quinta-feira, 30 de maio de 2024

Os dois Manoeis

 

O poeta Manoel de Barros  dizia ser  “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza   “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, continua vivo e faz viver quem o lê.

 Talvez   a saudade que sentimos do primeiro Manoel   possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive no coração de seus versos,  onde está cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve Manoel.

O “letral” não é a letra morta no papel. O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”, explica-se o poeta. 

O primeiro Manoel nos deixou com 97 anos. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Talvez não se possa medir essa existência em passagem de tempo. Pois o Manoel-letral é só nascimento e  “afloramento de falas”, incluindo as falas  múltiplas  e heterogêneas dos seres diferentes que   o poder do “mesmal”  tenta calar.

Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, confessa o poeta.

 A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral que vive em sua poesia.

De minha parte, o Manoel-letral  ora é  um passarinho, ora é um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”, diz Manoel. Esse menino, afirma o poeta, é  “a criança que me escreve”. 

O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.  É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros.

 “Não, não há criação triste”, dizia Deleuze reproduzindo uma lição que aprendeu de Espinosa. As paixões tristes , frutos dos “maus encontros” que nos tiranizam, diminuem nossa potência de existir; já as paixões alegres nascidas de bons encontros  aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir  alegria e tristeza, potência e impotência, liberdade e servidão.

O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto de tristezas-impotências, pois mesmo estas são transfiguradas pela criação poética e se tornam  poesia, isto é, canto da palavra que cura e liberta:  “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”, ensina Manoel.

 Artífice de bons encontros potencializadores,  Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :

 

“O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro

botando ponto no final da frase.”

 


 


“Eu sou dois seres.

O primeiro fruto do amor de João e Alice.

O segundo é letral.

               (...)

O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.

O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.

E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.”

(Manoel de Barros, poema “Os dois”, livro Poemas rupestres, p. 45)



 

Obs: este texto aqui do blog é parte de um artigo que escrevi ( a convite do amigo, poeta e escritor Paulo Vasconcelos). Quem quiser saber onde se encontram em Manoel os versos que cito aqui, é só conferir no artigo:

http://saopauloreview.com.br/manoel-de-barros-em-um-ensaio-e-uma-homenagem/



terça-feira, 28 de maio de 2024

Apetite e Desejo em Espinosa

 

O desejo se origina do que Espinosa chama de apetite. O apetite concerne tanto ao corpo quanto à mente, ao passo que a vontade diz respeito apenas à mente. O desejo nada mais é do que o apetite consciente dele mesmo.

O apetite consciente de si mesmo já não se deixa determinar pelas coisas que não são ele mesmo, coisas que lhe estão fora, como bens, dinheiro, riqueza, fama. Quando se torna consciente de si mesmo, o apetite  tornado desejo  se liberta da ideia de que, para alcançar a felicidade,  precise possuir , ter, comprar , ostentar e acumular coisas ,  ou rivalizar e competir para tê-las como dono exclusivo delas.

Mas o apetite consciente de si mesmo não significa a mesma coisa que ter consciência do apetite. É preciso termos cuido com o emprego das palavras para não projetarmos em Espinosa questões que não são dele. Espinosa não está dizendo que o apetite dependa da consciência reflexiva de um sujeito moral. Ele afirma , ao contrário, que o desejo é o apetite consciente dele mesmo, e desse ser consciente dele mesmo participa não apenas a mente , participa também o corpo. Esse estar consciente não é uma reflexão, uma “interiorização” moralizante, mas uma ação do apetite pensando ele mesmo, sua singularização e potência, enfim, a sua conquista ética, que é a conquista de si mesmo.

Quando o apetite se torna consciente dele mesmo, não é apenas o apetite que se torna consciente de si mesmo, mas todo o nosso ser: nós mesmos nos tornamos conscientes de nós mesmos na medida em que exercemos potentemente o  desejo , isto é, na medida em  que nos tornamos causa, para nós mesmos e para os outros,  mais de alegrias do que de tristezas, mais de amores do que de ódios, mais de ações do que de reações.

Originariamente, a  palavra “apetite” tem o sentido de “pedir” , “ir em direção a”. Se o ato de pedir não for consciente de si mesmo, se ele não se pensar, desse pedir pode nascer um implorar , um mendigar, enfim, um padecer dependente , servo, reativamente passivo. Se o ato de pedir não for consciente de si mesmo, ele pode ser atraído e ir em direção a algo que o fará perder-se de si mesmo. E quando o apetite não é consciente de si mesmo, disso se valem os pregadores da culpa e da "falta" com  seus discursos teológicos-moralizantes que demonizam o desejo. 

Portanto, é  assim que o apetite devém desejo: pedindo, antes de tudo, a si mesmo:  indo em direção a si mesmo, à sua potência. Nesse sentido originário, ser cons-ciente é ter ciência e pensar  sua própria existência.  




 


domingo, 26 de maio de 2024

Espinosa e a medicina mentis

 

Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault,  em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica.  Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. Foucault argumenta que  essa conduta muda radicalmente a partir de Leibniz,  não obstante Espinosa e Leibniz  serem contemporâneos ( Espinosa era apenas um pouco mais velho que Leibniz).A partir de Leibniz, fazer filosofia será identificado a escrever livros, artigos; dar aula na academia, fazer palestras, acumular Títulos. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma. Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade, requer  sobretudo coragem .E disto a própria vida de Espinosa  dá o testemunho. Decerto que não faltou amor à Verdade a Sócrates ou Platão, e nisto Leibniz os segue. Mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a Verdade pede. Há uma dimensão clínica nessa Verdade, pois toda cura começa na coragem. Coragem não para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com  a saúde (salut).

Não se trata , portanto, da noção de “verdade” dogmática ou associada à clássica definição da adequação entre a ideia e seu objeto. A verdade de que fala Foucault é adequação sem dúvida, mas adequação entre o que pensamos e nossa conduta. Não é uma verdade enquanto forma , é uma verdade enquanto potência: um devir-verdade que nada tem a ver com as “Verdades Dogmáticas” sem devir.

Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina mentis, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem apenas pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curandorismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo.Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse vir tal salut.Procedendo assim, a alma está sempre a depender de outra coisa para ser si mesma e exercer sua virtude, que é a compreensão, o pensar.Todavia, não há como a alma delegar essa virtude e permanecer alma, assim como não há como ela, em vida, delegar sua existência a outra coisa e ainda permanecer viva. Na verdade, a virtude de pensar não pode ser delegada, pois ela constitui a existência da alma. No entanto, ela pode ser enfraquecida, entristecida, e isto é o que ocorre quando a alma adoece.

Ao perceber que o corpo está doente, a alma age visando a cura dele produzindo um método. Se for a alma a doente, o inverso não se aplica, pois o corpo é incapaz de perceber uma doença na alma.Se o corpo está bem alimentado, saudável, ele está na plena posse de sua virtude, que é agir. Perceber é uma virtude que depende da alma, e não do corpo.Mas como alma e corpo são um só, é abstrata a ideia de que um possa estar são e o outro doente. Esta hipótese foi aventada apenas para introduzir a seguinte questão: se a alma estiver doente, impotente, como pode ela perceber em si mesma tal impotência?Como poderia ela, estando doente, isto é, encontrando-se incapacitada para compreender, compreender justamente que ela não compreende?Como poderia ela emitir um juízo acerca de si mesma se ela se acha incapacitada para emitir juízos?Se ela se encontra fora dela mesma, e sua casa é a compreensão, como pode ela entrar nela mesma para, exercendo sua virtude, buscar sua própria cura?

A cura do corpo depende da alma, sem dúvida. Mas a cura da alma depende dela mesma. No entanto, se toda cura depende de um método, como pode a alma estabelecer um para si mesma se ela ignora que ignora?Assim, e antes de tudo, é preciso que a alma conheça que está doente. Conhecer não é reconhecer. O reconhecer é uma passividade, ele é a aceitação de um juízo externo que outrem faz sobre nós mesmos, ao passo que o conhecer é uma atividade que só depende de nós mesmos, pois ele é a produção de um conhecimento apoiado em uma ideia adequada. Quando conhecemos que estamos doente, já não o estamos mais: já ultrapassamos a doença pelo esforço para compreendê-la. Quando conhecemos que estamos doentes na alma, é sempre a uma parte da alma que a doença se refere, e não à alma inteira. Na verdade, a  parte doente da alma é apenas a alma pelo avesso, alienada de si mesma. Do conhecimento da doença nasce um método, que é um esforço sobre si mesmo para adequar-se a si mesmo, à nossa ideia adequada. Esse esforço é a expressão de uma constância que só se torna contínua  quando nos colocamos de acordo conosco.

O método é um exercício sobre si: ele é uma medicina animi, ele é uma clínica. A verdadeira clínica não é luta contra a doença, mas potencialização da saúde.Somente quando não está mais pelo avesso é que nossa alma pode nos vestir e ser a ideia adequada de nós mesmos, ideia esta que nos dá coragem e firmeza.A clínica é a constituição de um modo de vida, de um pensar e de um agir adequados. "Método" significa: "caminho para".O método é um caminhar, um caminhar para. O método é um caminhar para nós mesmos, para a ideia adequada. Esta não é um fim que se coloca exterior ao caminhar, ela é a causa eficiente dele. A ideia adequada é o martelo que produz o caminhar . Como toda ferramenta, é o uso que a aperfeiçoa, ao mesmo tempo que aperfeiçoa o agir do  artesão que a tem nas mãos.A nossa existência é um caminhar para a essência, um caminhar de acordo com a essência.Por isso, o método é uma conduta cuja causa é a essência que expressamos. O método é um caminhar para a essência, isto é, um estar de acordo com aquilo que não nos falta, mas que nos é necessário produzir como modo de vida.






sábado, 25 de maio de 2024

Van Gogh & Espinosa : singularidades...

 

Inspirando-se em Espinosa, o filósofo Deleuze distingue duas noções: indivíduo e singularidade. Indivíduo e singularidade, portanto, não são a mesma coisa.

Por exemplo, quando Van Gogh assinava  seus quadros, sua assinatura não se resumia apenas  ao nome próprio   escrito na tela. A “assinatura-Van Gogh” também são suas cores, o estilo  de suas pinceladas , seus tons, suas intensidades, ou seja, a assinatura-Van Gogh expressa uma multiplicidade de signos-ideias-afetos que Van Gogh criou, para assim conquistar uma forma de vida que nunca morre, vida essa  que se eternizou  nas  formas e cores de suas telas.

Inclusive, quando conhecemos bem essa assinatura-Van Gogh, somos capazes de reconhecer um quadro de Van Gogh de imediato, antes mesmo de lermos o nome “Van Gogh” escrito na tela.  

Enquanto o nome “Van Gogh” designa um indivíduo que viveu em determinado  lugar, em certa sociedade, durante um tempo específico que a história documenta e informa, a “assinatura-Van Gogh” expressa um acontecimento que mudou a própria arte, pela potência de vida  que esse acontecimento continha.

O indivíduo Van Gogh viveu uma vida de imensos sofrimentos, vida essa que ele pôs fim com um tiro no coração. Mas o tiro atingiu o coração do indivíduo, não o coração da singularidade-Van Gogh, pois esse coração  ainda pulsa  em sua arte.

Quando Espinosa terminou sua obra cujo título é “Ética”, ele não quis colocar seu nome nela. Espinosa viveu de modo tão autêntico , que pouco há nele de indivíduo-ego, pois ele foi   uma singularidade conectada amorosamente ao Infinito ( sem deixar de ser, quando preciso, combativo e  crítico ante os autoritarismos políticos de sua época).

A singularidade-Espinosa expressa tudo aquilo que o indivíduo Espinosa sentiu e pensou, mas que não cabia em sua vida individual, que não era   apenas de sua pessoa. É por isso que seu livro não contém apenas palavras,  nele também há percepções, ações, afetos , enfim, uma vida potentemente desperta para que despertemos também a nossa.

O nome “Espinosa” designa um indivíduo que foi excomungado, que tentaram calar e matar, que sofreu as maiores injúrias e ofensas que um indivíduo já sofreu. Mas isso não fez dele um   ressentido,  amargo ou conformado. Espinosa  nunca voltou atrás no que ensinava , jamais se vendeu ou se traiu.

Quando  lemos Espinosa, também aprendemos  como ele venceu aquelas injúrias e ignorâncias, e como  seu pensamento ainda nos é necessário nas lutas de hoje  contra as vilezas  dos seres cujos nomes nomeiam coisas inomináveis...

Espinosa diz que gostaria que quem lesse sua obra se sentisse como que “conduzido pela mão”. Isso me lembra a querida professora que me alfabetizou e , segurando/conduzindo  minha mão com afetuoso cuidado, me ensinou a assinar meu nome, singularizando-me.

Creio ser assim que também faz a mão ética de Espinosa conduzindo a mão do nosso pensamento : para aprendermos a assinar/criar   ações que , por mais simples e modestas que sejam, expressem uma conquista de potência,  emancipação e dignidade.


                                               ( “Estrada com cipreste e estrela”/ Van Gogh)



Ontem, o poeta Bob Dylan comemorou 83 anos:



quarta-feira, 22 de maio de 2024

A intuição em Espinosa

 

A filosofia estabeleceu alguns cânones para averiguar como as ideias se relacionam entre si, umas com as outras. O Deducionismo, por exemplo, acredita que uma ideia é sempre extraída de outra ideia. “Deduzir” significa “extrair”.Para que se possa extrair uma ideia, é preciso que uma primeira ideia seja dada como verdadeira e fundamento da dedução. Se esta ideia também foi extraída de outra, então ela não é verdadeiramente a primeira, ela é derivada de uma outra. É por isso que o processo não pode ir ao infinito: é preciso  uma primeira Ideia como ponto fundante de toda a cadeia dedutiva, sendo que esta primeira ideia, da qual todas são extraídas, não é extraída de nenhuma outra que lhe seja mais eminente ou anterior ( do ponto de vista lógico e ontológico).Esta primeira Ideia não foi produzida ou criada: ela existe em si, idêntica a si mesma.

O Associacionismo , diferentemente, defende que toda ideia é uma associação de ideias, umas exteriores às outras. Toda ideia é como uma palavra, cujas letras são outras ideias. Por que as ideias se associam? Elas se associam pelas mesmas razões que levam a se associar  tudo o que se associa, incluindo os homens: existem Princípios que presidem a associação das ideias. O Princípio de Identidade, por exemplo, é um desses Princípios. Todavia, esses Princípios não produzem as ideias, eles apenas fornecem as regras mediante as quais as ideias se associam. As ideias compostas nascem das ideias simples, tal como a palavra que nasce das letras. Mas de onde vêm as ideias simples? A resposta do associacionismo, embora conhecida, nunca deixa de ser desconcertante: as ideias simples vêm da sensação, e esta não é uma ideia e tampouco é um princípio. A ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida. As ideias pressupõem uma desintensificação das sensações . Somente algo não vem da experiência: o espírito. Todavia, não se deve confundir o espírito com o ego ou com o sujeito constituído, pois ego e sujeito  também são  uma ideia composta nascida de ideias simples enquanto sensações desintensificadas. O espírito é o que contempla/contrai a sensação. Da contemplação nasce a ideia e da contração emergem os princípios que regrarão as ideias, constituindo assim uma natureza humana com sua psicologia e regras de associação. Mas o espírito antecede a natureza humana , e expressa um processo onde ainda não estão separadas  sensação e mente. “Contrair” é, ao mesmo tempo, “unir” e adquirir um “hábito”. A noção de hábito implica a de uma repetição. O espírito é a diferença que contempla a repetição da matéria. Ao contemplar o que se repete, o espírito contrai , une, o que na natureza está separado. E é por esse mecanismo do hábito que o espírito se põe acima do  dado. O espírito não extrai a ideia da sensação, ele simplesmente a contempla/contrai, de tal maneira que a ideia nasce nele sem que ele a produza, uma vez que a ideia é o enfraquecimento daquilo que ele contempla. É preciso levar em conta que a sensação não é um objeto, ela é um processo; tampouco o espírito é um sujeito, ele também é  um processo. Assim, é desse processo sensação-espírito que toda ideia nasce, e desse processo não se pode separar aquele que contempla, o contemplado e a contemplação. É por isso que nesse nível  não há sujeito ou objeto, embora já exista espírito e matéria: esta é repetição e aquele é diferença que contempla esta repetição. A repetição do contemplado é inseparável do espírito que o contempla, de tal  maneira que a repetição ocorre numa região que não se pode definir como subjetiva ou objetiva, pois está aquém destas distinções.

Em Espinosa, as ideias sempre nascem de ideias. Sócrates definia a filosofia como maiêutica, isto é, como arte de  partejar ideias. Partejar é fazer nascer, trazer ao mundo, à vida. Contudo, para que uma ideia possa ser partejada, é preciso que ela tenha sido, antes, fecundada. Na Grécia, Fecundar era a característica que expressa  Eros, o Amor. Não por acaso, em Espinosa o Desejo recebe o nome de “cupiditas” : relativo a Cupido/Eros.  Antes de a  ideia poder ser  intuída, ela já está contida dentro de outra ideia, e esta dentro de outra, e esta ainda dentro de outra...de tal maneira que   todas estão dentro da Ideia de Deus que lhes é imanente, pois todas são expressões diferentes  dessa mesma Ideia Infinita: Amor Infinito cujo fecundar também é Infinito . 

Em Espinosa, é a intuição o procedimento de unir cada ideia singular à Ideia da qual todas são a expressão. E quanto mais adequadamente cada ideia singular expressa a Ideia Infinita que lhe fecundou , mais cada uma é adequadamente a ideia do corpo ao qual ela está ligada, e mais o desejo , concernindo ao espírito e ao corpo, se torna potência de singularização ética, política e clínica.






terça-feira, 21 de maio de 2024

Espinosa : modos de existência e modos de vida

 

 

No texto “Espinosa e as três éticas” ( capítulo do livro Crítica e clínica) ,Deleuze distingue modos de existência de modos de vida. Os modos de existência são construídos a partir de fora, de tal modo que o sentido da vida fica subordinado a um campo de afecções e suas ideias confusas. É uma vida do primeiro gênero do conhecimento, uma vez que esse gênero de conhecimento suscita um modo de existência que lhe seja adaptado. Na verdade, o primeiro gênero não é bem conhecimento, ele é imaginação ( no sentido de que ele é um mundo que gira em torno das imagens , incluindo a imagem narcísica de si , a imagem  redutora dos outros e a imagem reativa do mundo).

Já os modos de vida são construídos a partir da compreensão que vida não é apenas a vida biológica. Há vários sentidos para a vida, incluindo a vida do pensamento. Construir um modo de vida não é apenas existir, construir um modo de vida é pensar o existir e agir para que o nosso existir, incluindo o existir coletivo,  seja a expressão de um modo de vida que também seja um modo de pensar, um modo de sentir, um modo de ver, um  modo de ouvir, um modo de cuidar e cuidar-se.

Um modo de existência se explica pelo modo finito em questão e suas afecções/imaginações que lhe circunscrevem uma “bolha” existencial ,  já um modo de vida é sempre expressão , aqui e agora, de um infinito que se expressa de múltiplas maneira e em infinitas formas de vida, abrindo e horizontando, para dizer como Manoel de Barros, cada modo de vida que, construindo-se, afirma a si e ao infinito.  

Um modo de vida se constrói a partir do segundo e do  terceiro gêneros de conhecimento, pois o conhecimento nada é se não for o meio para a construção de um modo de vida potente  , ativo, pensante e senciente.






sábado, 18 de maio de 2024

tangentes e linhas de fuga

 

Manoel de Barros define sua poesia como uma “Estética da Ordinariedade”.  Mas a “ordinariedade” de que fala Manoel nada tem a ver com o   “ordinário” das coisas ética e politicamente infames. 

Curiosamente , a  ideia de “ordinário”  vem da matemática, assim como  a noção de “extraordinário”. Na matemática, os “pontos ordinários”  de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que , como massas destituídas de singularidade, ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que os três “pontos extraordinários” ou “singulares” localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: os que ocupam os extremos da linha.

Mas  a relação  entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Tal figura geométrica parece destituída de pontos extraordinários ou singulares. Geralmente se  costuma dizer que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?

Porém  o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma “tangente”.

“Tangente” significa: “ o que toca ou afeta”. Na matemática, a tangente é uma linha que , vinda de fora, toca o círculo, compartilhando com ele um mesmo ponto, abrindo-o.

Na vida há tangentes também: uma tangente pode ser qualquer coisa que, como “linha de fuga”,  potencialize o sentir e  o pensar, desabrindo-os. Em Manoel de Barros, “desabrir” é abrir-se para horizontes , externos e internos.

“Linha de fuga” não é fugir de algo, mas fazer fugir algo que estava aprisionado : ao desfiar  o uniforme de louco que o poder normalizador lhe punha, Arthur Bispo do Rosário queria encontrar o fio que o uniforme aprisionava , para assim libertar o fio da forma acostumada, libertando assim a si mesmo,  e com o fio livre  bordar sua história nunca antes contada.

Um fio que liberta e cura  se torna linha de fuga e tangente para bordar Potências expressivas que também se tornam remédios  para a saúde da mente.

 Toda tangente abre o que está fechado, deixando entrar luz, ideia  ou ar, sobretudo o “ar do possível” para a gente não sufocar , como dizia Foucault . 

No encontro da tangente  da poesia com o círculo de nossa vida , este é tocado e desabre, o suficiente para um pouco de  vida de novo entrar. 




 (Aberto, o “Manto” de Bispo do Rosário lembra as asas de uma borboleta nascida da tangente curativa , cuidativa e emancipadora  da arte. Foto de Walter Firmo)





 


sábado, 11 de maio de 2024

Manoel de Barros e Miró: as desaprendizagens

Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com um pintor:  Miró.

Para aprender toda a potência pensante que há na  poesia,  é necessário desaprender as cartilhas e tabuadas  cujo poder  produz apenas mentes “acostumadas”. Foi essa “desaprendizagem” necessária que o poeta aprendeu com o pintor,  para assim nos mostrar que poesia não é somente  versos, rimas   e palavras , poesia também “pode ser que seja fazer outro mundo”, ensina-nos  Manoel.

Esta foi a lição que o poeta aprendeu :

Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Tomado por uma profunda crise, Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho de Miró  era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ,  porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda .

A tal “mão invisível do mercado” é mão direita que apenas sabe contar dinheiro, ao passo que a mão que doa , partilha e se solidariza é sempre mão esquerda.

A mão direita gosta de segurar armas e revólveres para fazer ameaças , mas pincéis, giz, canetas  e lápis, sobretudo os de cor, quem os segura para nos libertar é sempre a mão esquerda educadora.

A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.



                                      ("O jardim"/ Miró)





sábado, 4 de maio de 2024

"tempo, tempo, tempo..."

 

A inesgotável obra “Em busca do tempo perdido” , do escritor e pensador  Proust, fala do mais necessário dos aprendizados, um aprendizado tão necessário quanto difícil.

Não é um aprendizado a ser feito por crianças a serem educadas , tampouco por  adultos que pouco estudaram.

O aprendizado de que trata a obra  deve ser buscado por  alguém que sabe usar as palavras e se formou aprendendo  teorias, mas que se dá conta que as teorias já conhecidas e sabidas às vezes já não dizem nada, nada ensinam.

Esse aprendizado , portanto, não é sobre palavras , ele é um aprendizado sobre o tempo. Mas não se trata do tempo preso na gaiola  abstrata  do relógio , e sim do tempo concreto : duração  intensiva  da vida e do mundo.

 Enquanto ignorarmos esse aprendizado, perderemos mais do que o  tempo:  perderemos a nós mesmos.

O primeiro aprendizado vem acompanhado da angústia em perceber que o “tempo que se perde” somente sabemos dele depois que ele passa : o “mesmal” do viver resignado nos faz perder presentemente o tempo, sem disso nos darmos conta.

O segundo aprendizado pode vir  das relações afetivas, enquanto  projetos em comum de futuro. Quando esses projetos de futuro comum malogram e não vão em frente, tornam-se “tempo perdido” que , apesar de passado, ainda pesa no presente. Essa vivência  do “tempo perdido” não se faz sem decepção e dor. É por isso que o caminho da aprendizagem pode ser , no seu início, doloroso.

Até que pode advir um terceiro aprendizado : o do “tempo que se redescobre”. Aqui quem nos auxilia é  uma memória artista e clínica. Essa memória pode nos ensinar  que no passado vivido havia realidades  que  não vimos, talvez porque nos cegassem o ciúme , a insegurança ou o desejo de posse.  No seio do tempo perdido a memória não ressentida redescobre lição nova : não podemos mudar o passado, porém podemos evitar que ele seja um peso para o nosso presente.

A última etapa da aprendizagem é o “tempo redescoberto”. Esse tempo é redescoberto aqui e agora, e não no passado. Ele não é futuro planejado , ele é o amanhã criado a partir de agora, como antídoto à perda presente do tempo  e libertação do tempo que passou .

No sentido bem amplo da palavra, e dito de maneira simples, o tempo redescoberto é a descoberta da arte em seu sentido existencial-produtor, enquanto potência (re)criadora cuja obra a criar é a própria vida, pessoal e coletiva.

O tempo redescoberto nos ensina que redescobrir o tempo é redescobrir a nós mesmos, pois no tempo que se perde e no tempo perdido somos nós mesmos que nos perdemos.

Tempo que se perde , tempo perdido , tempo que se redescobre e tempo redescoberto : esse é o caminho do aprendizado cujo mestre é o tempo.

O filósofo  Deleuze assim resume a lição mais importante desse aprendizado: "O aprender vem antes do ensinar.”








Meu caro 4 de maio,

já posso te chamar de amigo?

Creio que já o somos,

 e não desde agora.

Não demora chega  o dia 5,

sei que você já precisa ir embora.

Agradeço-lhe como me acordou hoje:

com a mesma novidade de quando nasci,

apesar de já serem muitos os dias de aniversário.


Amo  rever-te,

saiba disso, amigo raro.

Espero te ver de novo,

no próximo ano,

logo ao abrir de maio.


Desejo ainda muito te receber,

sei lá ainda por quantos encontros.

Não te peço nada,

nem te faço promessa.

Nunca olho para suas mãos quando chega,

nelas não indago por presentes .

O que gosto é de apertar a mão da gente,

e mais uma linha na palma da minha mão escrever, 

sem pressa.


Sou muito grato pelo seu retorno ,

que seja sempre assim o seu chegar: novo.

Contigo aprendo a perdoar  o que passou,

reabrindo  no peito o horizonte  que sou.

Já reparou: tudo se enfeita de azul para te ver chegar,

 e mesmo o sol egocêntrico esquece seus dezembros,

para em plácida luz nos aquecer  e renovar.

 

Meu amigo 4 de maio,

sei que te escondes nessa data,

qual máscara a cobrir teu verdadeiro rosto, o tempo.

Não cobro teu retorno,

tudo farei para merecê-lo,

seja qual for minha idade.

Leve minha eterna gratidão a teu pai,

cujo nome é eternidade.


quarta-feira, 1 de maio de 2024

Dia do Trabalhador

 

1-Uma das palavras mais bonitas em grego é “eudaimonia”. No coração dessa palavra está o nome “Daimon”, pois “eudaimonia” é : “estar na companhia de um bom Daimon”.  Em português,  “eudaimonia” é traduzida pela palavra  “felicidade”.

Para os gregos, felicidade não é andar sozinho, mesmo que seja em carruagem de ouro; felicidade é andar na companhia de um “bom Daimon”.

Na mitologia, o Daimon não mora no inacessível e aristocrático Olimpo, o Daimon mora onde houver a necessidade de uma travessia, pois ele é a divindade dos caminhos, sobretudo  dos caminhos que precisam ser criados, mesmo que no deserto  ou para escapar de labirintos.

Para os gregos, assim como para nossos povos  indígenas, a felicidade não é propriedade egoica de um indivíduo, a felicidade é agenciamento coletivo: impossível o indivíduo ser feliz se a pólis está triste, tampouco pode o indivíduo ter saúde com a pólis  doente.

“Companhia” vem de “com-pane”. E “pane” é, em português, “pão”. Assim, fazer companhia é  saber “dividir o pão”. Companheiros: “aqueles que dividem o pão”.

Há o pão que alimenta o corpo, como aquele que faltou ao povo e trouxe o sofrimento  da fome. A elitista Maria Antonieta, zombando, disse: “Não têm pão? Que comam brioches!”

Nasceu então no povo a fome por outro pão: o pão da justiça social , pão que  tem por  fermento a arte, a educação e a poesia,  pois poesia também é  pão que alimenta a luta: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, ensina Manoel de Barros.

2- No livro “1984”, George Orwell  mostra que  uma das táticas empregadas pelo  poder para se perpetuar (seja o poder fardado , seja o poder do dinheiro) , é apagar certas palavras dos discursos e práticas, para assim tentar apagar também a realidade que tais palavras  designam.

Parece estar acontecendo isso com a palavra “trabalhador”, que o poder do Capital tenta apagar colocando no lugar “colaborador” ,isto é, o “colaborador” como aquele que colabora com o  Capital, este mesmo Capital que solapa os direitos de quem trabalha.  Com isso,  propaga-se  a ideologia de que o outro trabalhador não é um companheiro, mas um “competidor”.

Neste dia  em que se comemora o “Dia do Trabalhador”, todos os filmes do diretor Ken Loach são uma boa dica. Deixo aqui a sugestão de um filme dele, o imperdível “Terra e Liberdade” , cujo título também poderia ser “Os dois pães” .