terça-feira, 2 de junho de 2020

os estoicos e o precipício




                                                                                                                       Poesia é voar fora da asa.
                                                                                                                                Manoel de Barros

Vejo uma mesa retangular de madeira. A mesa poderia ser de plástico ou ferro, mas é de madeira.A mesa possui uma borda, um limite.O que é essa borda ou limite? Segundo os antigos estoicos, a borda ou limite é onde a madeira deixa de ser. Suponhamos que fôssemos seres bem pequenos, como aqueles seres humanos pequeninos de um desenho antigo, imaginemos que estamos caminhando sobre tal mesa de madeira e vamos em direção ao ponto onde ela termina. Veríamos que para além da madeira onde pisamos há um vazio, um precipício. À medida em que avançamos do centro da mesa à sua extremidade, o precipício fica mais perto. Suponhamos que a mesa tem 1 metro quadrado. Chegamos ao último centímetro dela, depois ao derradeiro milímetro...Contudo, esse derradeiro milímetro ainda não é o precipício, é madeira ainda. É para além do derradeiro milímetro como última parte da madeira, é para além dessa parte mensurável, embora diminuta, é para além dela  que está o limite da mesa. O limite não é a madeira, mas onde a madeira da mesa termina.
A mesa é feita de madeira. Mas a borda/limite é feita de quê? A borda não pode ser feita de madeira, pois de madeira é feita a mesa. A madeira é um corpo. Mas o limite não pode ser um corpo: a borda começa onde o corpo termina.
A fôrma de empada recebe a massa crua. Após assar, retira-se a fôrma de metal, e o que fica?A empada é a massa mais a ausência da fôrma. Contudo, a forma ou contorno da agora empada não é a ausência da fôrma, ela é o ponto onde a massa deixa de ser.É isto a empada: uma forma nascida da ação de um corpo ( a fôrma de metal) sobre a massa.
A borda ou limite não é um corpo, mas sim um incorporal, dizem os estoicos. O incorporal não é um nada, tampouco é um corpo, claro. Os estoicos dizem que somente os corpos são. O incorporal é um "extra-ser". "Extra" significa: "o que existe fora, além". O incorporal existe também mas como realidade além do corpo, mas que a ele permanece ligado, como o contorno permanece ligado à madeira de que é feita a mesa.
Ser um corpo é possuir a capacidade de agir ou de ação. Mas um incorporal não age. Incorporal, a borda não age, pois só os corpos podem agir. Se o limite não age, o limite não pode ter o poder de limitar, já que limitar é uma ação. Lembremos essa lição primeira dos estoicos: somente os corpos podem agir uns sobre os outros. Somente um corpo pode limitar outro corpo, apenas um corpo pode agir sobre outro corpo, tal como o corpo do serrote que serrou um pedaço de madeira e fez dele uma mesa, ou assim como o corpo da fôrma que agiu sobre a massa. O resultado dessa ação não é a massa: o resultado é a massa existindo com um contorno. Esse contorno não é a fôrma ou a massa, mas algo que somente existe na superfície dos corpos. É o incorporal que faz os corpos terem uma superfície.Por motivos utilitários dizemos que a superfície da mesa é onde colocamos os copos e pratos. Contudo, também é superfície dela a parte debaixo da mesa, bem como as suas laterais, por mais delgadas que sejam.
Platão achava que é a forma ou limite o que verdadeiramente existe: eles seriam modelos imutáveis para as coisas corpóreas em constante mudança. Sob a perspectiva dos estoicos, porém, o limite é um efeito ou resultado da ação de um corpo sobre o outro. O corpo que age é ativo, o corpo que sofre a ação é passivo.Mas o limite , por não ser um corpo,  não é ativo ou passivo: ele é impassível. O limite da mesa não é a ação presente  do serrote enquanto essa ação ocorre na fabricação da mesa, o limite é o resultado de ter havido a ação do serrote. Todavia , o limite mesmo não é uma ação ou paixão. Ele não é um ser ou padecer, ele é um extra-ser. O mais estanho é que os extra-seres podem entrar em relação uns com os outros, embora eles não possam ser causa ou efeitos uns dos outros, pois somente os corpos podem ser causa : ao agir sobre a madeira, o serrote faz com que ela deixe de ser madeira e se torna mesa. A madeira não é destruída, ela passa a ter novo sentido, um sentido incorporal : "mesa".
O exemplo mais frequente dessa relação entre os incorporais  acontece exatamente na linguagem em sua vinculação com as chamadas coisas. Digo a palavra “mesa”, emito um corpo sonoro que não é um grito nem um puro grunhido, mas um corpo sonoro com  limites fonemáticos. E quando digo “mesa” não estou a dizer madeira, embora a mesa seja feita de madeira.O sentido não é som, o corpo sonoro ou significante: o sentido é um incorporal.
Um vaso de cerâmica possui um limite ,uma forma. O limite é onde a cerâmica deixa de ser cerâmica, realidade meramente física, e se torna vaso. O vaso não acrescenta nenhuma propriedade nova ao ser físico da cerâmica, mas lhe faz sobrevir um novo sentido: vaso. Contrariamente ao  que pensava Platão, os estoicos não acreditam que exista o vaso em si como forma pura, pois todo vaso é o limite que acompanha um corpo. O vaso de cerâmica só é vaso se houver o corpo do qual ele é um limite, um intangível. Quando dizemos a palavra “vaso”, é o sentido incorporal expresso pelos sons que indica  o incorporal que faz de uma cerâmica um vaso. Se não houvesse esse extra-ser acompanhando os seres, jamais do ser do som nasceria o incorporal do sentido. O intangível não é o etéreo ou místico, o intangível é a borda ou limite das coisas, sejam essas coisas corpos do mundo ou o corpo sonoro da linguagem. Quando nossa mão toca o vaso de cerâmica, ela pode tocar apenas a cerâmica, não o limite intangível que faz daquela cerâmica um vaso. Não podemos pegar nunca em um vaso, a não ser com algo que em nós também é intangível. O intangível acompanha o tangível assim como a sombra que acompanha o corpo, ou como a água que acompanha a onda que é feita de água, mas que acrescenta à água uma forma: a forma-onda.
Nos seres fabricados o limite é um contorno que não é exatamente estático, mas impassível. Somente os corpos podem ser estáticos ( parados) , isto porque eles também podem se mover. Porém  o incorporal não se move, embora ele possa fazer mudar de natureza o corpo do qual ele é o sentido.Um corpo pode aumentar ou diminuir de tamanho, pode se mover ou ficar estático. Contudo, algo nele muda,  não fisicamente, quando o sentido que lhe atribuímos se altera em razão de uma nova relação que o corpo faz  com outros corpos. Uma coisa é o vaso de cerâmica usado pela tribo, outra é o mesmo vaso exposto em uma exposição museal. Do ponto de vista corpóreo, não há alteração, embora do ponto de vista incorpóreo não se trata do mesmo vaso: foi-lhe acrescentada uma diferença, pois a diferença mais potente sempre é da ordem do intangível. O impassível, portanto, não é o estático, tampouco o morto. O impassível nos faz entrar no mundo do extra-ser: nas coisas ele é acontecimento, na linguagem ele é o sentido.Quando o serrote serrou a madeira, esta foi uma ação feita pelo serrote e sofrida pela madeira. Contudo, virar mesa não é fazer desaparecer a madeira, e sim fazer vir o acontecimento que é o testemunho presente de uma ação feita.Ou melhor, o presente é onde está o corpo da madeira, já o tempo é um incorporal jamais presente.No relógio, essa ilusão feita para corporificar o tempo, quem se move são os ponteiros, que nunca saem do presente, como todo corpo ou ser, mas não se move o tempo.São os ponteiros do relógio que se movem, não o tempo. O tempo é também um incorporal.
Nos corpos vivos não há limites, mas limares, membranas. Quanto mais um ser corpóreo persevera enquanto corpo a partir de uma membrana, mais esse corpo está em uma relação íntima com o intangível tempo.É o corpo que envelhece, não o tempo.São os ponteiros que correm, não o tempo.Somos nós que passamos, não o tempo.
E o que é nossa alma?
Para os estoicos, até mesmo a alma é um corpo,  um corpo muito sutil. Por exemplo, quando vemos a mesa, notamos facilmente  o corpo do qual ela é feita , o corpo da madeira, pois a madeira não é um corpo sutil, é um corpo  extenso, contínuo. Porém, nossa alma é um corpo tão sutil, que ela possui uma extensão quase que imperceptível, e é por isso que a imaginamos incorpórea, embora ela não o seja. Por ser de extensão tão diminuta, suas bordas estão aquém até mesmo do que nossos olhos corporais podem ver.Talvez os estoicos intuitivamente já estivessem pensando naquilo que hoje chamamos de neurônios, pois quem os vê? Embora o resultado de suas múltiplas conexões seja exatamente o ver (bem como o mais extraordinário dos incorporais: o pensamento),  ninguém vê os neurônios. Nem tudo o que é corpóreo pode ser visto.
       Assim, dizem os estoicos,  não é na alma que o pensamento está; o pensamento está  para além do ser dela, como sua membrana ou extra-ser. Pensar não é contemplar ou temer o precipício, tampouco se jogar nele. Pensar é um transpassar e vencer o precipício, voando. 
       Aqui, apresentamos quatro incorporais ou extra-seres ensinados pelos estoicos: o contorno, enquanto extra-ser dos corpos; o sentido, como extra-ser ou incorporal da linguagem; o tempo, extra-ser e incorporal que não pode ser confundido com o corpo dos relógios e o passar dos anos; e o pensamento, extra-ser da vida e do próprio mundo.




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