizado pelos professores Mário Bruno ( UERJ) e Leonardo Machado ( UFRJ) .


Um texto que escrevi sobre Deleuze:

Em seu comentário ao livro “A besta humana”, de Zola,   Deleuze aborda alguns  comportamentos hediond0s , de ontem e de hoje, identificáveis à  “besta”.

A besta não é um animal determinado da zoologia. A besta é uma espécie de “fundo indeterminado” propagador de (auto)destruição e m0rte, uma espécie de “buraco negro” que suga e extingue toda forma de luz.

Os instintos  protegem os animais  desse “fundo indeterminado”. Nenhum animal é capaz de cometer ato hediondo ou b4rbárie inexplicável, pois todos os seus comportamentos são explicáveis pelos instintos.

 A ferocidade do leão, por exemplo, não é maldade ou crueldade, mas um comportamento explicável por sua natureza de leão. Conhecendo essa natureza, podemos agir para evitarmos que essa ferocidade nos vitime.

No homem, o instinto não tem força suficiente  para protegê-lo desse fundo indeterminado . Tampouco pode a inteligência, sozinha, vencer esse “buraco negro”, o ninho onde dorme a besta.

Pois a inteligência , com suas teorias e invenções tecnológicas, é voltada para o domínio do mundo externo, de tal modo que a besta sempre se esconde às suas costas, como uma sombra.

Pode acontecer de a besta se servir dos frutos da inteligência e usá-los como  doenti4s armas suas : “mísseis  inteligentes”, por exemplo,  são a inteligência a serviço da besta e sua necrop0lític4 de extermínio que não poupa nem crianças...

Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a “besteira” como  antieducação e anticonhecimento.  A besteira é a besta empregando a palavra para destruir o próprio universo simbólico.

Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras; somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que tortur4m os ouvidos do espírito .

 A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como no f4natismo teológico-político  armado de int0lerânci4.

Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho imprevisível que nem  a natureza  explica mais...                                                                                                                                                                                            

Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem.  A besta morava num lúgubre labirinto que prendia a todos e parecia não ter saída.

Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala e doenti4 ,  que usava a seu serviço a força bruta do touro  .

Além da inteligência, a  vida criou o pensamento. O pensar redireciona e amplia a inteligência , tornando-a   também  (cons)ciência planetária propagadora de ideias e afetos emancipadores.

Quando aceso, o pensar é luz que resiste ao buraco negro, iluminando  por dentro e por fora,  brotando da mesma energia que os instintos da vida, potencializando-se  pelo cultivo social  da empatia que agencia , da cooperação que congrega  e da indignação que une os que lutam contra as tirani4s.




 






 


Voz de Deleuze lendo um texto de Nietzsche intitulado "O andarilho". Esse texto de Nietzsche me lembrou o seguinte verso de Manoel : "O andarilho abastece de pernas as distâncias".




sábado, 6 de setembro de 2025

sem anistia/Brasil soberano

 

Como nos ensina Espinosa, a  democracia não tem por centro altares, como num templo, e nem é feita de  hierarquias rígidas, à maneira da caserna.

Quando os representantes do  templo  e da caserna , extrapolando seus espaços , também ambicionam  poder político, corre perigo  a democracia ameaçada por intolerâncias, negacionismos e  fanatismos  armados com a força  bruta do militarismo a serviço do delírio teológico-político.

A força da democracia não é bélica, a força da democracia  é a das ideias plurais pensadas e realizadas em conjunto , perseverantemente. E também em conjunto, e perseverantemente, precisam ser defendidas.

 

 

“A virtude com a qual o homem livre evita os perigos

revela-se tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta”.

( Espinosa, Ética, Quarta Parte, proposição  69)


"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo."

(Manoel de Barros)