domingo, 30 de abril de 2023

virtude, vício, hábito

 

                                            VIRTUDE, VÍCIO E HÁBITO[1]

 

A palavra virtude costuma ser traduzida por “hábito”. Em sua ética, Aristóteles  ensina que a palavra “hábito” também é uma das traduções para “éthos”. Assim, a questão dos hábitos está profundamente enraizada nos comportamentos humanos, tenhamos ou não consciência disso.

É conhecida a distinção feita por Aristóteles entre virtudes e vícios. Aqui, a palavra “vício” não deve ser entendida no sentido do senso comum, como o vício de beber, o vício de fumar, o vício de comer...ou ainda o vício de consumir, o vício de ver televisão, o vício de teclar. Na verdade , todos esses comportamentos identificados pelo senso comum como vícios, todos esses vícios têm sua origem no campo ético ou de formação do caráter, já que, segundo Aristóteles, são as virtudes que formam o caráter. Ou seja, o caráter não é genético, não nascemos com o caráter já formado: o caráter é formado individual e socialmente, uma vez que é na relação com o outro que desenvolvemos , desde a infância, o  nosso caráter .

Sabe-se que Aristóteles recomendava que as crianças tivessem aula de música desde a infância, pois o filósofo  considerava a música fundamental na formação do caráter do futuro cidadão ( “politikos”). A música desperta e potencializa o ouvir: retira-o da passividade e o torna ativo. E melhor fala e argumenta aquele que sabe , primeiro, ouvir ( mesmo que seja para discordar e refutar  aquilo que ouve).

Há dois tipos de vícios: os gerados pelos excessos e, ao contrário, os motivados  pela carência ou falta. Já a virtude é o “justo meio” entre o excesso e falta. Mas o que é esse “justo meio”? Como alcançá-lo?

Enquanto virtude, a coragem é o justo meio entre sua carência e seu excesso. A carência de coragem pode ser vista nos comportamentos covardes, já o excesso de coragem se mostra nos comportamentos temerários. Se alguém deseja correr uma longa maratona porém não se prepara o suficiente e ignora seus limites, querer corrê-la até o fim e a todo custo não é coragem, é temeridade que põe a própria saúde em risco.

O conhecimento também é uma virtude ( uma virtude “teorética”[2]). O vício do excesso de conhecimento é, segundo Aristóteles, a sofística ;  já a carência de conhecimento pode ser vista no vício da “ignorância cheia de si”.  A “ignorância cheia de si” nada tem a ver com a ignorância socrática ou com a “Douta Ignorância” de Nicolau de Cusa. A “ignorância cheia de si” ignora a si mesma e pratica o que hoje se chama de “negacionismo” da ciência. Enfim, a “ignorância cheia de si” é o Mundo da Caverna  e sua reativa/ressentida doxa ( opinião).

Mas o “justo meio” entre o excesso e a carência não é como o ponto no meio de uma linha. O justo meio é como o pico de uma montanha: é difícil alcançar...Os vícios, por sua vez, são como os lados da montanha: pela força da gravidade e do peso, os vícios puxam para baixo. É por isso que para alcançar o cume é preciso exercício sobre si, para assim tentar vencer o peso que puxa para baixo, no sentido literal e simbólico.

Porém, não apenas as virtudes são hábitos,  os vícios também o são. Ou seja, toda virtude é um hábito, porém nem todo hábito é uma virtude. A coragem é um hábito, mas a covardia também o é. Ora, tudo o que é hábito é adquirido. E aquilo que se adquire somente é mantido mediante um esforço. É preciso esforço para ser corajoso, e esforço também é requerido para ser covarde. Enquanto o corajoso emprega sua força para alcançar um bem, o covarde aliena sua força e atrai, para si e para os outros, o mal. Esta é uma das razões da dificuldade para se vencer o vício:  aquele que tem o vício mantém o vício vivo pelo modo como se comporta na vida, diante de si e dos outros. Pois o vício que se mostra num comportamento danoso visível está alojado também na mente. Para mudar um comportamento vicioso, é preciso mudar a maneira de pensar. E pensar não é apenas teorizar, o querer também é maneira de pensar, isto é, o querer é uma maneira ou modo de a mente se comportar.

Mas há duas espécie de esforço : o ativo e o reativo. O esforço ativo é sempre criativo, ao passo que o esforço reativo é destrutivo. As virtudes são (auto)esforços que  criam  o caráter, já os vícios são esforços para destruí-lo ou não deixá-lo se formar, e isso com a complacência, ou “servidão voluntária”, daqueles mesmos aos quais  os vícios apequenam e despotencializam, sendo de si mesmos o carrasco e a vítima.

Assim, a primeira atitude para se vencer os vícios é compreender que aquele que os tem de alguma forma os cultiva, fazendo deles um hábito, isto é, um condicionamento que não é apenas individual, mas igualmente relativo aos grupos aos quais se pertence . Não apenas um indivíduo pode ser covarde, um grupo também pode o ser. E um alimenta o outro , de tal maneira que o hábito se torna costume, “normalidade reativa”, em suma, palavra de ordem.

Um grupo covarde está sempre a se ajoelhar diante de seus próprios carrascos, fazendo culto cego à obediência. É dos grupos covardes que os tiranos extraem sua força, pois a “força” do tirano é a fraqueza. A mente tomada por hábitos reativos julga que seu modo de ser é o “normal”, de tal modo que ela cria sua própria realidade paralela, alienada. Já as virtudes ativas também ensejam coletividades corajosas, pois as virtudes unem. Covardia não une, ela arrebanha.

Em sua ética, Espinosa retoma e renova esse tema das virtudes. Na quinta parte de sua Ética, por exemplo, ele ensina que nada se conquista se não vencermos certos hábitos mentais que nos fazem repetir , no cotidiano, comportamentos que nos despotencializam e impedem que conquistemos graus de potência.

Mas há uma diferença fundamental de Espinosa em relação a Aristóteles, e aqui  abordaremos  esse tema de maneira bem simples, uma vez que não há como aprofundá-lo no curto espaço deste texto-aula.

Espinosa não parte da dicotomia excesso-falta. Para ele, potencializar uma virtude nada tem a ver com excesso. Potencializar uma virtude é fazer dela um meio, como uma ferramenta ou causa eficiente. Quanto mais potente uma virtude, mais ela se torna meio de produção de ideias , de afetos  e de ações não em excesso, mas em amplidão e pluralidade. Além disso, ensina Espinosa, uma autêntica virtude nunca é carente de si mesma ou falta a si mesma. Para Espinosa, enfim, o único vício é o da impotência.  

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz .

[2] Aristóteles distingue “virtudes teoréticas” e “virtudes éticas”. Contudo , essas virtudes são complementares, mostrando assim que não existe conhecimento verdadeiro que não seja, também, uma ética do conhecimento.







sexta-feira, 28 de abril de 2023

ética: o arco, a flecha e o alvo

 

A palavra “virtude” vem de “virtu”: “força”. Não a força meramente física dependente dos músculos, pois a força física pode ser vil e bruta, porém nunca é vil-bruta uma virtude.  Pois a virtude é a força que forma o caráter.

As virtudes pertencem  à ética. Infelizmente, muitos confundem ética com moral,  moralizando assim   as virtudes. Porém ética não é o mesmo que moral.

Nietzsche , por exemplo, condena a moral-conservadora , mas há nele uma ética como arte da existência ; não há em Espinosa uma única linha moral, porém toda a obra dele é a defesa de uma ética: a ética da Potência; Bakunin denunciava a hipocrisia da moral liberal-burguesa, e agia movido por uma ética revolucionária.

Originalmente, “virtu” designava a força que nasce da fibra  tensa do arco que lança longe as flechas. Para que o tensionar das cordas-fibras  não fosse em vão ou desperdício de força, era preciso ter um alvo  antes de tensionar as fibras do arco.

Virtu é a força potencial capaz de  produzir uma ação e alcançar um alvo. A virtude é uma força potencial da alma . Coragem, justiça, amizade...são virtudes : são potências éticas cujo alvo a alcançar é a vida digna.

A virtude é a potência que nasce do tensionamento da alma , tensionamento esse expresso igualmente  nas fibras do corpo.

In-tenso: o que vive no interior de uma tensão. Ser intenso não é ser agitado, ser intenso não é meramente pôr em ação os músculos, e sim tensionar as fibras da nossa alma quando ela pensa e sente, para que a ação do nosso corpo  seja sempre flecha que alcança um alvo, sem precisar se impor à força.

Para os estoicos, não apenas a coragem, a justiça e a amizade são virtudes, também é uma virtude a humanidade. Pois  humanidade não é  a quantidade numérica dos seres humanos que habitam a terra, humanidade é uma virtude ética.

Assim como existem os homens destituídos de coragem (os covardes), também existem aqueles destituídos de humanidade. A virtude da humanidade é fundante: quem não a possui ou cultiva também não tem coragem, justiça, amizade. Pois a humanidade é a virtude-útero  da qual   todas as outras virtudes nascem.

 

Não é em meras palavras ou teoria que as virtudes são postas em prática, elas são postas em prática na ação concreta, e também é por aquilo que alguém faz que podemos perceber a ausência delas: a flecha dos sem humanidade e sem caráter  sempre erra o alvo e retorna apontada para eles, denunciando-os.

Assim como o berimbau  somente produz música com suas cordas tensionadas , inspirando o capoeirista à luta, o coração também  só consegue impulsionar o sangue vital porque suas fibras são tensas; há fibras igualmente  no cérebro, de tal maneira que pensamentos potentes são sempre como flechas que nunca erram o alvo.

É por isso que se  diz que nada se alcança se não houver fibra: o caráter ético-potente não tem músculos ou ossos, porém ele é todo fibra.




Coloquei a capa do livro de Espinosa apenas como referência da postagem. A imagem da capa é a do sinete com o qual Espinosa assinava suas cartas: a letra B é de  Benedictus, e S é de Spinoza, embora Espinosa também assinasse Bento de Espinosa, a forma afetiva ligada à sua origem portuguesa (  a assinatura   que  prefiro).  “Caute” significa “cuidado”: não no sentido de medo que impede a ação, e sim do cuidado/proteção que precisamos ter ao agirmos.






terça-feira, 25 de abril de 2023

chico e os cravos

Antes de ouvir Chico, eu o li. Antes de ouvi-lo como música, eu o li como poesia  que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. Isso aconteceu na escola, numa época em que ainda pairava sobre nós a ditadura.

Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos. Eu já sabia ler livros : livros de história,  de geografia e até livros de literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver o intelecto. Foi a poesia presente na canção popular que me fez aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas os mundos que ela expressa: mundos por descobrir.

Li pela primeira vez Chico graças a uma querida professora de Língua Portuguesa e Literatura do antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que, na parte de interpretação de textos, empregavam os elitistas “parnasianos” , a corajosa professora resolveu adotar um livro heterodoxo, plural: o livro apresentava as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção .

Àquela época, tais festivais ainda eram recentes; porém , por ser  bem pequeno quando eles aconteceram, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro fazia o que Foucault chama de micropolítica da resistência.

Quando li “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é libertar-se  de um território costumeiro, ordinário, “mesmal”.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha, sobretudo  as cartilhas que tentam clicherizar  nossa percepção, palavras e maneiras de pensar e agir.

Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : também  me reterritorializava num território novo composto de sensações e afetos que não eram apenas pessoais.

Essa desterritorialização me ampliava para além dos muros da escola: me lançava no mundo, me inseria na pólis, abria meus olhos para o universo, o de fora e  o de dentro.

Foi a partir dali que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muito menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam  nos adestrar.

Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali que comecei a descobrir  em mim, ainda em embrião, o filósofo.

Quando o pensar e o sentir  se tornam  duas asas abertas para voos de (auto)descobertas, experimentamos aquilo que Deleuze assim chamou: pop’filosofia!








 Hoje, 25 de abril: dia em que o povo português derrubou a ditadura de Salazar . A "Revolução dos Cravos" é comemorada não apenas pelo povo português, mas por todos aqueles que combatem toda forma de fascismo, lá e aqui ( meu avô português veio para o Brasil para não servir a Salazar)








-Filme "Capitães de Abril" ( sobre a Revolução dos Cravos"):



segunda-feira, 24 de abril de 2023

o tempo quando

 

                                              

Sêneca[1] dizia que muitos se preocupam em “como” viver, porém se esquecem que o mais importante é o “quando”: quando viver? A resposta a essa pergunta  nunca pode estar no passado, na mera recordação de se ter vivido; tampouco no futuro, na expectativa de que, enfim, se começará a viver.

A resposta adequada à pergunta “quando viver?” implica sempre o tempo presente: o agora. Viver é sempre agora, inadiável.

 A própria natureza nos ensina que o melhor “agora” é o agora dos começos: quando o dia nasce.

Como também ensina Goethe, um dia é o resumo de uma vida inteira. Nossa vida não começou na adolescência, ela começou quando éramos recém-nascidos. O mesmo acontece com o dia: ele não começa às 10h da manhã, tampouco ao meio-dia. O dia começa quando  o sol nasce.

Segundo Sêneca, o tempo de começarmos a viver  o dia deve  ser o mesmo de quando nasce o sol: o primeiro agora do nosso dia deve ser o mesmo agora  de quando nasce o sol partejado pela aurora.

Aprende a responder o “quando viver” , vivendo, aquele cujos agoras são precedidos por uma aurora, desde a primeira até a última hora do dia: e assim será , a cada dia novo  , como o sol, recém-nascido, não importando a idade que se tenha e o quanto se tenha vivido.  

 



[1] Sêneca, Cartas a Lucílio, “Carta 122”. 





domingo, 23 de abril de 2023

arte-se

 

                                                              

Ser uma pessoa não significa o mesmo que o “eu” ou o “ego”. A própria linguagem, instrumento do pensamento, nos ensina a compreender: cada um tem seu próprio eu, seu próprio ego; porém a linguagem dá vida a seis pessoas: as três do singular ( eu, tu , ele) e as três do plural ( nós, vós , eles). Não apenas o eu é pessoa, também o são eles, isto é, aqueles do eu diferentes. O nós também é pessoa: uma pessoa coletiva que diz mais do que o eu.

O eu diz mais quando por sua voz também falam as outras pessoas . Como um todo é sempre maior do que a mera soma de suas partes, o nós não é um agregado de “eus”, e sim um espaço cognitivo-afetivo que “desabre” o eu (“desabrir” é invenção do poeta  Manoel de Barros).

Não apenas o singular é pessoa, o plural também o é. Deleuze, por sua vez, afirma que existe ainda uma quarta pessoa do singular. Essa quarta pessoa é expressa por um pronome: o pronome reflexivo “se”.  

Uma coisa é quando o ego pensa, tal como no cogito cartesiano “Penso, logo [eu] existo”; outra diferente é quando se afirma : “pensa-se, logo há a existência do absolutamente infinito”, como ensina Espinosa. No pensa-se há um pensar que não é do eu, um pensar que é potência plural da própria vida. E a vida nunca é apenas pessoal, ela também é coisal, mineral, vegetal, animal, astral...

Por trás do pronome eu  há um nome que designa alguém, um ego; mas o “se” é sempre pronome que expressa um impessoal não egoico. Quando Van Gogh cria, ele tinta-se, ele obra-se, ele faz-se...Seu nome não designa mais um ego, uma vez que sua assinatura expressa um estilo. É preciso tornar-se impessoal para conquistar uma expressão singular no mais alto grau, na qual "vive-se" se torna sinônimo de   "arte-se".

Pensado dessa maneira, há em Fernando muitas Pessoas e pouco ego, ao passo que em Manoel de Barros há mais o “se” das coisas se fazendo nele, de tal modo que em seu poetar há “Um retrato do artista quando coisa”.  









desbravar

 

Em sua carta 121[1], Sêneca faz uma distinção entre conhecer uma determinada realidade e ser uma realidade. Todo conhecimento teórico se faz mediante conceitos. Os conceitos mediam a relação do pensamento com a realidade. Mas ser uma realidade é , como ensina  Bergson, colocar-se imediatamente nela, ou melhor , intuir-se como sendo ela.

Alguém pode ler um livro de ética e conhecer teoricamente  os conceitos de virtudes como justiça  e coragem, ainda que seja um injusto e covarde em suas práticas. Ou seja, alguém pode conhecer o conceito de algo sem ser ou possuir esse algo.

Mas ser justo e corajoso sabe-se por intuição. A intuição é um contato direto, sem mediação, com a realidade que se conhece , sendo. E quem é corajoso não se intui apenas corajoso, também se intui como parte de algo maior que o faz ser corajoso. Intuir-se como algo nada tem a ver com imaginar ser esse algo. Quem apenas imagina, não é; mas quem é , pensa-se e, pensando, age.

A intuição apreende a singularidade de uma determinada realidade e , ao mesmo tempo, a conecta a outra realidade ainda maior da qual a primeira é uma expressão singular. E essa mesma intuição  apreende igualmente  uma realidade ainda maior da qual essa realidade  segunda também é uma expressão, e não uma mediação.

Enquanto a mediação é um colocar-se “entre” , a expressão é trazer para fora ou desdobrar o que está implicado em uma existência, e que a faz ser o que ela é.

 A intuição apreende a parte e o todo, mesmo que desse todo não possa haver conhecimento conceitual ou mediação. Não há mediação que nos conecte com o todo, uma vez que intuir o todo requer despir-se de toda mediação. O todo não está apenas fora, ele também é imanente a cada singularidade que o expressa/desdobra.

Não se deve imaginar o todo como algo fechado, como um círculo. Uma floresta, por exemplo , é o todo-vivo que cada árvore singular sua expressa. O rio é o todo cujas partes são as margens, margens que podem avançar quando as chuvas alimentam o rio de céu. O rio não está contido pelas margens: as margens são apenas o limiar que expressam até aonde o rio pode ir,  expandindo-se.

Uma criança ainda não possui o conceito do que é existir, porém ela possui a intuição de existir. E é essa intuição que a leva a formular  perguntas sobre o seu existir , bem como o existir  de todas as outras coisas. Primeiro é preciso despertar a intuição, potencializá-la, pois somente assim o conhecimento que nascerá dela não será apenas algo abstrato e apartado da vida, um conhecimento que apenas se decora e não se vive.

Não se conhece a vida por mediações que nos separam dela, conhece-se a vida intuindo-a, ou seja, sendo-a, vivendo-a. Quem não tem a intuição de uma realidade às vezes substitui essa realidade por uma mediação abstrata  que apenas a representa , porém quando se parte da intuição pode-se depois construir meios de se aproximar dela: não apenas por palavras, mas também por  sons e tintas , como fazem o músico e  o pintor .

Essas aproximações expressivas devem ser  como o mapa que um desbravador fabrica para dar a conhecer  acerca da paisagem nova que descobriu e percorreu , não sem alegria, com sua mente e corpo.



[1] Sêneca, Cartas a Lucílio.




sexta-feira, 21 de abril de 2023

eros, psiquê & pneuma

 

Em grego, há vários nomes para a “alma”. O mais original  é “Psiquê”. Não por acaso, na mitologia  Psiquê era o nome próprio de uma jovem. Diferentemente do termo  “Razão”, princípio masculino , Psiquê não é conceito teórico, Psiquê é nome próprio.

Psiquê não é o nome  de apenas uma parte da alma, mas da alma inteira. Psiquê não era somente   raciocínio.  Ela era isso também e mais sensibilidade, intensidade, beleza , generosidade , coragem, coração e poesia.

 Enquanto a Razão tem a pretensão de  existir e pensar sozinha ( exemplos disso são o  racionalista Descartes,  com o seu ensimesmado “Penso, logo existo”, e o rígido  Kant  com sua “Razão Pura”) , Psiquê só se viu inteira quando encontrou sua companhia.

A companhia de Psiquê é Eros, o Amor. No seu sentido originário, a palavra “amor” nasceu  da reunião da partícula “a” com função privativa ( como em “a-fasia”, “não fala”) mais a abreviação da palavra  morte ( “mor”). Assim, “amor” é : “não morte” ( nos vários sentidos que a morte pode ter).

É na companhia de Eros , agenciada com ele, que Psiquê resiste à morte; e  é na companhia de Psiquê que Eros aprende que ele mesmo não sabe tudo o que pode.

A  “alma” possui ainda  outro nome: “pneuma”. Essa palavra costuma ser traduzida por “sopro”. Em latim, “spiritus”. Porém  pneuma, ou spiritus, não é  o sopro  que a gente expira  ( quando colocamos o ar para fora). Pois pneuma designa o ar  que a gente inspira, puxando o ar para dentro de nós .

 Quando a gente expira, é a gente que sopra; mas quando a gente inspira é a própria  vida  que sopra  dentro de nós, e assim nos conecta com a respiração da própria Mãe-Terra. Somente aqueles a quem a vida inspira e enche de ar vital  perseveram para  ser inspiração para os outros se encherem de vida também, por maior que seja o sufoco...

Quando o bebê sai do ventre e nasce,   o ato que inaugura seu respirar é o inspirar  que o enche de   vida. Esse inspirar inaugural não é feito apenas pelo seu pequenino pulmão, mas por todo seu corpo. Este é o sentido original de “inspiração”: “encher-se de vida para intensificar a vida que vive em nós”, para que não nos falte o ar do possível...

Na verdade, a tradução mais correta de “pneuma” não é “sopro”, e sim “brisa úmida”, também ideia feminina, como aquela brisa que , vinda do oceano, ao deserto estéril  vivifica.

É de um sopro potente assim , sopro que precisamos intensificar em nós pessoal e coletivamente, é de um Pneuma assim  de que fala o escritor Nikos Kazantzákis: "Por toda parte , estremecendo, sentimos o mesmo  Sopro gigantesco que, escravizado, luta por libertar-se".


( este livro é apenas uma sugestão de leitura)





 

poesia pode ser que seja...

 

“Solidão” é o aumentativo de “só”, enquanto que “sozinho” é o seu diminutivo. Nenhuma dessas duas palavras pode traduzir a experiência singular daquele que se encontra consigo, pois quem encontra a si mesmo nunca está em solidão ou sozinho.

“Os comparamentos matam a comunhão”, ensina o poeta Manoel de Barros. Somente aqueles que se acham sozinhos procuram explicação reativa  para sua solidão no comparamento com os outros, seja para se aumentar  vã e orgulhosamente ou, ao contrário, diminuir-se sem apreço a si.

Porém  quem  se encontra consigo também sabe encontrar o outro; e o verdadeiro encontro, como ensina Espinosa, nunca é colocar-se acima ou abaixo , mas sim ao lado . Aprendem a andar ao lado aqueles que sabem aonde ir.

Quando paramos de comparar também cessamos de medir ou julgar, e então aprendemos que não apenas a singularidade de cada um é incomparável, como também pode ser incomparável a realidade comum que criamos juntos , em comunhão.

Comunhão é o “dom” de dar realidade ao que nos é comum. Ter algo em comum não é ser homogêneo e sem diferença com o outro, mas potencializar nossas diferenças singulares na criação de um espaço comum também diferente: uma amizade diferente, uma educação diferente, um amor diferente, uma sociedade diferente.

 O comum é o espaço de diferenças incomparáveis que, agenciadas, propiciam (auto)descobertas.

Que pratica comunhão , comunga. O poeta Manoel  comunga com a linguagem, comunga com o corpo, comunga com o cosmos ... para assim comungar consigo mesmo e nos ensinar : “Os Outros: o melhor de mim sou Eles”.






quarta-feira, 19 de abril de 2023

19 de abril: dia da luta dos povos indígenas

 

Quando um guerreiro  tupinambá morria muita dor era sentida por todos. Mas era necessário ainda um último ritual a fazer.

Os tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados ,  no corpo e tampouco na alma. Eram fiéis à sua Mãe-Terra e aos seus Ancestrais.

De todas as práticas trazidas pelo homem branco-colonizador , havia uma a qual ele  se dedicava com  fanatismo , rogando até mesmo aos céus a ajuda no sucesso desse intento, como se fosse sua verdadeira religião. Trata-se da loucura  por acumular coisas, sobretudo propriedade e ouro a qualquer custo.

Os tupinambás nunca entenderam esse credo materialista e interesseiro: era esse desejo rasteiro que mais os punha em guarda contra o homem branco, nele não confiando.

Para a sociedade tupinambá, o valor de um ser humano  estava em dividir o que é seu. Eles só aceitavam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, e preferiam a morte a viverem sem dignidade e  honra.

A morte para eles não era o fim. A morte  era a última prova, especialmente para os chefes e guerreiros, isto é, para aqueles que viveram sendo reconhecidos pelos outros como   corajosos, generosos, sábios.

Para o povo tupinambá, a vida tinha dois lados, como as margens de um grande rio. E era o modo como viviam aqui que atestava se eles mereciam   viver lá do outro lado do grande rio na companhia dos Ancestrais.

Então, quando o guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo, colocavam junto ao corpo seu arco e flecha, bem como sua flauta feita do fêmur oco do inimigo vencido. Os tupinambás tocavam tais flautas quando viam o colonizador por perto, para que  as pernas dos colonizadores tremessem ao perceberem no que podiam se transformar ao enfrentarem o povo tupinambá...

Ao fim   da tarde , punham o guerreiro numa canoa e a  empurravam em direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre o mar  e o céu. O azul de ambos confirmava suas crenças: lá no horizonte se encontrava uma fronteira . Guardando essa fronteira estava o Guardião.

Se o guerreiro na canoa fora um dissimulado, um enganador que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que não deixaria o traidor fazer a travessia ao Mar do Céu. Mas se o guerreiro viveu com dignidade , o Guardião o deixava entrar para no céu ser eterna estrela.

No dia seguinte ao ritual, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se  achassem uma, choravam envergonhados por terem sido enganados por tal farsante. Mas se não achassem essa estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando  como estrela viva a protegê-los dos maus.

 





Esta música é cantada nos ritos de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá alimento e proteção ( e que precisa ser cuidada e preservada):




terça-feira, 18 de abril de 2023

a atenção

 

                                                            A  ATENÇÃO[1]

 

 

Para os estoicos e Epicuro, a filosofia é inseparável de certos “exercícios”. Ou seja, a filosofia é uma prática não exclusivamente teórica. Desses exercícios, o primeiro e mais importante deles  é a atenção ( prosochè).Sem atenção perseverantemente exercitada, não há pensamento e ação fortalecidos.

É um erro dizer: “não consigo prestar atenção nesse filme, ele é muito lento”, “não consigo prestar atenção nesse livro, ele não tem figuras”. Pois não é algo externo que deve despertar nossa atenção, somos nós mesmos que devemos despertar nós mesmos: toda prática de atenção é, antes de tudo, um prestar atenção a si. Quem depende de algo externo barulhento e agitado para ter a atenção despertada, é porque não presta atenção em si.

Meditar, por exemplo, é prática de prestar atenção na nossa respiração. Até o silêncio requer que prestemos atenção nele. E não há como alguém discordar ou concordar com  algo que o outro  diz  sem prestar  atenção não só nas palavras, mas  também nos gestos e até mesmo nos silêncios  do outro que nos fala.

Prestar atenção não é projetar “certezas” ou (pré)julgamentos, e sim abrir-se para aprender, vivendo. Pois de toda atenção faz parte também o corpo, uma vez que a atenção requer sensibilidade ativa e atuante.

Assim, prestar atenção não é querer encontrar nas coisas o que (pré)concebemos delas. Ao contrário, prestar atenção também é estar atento a essas ideias pré-concebidas que , dentro de nós, impedem que em nós entrem coisas novas.

A atenção não se faz no passado e nem no futuro, pois é sempre no presente, como abertura atenta a  ele, que toda atenção acontece e ensina , assim  auxiliando a nos libertar de condicionamentos passados e de projeções e expectativas futuras  que só trazem medo, insegurança e angústia.

Outro exercício espiritual fundamental, segundo os estoicos e Epicuro, é a prática da amizade. Os exercícios espirituais não são feitos apenas com o ego, tampouco de forma isolada e inacessível. Os exercícios espirituais que singularizam e potencializam também têm na amizade o seu cultivo. Epicuro chega a dizer que quem não é apto à amizade não é apto à filosofia, isto é, à liberdade.

A amizade, o agenciamento de que fala Deleuze e o que Espinosa chama de “bons encontros” são exercícios de cultivar a si mesmo cultivando igualmente a pluralidade.

 

Este livro de Hadot é boa uma introdução ao tema  dos “exercícios filosóficos” visando duas clínicas: a medicina mentis ( medicina da mente) e a medicina corpori ( medicina do corpo).




 



[1] Texto-aula  elaborado pelo prof. Elton Luiz.


 

sábado, 15 de abril de 2023

o tato

 

Dos cinco sentidos que possuímos , o tato é o mais ancestral. Muitos seres vivos não têm olhos e nem ouvidos, porém possuem algum tipo de tato. Pois não existe ser vivo que não possua tato. É pelo tato que o ser vivo toca e é tocado.

De tato  vem “contato” enquanto “tato mútuo”.  Não só os corpos fazem contato quando se abraçam, também fazem contato as almas quando se entendem mutuamente.

A palavra “afeto” se origina de um verbo latino que significa “ser tocado”. Assim, o afeto é uma questão de tato: tato consigo, tato com os outros, tato com o universo. Muitas vezes, não basta ter olhos e ouvidos para compreender uma situação, é preciso ter tato.

Solidariedade, tolerância, justiça, conviver democrático das diferenças...Tudo isso pressupõe , primeiramente, tato social. Ser empático, por exemplo,  é ter a sensibilidade tocada pela existência do outro, já a falta  dessa forma de tato humano caracteriza  os psicopatas.

De tato também vem “intuição”. Pois enquanto a “dedução” é um procedimento lógico-abstrato, a intuição é um contato imediato e concreto com  realidades externas e  internas.

Todos os outros sentidos vieram do tato. O gosto, por exemplo, é o segundo sentido mais ancestral, e nasceu também do tato. Sentimos  o gosto quando algo toca/afeta nossa língua e boca.

Não por acaso, “saber” vem de “sabor”. Há ideias que a gente consegue sentir o gosto delas, se são alimento ou veneno. E ninguém descobre a importância do ler e do pensar se não desenvolver, antes, o gosto pela leitura e pelo pensar. Pois o gosto não é algo meramente teórico, o gosto está envolvido com nossa vida e nossas ancestralidades  corpóreas .

Mesmo a visão, considerada o sentido mais intelectual e espiritual, mesmo ela nasceu do tato! Isso aconteceu há milhões de anos , e tem por personagem  um ancestral nosso que vivia debaixo d’água. Ao ser afetado/tocado pela luz, esse ancestral conseguiu fazer com que parte da pele dele se especializasse em sintetizar as ondas luminosas. Ele passou essa capacidade  para seus descendentes e, com a evolução, surgiu  uma abertura ao mundo visível:  nasceu a visão. Sem a inventividade desse ancestral submerso nas cristalinas águas, não teria podido  surgir Platão e sua contemplação do Mundo Celeste...

Ninguém melhor do que Clarice Lispector compreendeu essa potência  inesgotável do tato enquanto “(re)descoberta do mundo”.

Ela dizia que escrever não é retirar de dentro da cabeça ideias prontas  já conhecidas e pensadas. Escrever é pôr-se na ponta dos pés, elevando-se o máximo possível , mas sem perder o con-tato com a terra.

Depois , esticar os braços e mãos o máximo que pudermos , para  com a ponta dos dedos do pensamento tocar e colher, com o tato do afeto, o fruto que nasceu da árvore mais alta, e que parecia, aos olhos,  inalcançável.

 

“O mais profundo é a pele.” ( Valéry)

“É pelo tato que a fonte do amor se abre.”(Manoel de Barros)

“A visão  é o tato do espírito”.  (Fernando Pessoa)

"Quando o poeta não encontra na língua uma palavra para nomear  uma nova ideia que lhe nasceu, ele modela uma palavra nova com as próprias mãos." ( Manoel de Barros)






quinta-feira, 13 de abril de 2023

escola , educação, paideia

 

A democracia nasceu da distinção entre dois espaços: o público e o privado. Cada um desses espaços recebia um nome. O espaço privado era a esfera do “oikos”. Dessa palavra nasce oikonomia, economia. Esse espaço era, ao mesmo tempo, espaço da propriedade privada e da família.

Já o espaço público era designado como “pólis”, cujo centro era um lugar aberto sem cercas ou dono :a praça pública. Da palavra pólis se origina o termo política. Assim, mais do que um espaço físico, a pólis era um espaço institucional no qual prevaleciam ideias , práticas e valores  a favor do  interesse comum.

Cada ser humano nasce dentro de uma família. Porém, para que em cada ser humano também nasça um cidadão, é preciso fazer a pólis nascer dentro dele o mais cedo possível, ainda criança.

Esse papel de fazer nascer dentro de cada um  o comum enquanto valor não individualista-egoico , esse papel originário cabe à educação enquanto  paideia, isto é, formação de cidadania: em grego, “cidadão” é “politikos” ( aquele que cria e  é criado pela pólis).

“Paideia” significa : “conduzir a criança”, porém a conduzindo sobre as próprias pernas dela, para que ela aprenda, desde cedo, a autonomia solidária. Os  que são  autônomos solidários   por dentro e por fora nunca se submetem a tiranias...

Assim, a educação não é apenas transmissão de informação, a educação também é uma forma de socialização cuja base não é o sangue, como na família, e nem a posse privada , como na economia.

A educação  é valorização do outro, mesmo que ele não tenha nosso sangue; a educação  também é dar dignidade ao outro, sobretudo os perseguidos e excluídos . Ontem e hoje, é a pólis o espaço comum sem o qual não há   justiça, igualdade e democracia.

Toda mentalidade obscurantista-totalitária  nutre um ódio ressentido-vingativo contra a educação-paideia. Não por acaso, hoje o alvo dessa mentalidade reacionária é a escola, seus alunos, funcionários e educadores.

Esses ataques hediondos à escola não são casos isolados, como setores da polícia e da mídia querem dar a entender. Esses ataques e ameaças são o resultado da mentalidade antipolítica e antidemocrática ( mentalidade essa ainda hoje  tolerada por  setores da mídia privatista que sempre quer reduzir o interesse público aos seus interesses privados, não importando o preço a ser pago ou os meios a serem empregados, e por isso fazem vista grossa ao fascismo, desde que este acene com  a privatização-pirataria dos bens públicos).

Ontem e hoje, é a paideia-educação  emancipadora que também ensina-educa que há outras maneiras diferentes de se viver o amor , bem como outras formas possíveis de família. E que há outros modos  de se realizar a posse ( como a posse comum ou cooperativada), e não apenas a apropriação liberal-concentradora-privatista.

No seu  sentido originário, toda educação é política, pois  é espaço instituinte de democracia, por dentro e por fora de nós.






“Consegue ir verdadeiramente longe aquele que, mesmo tendo muito avançado, nunca esquece seus primeiros passos.” (Sêneca)







domingo, 9 de abril de 2023

fios de Ariadne

Na mitologia , o fio de Ariadne era uma linha segura  por aqueles que desejavam ir longe, libertariamente muito longe... Pois o fio saía de um novelo inesgotável  que não deixava  ninguém se perder.

 “Ariadne” significa, em grego, “aranha”. Assim como na aranha, é  do ventre de Ariadne que nasce seu  fio libertário e artista.  Ariadne também é o símbolo inesgotável da vida  : ventre absoluto, o fio que sai dela é para fazer linhas de fuga.

Alguns bordam quadros com tal fio, outros compõem música; há ainda os que fazem versos com esse fio, enquanto outros  tecem filosofias.

O fio se desprende de um novelo. “Novelo” significa: “novo elo”. O ventre de Ariadne é a pura potência para gerar novos elos  e necessários agenciamentos.

Às vezes, porém,  o fio de Ariadne precisa ser descoberto. Certa vez em um hospital psiquiátrico um interno se despiu do uniforme de louco que lhe colocaram, desfez a forma das roupas com significado pronto e acostumado, até achar de novo o fio tal como ele era antes de  um uniforme com  ele ser fabricado.

O fio assim encontrado se metamorfoseou em sentido novo a ser bordado: e foi assim que Arthur Bispo do Rosário religou o fio de sua  vida ao novelo criativo da humanidade inteira,  para desse modo  bordar paisagens, personagens e recriar seu mundo,  horizontando  e enriquecendo  nossa compreensão , como ensina também Artaud, acerca dos mil estados possíveis de existir e ser.

O poder autoritário pode até tentar cortar o fio, ou com ele fabricar uniformes para tudo vestir homogêneo. Mas enquanto houver  o existir não conformista,   o  fio cortado pode ainda  ser achado e de novo puxado para com ele se bordar   linhas de fuga , mesmo onde parecia  impossível...

Quando a gente dá as mãos para defender a educação, a  democracia, a pluralidade e a liberdade , nós mesmos  nos tornamos elos de um fio de Ariadne puxado do novelo inesgotável da vida.

 

( este livro é apenas uma sugestão de leitura)