VIRTUDE, VÍCIO E HÁBITO[1]
A palavra virtude costuma
ser traduzida por “hábito”. Em sua ética, Aristóteles ensina que a palavra “hábito” também é uma
das traduções para “éthos”. Assim, a questão dos hábitos está profundamente enraizada
nos comportamentos humanos, tenhamos ou não consciência disso.
É conhecida a distinção
feita por Aristóteles entre virtudes e vícios. Aqui, a palavra “vício” não deve
ser entendida no sentido do senso comum, como o vício de beber, o vício de
fumar, o vício de comer...ou ainda o vício de consumir, o vício de ver
televisão, o vício de teclar. Na verdade , todos esses comportamentos
identificados pelo senso comum como vícios, todos esses vícios têm sua origem
no campo ético ou de formação do caráter, já que, segundo Aristóteles, são as
virtudes que formam o caráter. Ou seja, o caráter não é genético, não nascemos
com o caráter já formado: o caráter é formado individual e socialmente, uma vez
que é na relação com o outro que desenvolvemos , desde a infância, o nosso caráter .
Sabe-se que Aristóteles
recomendava que as crianças tivessem aula de música desde a infância, pois o
filósofo considerava a música fundamental
na formação do caráter do futuro cidadão ( “politikos”). A música desperta e
potencializa o ouvir: retira-o da passividade e o torna ativo. E melhor fala e
argumenta aquele que sabe , primeiro, ouvir ( mesmo que seja para discordar e
refutar aquilo que ouve).
Há dois tipos de vícios:
os gerados pelos excessos e, ao contrário, os motivados pela carência ou falta. Já a virtude é o
“justo meio” entre o excesso e falta. Mas o que é esse “justo meio”? Como
alcançá-lo?
Enquanto virtude, a
coragem é o justo meio entre sua carência e seu excesso. A carência de coragem
pode ser vista nos comportamentos covardes, já o excesso de coragem se mostra
nos comportamentos temerários. Se alguém deseja correr uma longa maratona porém
não se prepara o suficiente e ignora seus limites, querer corrê-la até o fim e
a todo custo não é coragem, é temeridade que põe a própria saúde em risco.
O conhecimento também é
uma virtude ( uma virtude “teorética”[2]).
O vício do excesso de conhecimento é, segundo Aristóteles, a sofística ; já a carência de conhecimento pode ser vista no
vício da “ignorância cheia de si”. A
“ignorância cheia de si” nada tem a ver com a ignorância socrática ou com a
“Douta Ignorância” de Nicolau de Cusa. A “ignorância cheia de si” ignora a si
mesma e pratica o que hoje se chama de “negacionismo” da ciência. Enfim, a
“ignorância cheia de si” é o Mundo da Caverna
e sua reativa/ressentida doxa ( opinião).
Mas o “justo meio” entre
o excesso e a carência não é como o ponto no meio de uma linha. O justo meio é
como o pico de uma montanha: é difícil alcançar...Os vícios, por sua vez, são
como os lados da montanha: pela força da gravidade e do peso, os vícios puxam
para baixo. É por isso que para alcançar o cume é preciso exercício sobre si,
para assim tentar vencer o peso que puxa para baixo, no sentido literal e
simbólico.
Porém, não apenas as
virtudes são hábitos, os vícios também o
são. Ou seja, toda virtude é um hábito, porém nem todo hábito é uma virtude. A
coragem é um hábito, mas a covardia também o é. Ora, tudo o que é hábito é
adquirido. E aquilo que se adquire somente é mantido mediante um esforço. É
preciso esforço para ser corajoso, e esforço também é requerido para ser
covarde. Enquanto o corajoso emprega sua força para alcançar um bem, o covarde
aliena sua força e atrai, para si e para os outros, o mal. Esta é uma das
razões da dificuldade para se vencer o vício: aquele que tem o vício mantém o vício vivo pelo
modo como se comporta na vida, diante de si e dos outros. Pois o vício que se
mostra num comportamento danoso visível está alojado também na mente. Para
mudar um comportamento vicioso, é preciso mudar a maneira de pensar. E pensar
não é apenas teorizar, o querer também é maneira de pensar, isto é, o querer é uma
maneira ou modo de a mente se comportar.
Mas há duas espécie de
esforço : o ativo e o reativo. O esforço ativo é sempre criativo, ao passo que
o esforço reativo é destrutivo. As virtudes são (auto)esforços que criam
o caráter, já os vícios são esforços para destruí-lo ou não deixá-lo se
formar, e isso com a complacência, ou “servidão voluntária”, daqueles mesmos aos
quais os vícios apequenam e
despotencializam, sendo de si mesmos o carrasco e a vítima.
Assim, a primeira atitude
para se vencer os vícios é compreender que aquele que os tem de alguma forma os
cultiva, fazendo deles um hábito, isto é, um condicionamento que não é apenas
individual, mas igualmente relativo aos grupos aos quais se pertence . Não
apenas um indivíduo pode ser covarde, um grupo também pode o ser. E um alimenta
o outro , de tal maneira que o hábito se torna costume, “normalidade reativa”,
em suma, palavra de ordem.
Um grupo covarde está
sempre a se ajoelhar diante de seus próprios carrascos, fazendo culto cego à
obediência. É dos grupos covardes que os tiranos extraem sua força, pois a
“força” do tirano é a fraqueza. A mente tomada por hábitos reativos julga que
seu modo de ser é o “normal”, de tal modo que ela cria sua própria realidade
paralela, alienada. Já as virtudes ativas também ensejam coletividades
corajosas, pois as virtudes unem. Covardia não une, ela arrebanha.
Em sua ética, Espinosa
retoma e renova esse tema das virtudes. Na quinta parte de sua Ética, por
exemplo, ele ensina que nada se conquista se não vencermos certos hábitos
mentais que nos fazem repetir , no cotidiano, comportamentos que nos
despotencializam e impedem que conquistemos graus de potência.
Mas há uma diferença
fundamental de Espinosa em relação a Aristóteles, e aqui abordaremos esse tema de maneira bem simples, uma vez que
não há como aprofundá-lo no curto espaço deste texto-aula.
Espinosa não parte da
dicotomia excesso-falta. Para ele, potencializar uma virtude nada tem a ver com
excesso. Potencializar uma virtude é fazer dela um meio, como uma ferramenta ou
causa eficiente. Quanto mais potente uma virtude, mais ela se torna meio de
produção de ideias , de afetos e de
ações não em excesso, mas em amplidão e pluralidade. Além disso, ensina
Espinosa, uma autêntica virtude nunca é carente de si mesma ou falta a si
mesma. Para Espinosa, enfim, o único vício é o da impotência.