O poeta Manoel
de Barros dizia ser “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de
João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza “letral”. Sua poesia nos mostra que o
Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, continua
vivo e faz viver quem o lê.
Talvez
a saudade que sentimos do primeiro Manoel possa
ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive no coração de seus
versos, onde está cada vez mais vivo,
sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”,
escreve Manoel.
O “letral” não é
a letra morta no papel. O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a
palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”, explica-se o
poeta.
O primeiro
Manoel nos deixou com 97 anos. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem?
Talvez não se possa medir essa existência em passagem de tempo. Pois o
Manoel-letral é só nascimento e “afloramento
de falas”, incluindo as falas múltiplas e heterogêneas dos seres diferentes que o poder
do “mesmal” tenta calar.
Muitos desejam
conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se
tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu
existir”, confessa o poeta.
A imagem do primeiro Manoel fixou-se no
velhinho sorridente e simpático. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer
dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse
Manoel-letral que vive em sua poesia.
De minha parte,
o Manoel-letral ora é um passarinho, ora é um menino:
"inventei um menino levado da breca para me ser”, diz Manoel. Esse menino,
afirma o poeta, é “a criança que me
escreve”.
O tal menino
disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta,
enquanto você me inventa”. É esse
devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas
de livros.
“Não, não há criação triste”, dizia Deleuze
reproduzindo uma lição que aprendeu de Espinosa. As paixões tristes , frutos
dos “maus encontros” que nos tiranizam, diminuem nossa potência de existir; já
as paixões alegres nascidas de bons encontros aumentam nossa potência de existir. É sempre a
existência o critério para distinguir
alegria e tristeza, potência e impotência, liberdade e servidão.
O Manoel que
viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o
Manoel-letral não é fruto de tristezas-impotências, pois mesmo estas são
transfiguradas pela criação poética e se tornam poesia, isto é, canto da palavra que cura e
liberta: “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”, ensina Manoel.
Artífice de bons encontros potencializadores, Manoel-letral conquistou mais do que muitos
anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :
“O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.”
“Eu sou dois seres.
O primeiro fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral.
(...)
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.”
(Manoel de Barros, poema “Os dois”, livro Poemas rupestres, p. 45)
Obs: este texto aqui do blog é parte de um artigo que escrevi ( a convite do amigo, poeta e escritor Paulo Vasconcelos). Quem quiser saber onde se encontram em Manoel os versos que cito aqui, é só conferir no artigo:
http://saopauloreview.com.br/manoel-de-barros-em-um-ensaio-e-uma-homenagem/