domingo, 27 de julho de 2025

A "sozinhez"

 

                        PARA VENCER A SOZINHEZ

 ( apresentação que escrevi para o livro “Palavra Muda”, do poeta Paulo Vasconcelos)

 

 Segundo o poeta Manoel de Barros, poesia não é apenas verso e rima no papel, poesia é  empoemamento : horizontamento da alma. Cada poeta , quando é um poeta de fato, nos empoema inventando o sentido e o ser do que seja  poesia.

“Palavra é sempre muda”, dizem, “quem fala é a boca”.  Mas Paulo nos ensina que a própria palavra pode ser muda, para assim expressar  o que não consegue dizer a mera boca  que apenas diz palavra.

Paulo inventa um devir-só repleto de esvaziamento de egos. Devir-só não é a mesma coisa que ser sozinho. Esse devir-só é o dizer de  quem expressa , das coisas mais comuns, o seu incomum único.

Paulo data alguns poemas ao modo de   acontecimentos de um diário. São poemas com registro de nascimento , dia e hora, dando a ver que poema é acontecimento unindo  o íntimo lírico ao   social e histórico.

O poeta é um “cristo pagão” que aceita sua solidão acompanhada de deuses, muitos deuses, os do dia e os da noite, sobretudo estes, e ainda mais alguns que carecem de nome, mas não de ser.

Solidão é o dão de quem se dá (“poesia é coisa de dão”, Manoel de Barros). Paulo escreve como quem se esvazia  para que nada resista à poesia que o preenche. Ele se desvencilha do gozo de uma  “sozinhez” narcísica, para assim narrar, não sem dor,  as solidões da singularidade ao mesmo tempo simples e refinada. Em seus versos há perceptos de paisagens sem homens, feitas  de mar , de peixes e desmesuras aquáticas; há montanhas e suas alturas, mas também há o tecido urbano, no qual o humano está à  procura de si mesmo.

Há um fio entre o verso e  nós. O fio não nasce de um ponto, ele nasce de um novelo que Paulo desdobra , esvaziando-se . Não é palavra o que ele nos dá, ele nos dá uma canção que espera o amor voltar para atenuar as dores dessa “difícil vida danada”,  que mesmo assim é celebrada , sem arrependimentos , sem culpa, com boa vodca.

Um “deus” com “d” minúsculo faz-se mais humano que o homem, ele aprende o desejo, a saudade, tem pai mortal e lê cordel. Assim, esse deus      não espera obediência, apenas que o vejamos    incorporando-se “natureza e tempo” , para assim também nos fazer gente, tempo, lua, saudade não nostálgica.

A palavra muda não é a que ausenta a palavra, a palavra muda é a conquista de um silêncio completo: diz tudo sem dizer nada, pois não o diz com o som, o diz apenas com o sentido artesanado.




 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Didática da invenção

 

Segundo o poeta Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar cartilhas . A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”.

Ensinar a inventar e criar para não sucumbirmos à resignação e ao medo , essa é a lição de tal didática, lição para aprendermos a nos refazermos.

Manoel diz que aprendeu essa didática não em livros ou com mestres doutores, ele a aprendeu com um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a Manoel como (re)inventar-se. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve”.

Essa criança lúdico-poética não é uma idade , ela é a própria potência da vida em seu “minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos convida para os seus “exercícios de ser criança”.

“Velhez” , segundo o poeta, também não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade refém do “mesmal”. O mesmal é a vida reativa, ressentida, resignada, não importa a idade que se tenha. Às vezes, até mesmo  partes da sociedade são tomadas pela velhez, engendrando assim servidões e tir4nias. O mesmal e sua velhez são  a antipoesia - no sentido existencial, político e subversivo  que a poesia tem.

Na vida, os exercícios de ser criança consistem em soltar e dar linha na pipa , atirar com estilingue nas latas, jogar bola na rua , muitas vezes tendo que driblar a repressão dos guardas . Os exercícios são as “peraltagens” de que são capazes as crianças.

É preciso aprender a fazer essas peraltagens com as palavras, para elas serem para nossa liberdade o que a linha é para a pipa : para horizontar a mente com linhas de fuga.

Que nossas palavras também aprendam a driblar as significações dominantes e seus guardas. Enfim , inventar com as palavras uma lúdica arma, um simbólico estilingue, uma arma para fazer viver e não para matar, apontada contra a velhez dos reaças.

Como ensina também Kierkegaard: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre”.





 




Texto publicado no facebook:

Certa vez, quando eu era aluno de filosofia, ouvi uma aula belíssima do professor Cláudio  Ulpiano dizendo que só há uma condição de resistirmos ao poder, ou não sermos seduzidos por ele, seja ele qual for  : permanecendo  marginais. Ser marginal é estar na margem: nem dentro , nem fora.

A margem é como uma membrana: um espaço de comunicação entre o dentro e o fora. O poder, por sua vez, quer sempre o centro, e é por isso que ele é centrípeto, monopolizador, e a tudo quer subordinar à sua lógica.

A lógica do  poder é a da “bolha” , do espaço fechado, e por isso  teme aberturas, horizontes.

Mas quem se coloca “fora”, num espaço de pretensa “neutralidade” , com certeza não se compromete, porém perde o poder de agir: constata, critica, reclama, mas não age.

Tudo tem uma membrana. E é nesse espaço da membrana que é preciso se colocar se quisermos  construir linhas de fuga. Como diz Manoel de Barros, é na membrana que podemos desabrir algo que está fechado.

Disse isso por conta desse espaço aqui, o facebook. De uns tempos para cá, eles adotaram a prática de diminuir o alcance das postagens de todos que não se tornam “produtor de conteúdo” para ele.

Eles fazem uma espécie de chantagem: “se você não quiser ter suas postagens invisibilizadas e sua página escondida, submeta-se ao nosso comércio”. Comércio do que exatamente? Comércio de nós mesmos, pois é disso que se trata: nós somos o produto que eles vendem, comprando-nos antes.

Inclusive, como todo Mefistófeles, eles prometem que se vendermos   nossa alma para eles teremos uma recompensa: nossas postagens serão “bombadas”, “impulsionadas” e “turbinadas” pelos robôs e algoritmos deles, não importa o conteúdo ou a qualidade da postagem.

Eu disse NÃO a essa chantagem. Não sou funcionário deles, não “sou produtor de conteúdo digital” . Os conteúdos que coloco aqui, vêm da vida real. Não sou “produtor de conteúdo digital” desse Mefistófeles digital, minha profissão é: professor.

Não tenho o menor interesse que minhas postagens sejam “turbinadas” por robôs acéfalos. Todos nós que postamos aqui  , sobretudo textos, desejamos sim ser lidos e, se merecermos, recebermos partilhas e comentários, mesmo que discordantes. Escrevemos para pessoas, são elas que nos interessam e justificam nossa presença aqui, não robôs.

Nada contra , claro, quem deseja ser “produtor de conteúdo digital”, mas o que não pode é o face chantagear todos a sê-lo.

É como professor  que me manterei aqui: na margem, na membrana, como marginal. É na margem disso aqui que podemos, mesmo estando aqui, não cedermos a isso aqui, não sermos instrumentos deles ( que são cúmplices do “MAGA”),  e empregarmos esse espaço aqui contra eles e a favor de nós, de nossas lutas sociais e políticas por emancipação e por uma vida mais digna: lá, no mundo real.


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Como dizia Nietzsche, os homens do poder sempre tentam passar a ideia de que os valores e a ordem que lhes colocam no lugar onde  eles  estão, um lugar de privilégios e domínio sobre os outros seres humanos, esses valores e ordem  seriam  como o gelo das geleiras nos picos das montanhas: uma realidade irremovível, imutável, eterna.

Ante isso, ensinava Nietzsche, a filosofia somente tem serventia se for como o “vento do degelo”. 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

As formas de se adquirir conhecimento

 

                                  PROGRESSÃO , CONVERSÃO , SUBVERSÃO [1]

 

Os livros de filosofia costumam dizer  que há  duas maneiras de adquirir conhecimento: por progressão e por conversão. A imagem que melhor traduz o conhecimento por progressão é a de uma escada: aprender se torna um processo de subir degraus. Começa-se no degrau do primário, passa-se ao degrau do ensino básico, depois sobe-se ao degrau do ensino médio...até chegar ao degrau da faculdade. Aqui,  há ainda os degraus dos períodos, depois o degrau do mestrado, sendo seguido pelo do doutorado até chegar ao último degrau: o do pós-doc. Contudo, o que caracteriza o conhecimento por progressão é que ele tem um começo e um fim  (  o pós- doc) , assim afirmando   a lógica de um suposto “progresso formal-intelectual” .

O conhecimento por conversão segue outra lógica: não a da escada que sobe, mas a de uma mudança de caminho, uma guinada, uma virada. Con-versão: “voltar-se para”. Em Platão, por exemplo, a conversão implica em um voltar-se para cima: para o Céu onde moram as Ideias. Mas como chegar até lá? Para lá não há degraus ou escadas. É preciso ter asas. Para Platão, o conhecimento não é um progredir, e sim um retornar: um voltar-se para a Origem Transcendente.

Inspirando-se nos pré-socráticos, Deleuze afirma que há ainda uma terceira maneira  de adquirir conhecimento: nem por subida de degraus, nem por ascensão por asas, mas por subversão. E esse processo não é puramente acadêmico ou intelectual, mas existencial e vital.

Subverter não é subir degraus e nem alçar às alturas, mas virar de cabeça para baixo uma ordem de coisas dadas. Subverter é destruir, mas destruir para criar: “Só podemos destruir/subverter sendo criadores”, afirma Nietzsche.  O subversivo faz de suas mãos mais do que asas: pois nelas, em suas mãos, ele carrega ferramentas para forjar uma realidade nova, como Espinosa polindo lentes para subverter a visão. Assim, Espinosa subverteu a imagem do filósofo: fez-se artesão.

 Enquanto a conversão busca um Céu nas alturas, o subversivo quer a Terra, ele afirma a Terra como o verdadeiro Céu. A progressão mira o alto de um podium, a conversão almeja o Céu, porém a subversão constrói o plano horizontal das conexões que ampliam e expandem.

Heráclito, Lucrécio, Espinosa, Nietzsche, Marx, Deleuze...se inscrevem na linhagem dos subversivos, cada um à sua maneira. Para eles, não se filosofa para progredir em conhecimento hierárquico ou para fugir da terra, mas para subverter os poderes que apequenam a vida, fomentam a superstição, exploram o ser humano e ameaçam o presente e o futuro da terra.

A poeta Carolina de Jesus, por exemplo, subverteu a lógica da ignorância que jogou livros no lixo: salvando os livros do lixo, Carolina de Jesus subversivamente produziu riquezas de ideias e afetos que não se compram ou vendem no “mercado”. No filme Meu amigo Nietzsche, o menino também salvou a filosofia do lixo, subvertendo assim a pobreza e a exclusão. Arthur Bispo do Rosário subverteu o lugar de louco no qual o confinaram, e com a arte subverteu nossa compreensão do que é a lucidez.  

Sem dúvida, é fundamental subverter a visão eurocentrada da filosofia, para assim afirmamos o pensar original que brota das nossas periferias e lugares de exclusão. Às vezes, para despertamos o filosofar é preciso subverter a lógica acadêmica da filosofia , e assim unir o pensamento à vida.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.









sexta-feira, 18 de julho de 2025

O poder teológico-político

 

O  excelente e imperdível novo documentário de Petra Costa me fez lembrar   o livro “Tratado teológico-político”  , de Espinosa.

No livro, o filósofo  descreve o fenômeno da “credulidade”. No fundo de toda credulidade  vigora o medo. Não o medo que pode nascer em quem enfrenta reais perigos, mas o medo ressentido que prostra e cega. O que Espinosa descreveu em palavras, Petra mostrou em som e imagens.

Segundo Espinosa, é o medo  o sentimento que melhor define a condição de servo voluntário.

“Credulidade” não é a mesma coisa que  “fé”. A autêntica fé não nega  a ciência, já a credulidade é neg4cionista do conhecimento.

 A fé é movida  pelo amor, mas é o ódi0 o combustível da credulidade. A fé busca a justiça e age em favor dos pobres , a credulidade troca a cruz por arm4s e faz da religião um vil negócio. A fé almeja alcançar Deus, a credulidade em tudo vê o “Diabo”.

A credulidade se traveste de religião, mas é na verdade  projeto de poder obscur4ntista  :  poder teológico-político.

 A credulidade é rasa, rasteira: por não conseguir alcançar a profundidade do sentido que há nos textos sagrados, ela imagina  que berrando e gritando se fará ouvir  pelo  Espírito Santo.

A credulidade é produtora de fantasia. Essa  fantasia  retroalimenta a credulidade, criando assim um mundo paralelo à parte, mas que é visto pela credulidade como  “Mundo Verdadeiro”. Não por acaso, a palavra “Verdade”  está sempre na boca delirante da credulidade.

Fantasia não é a mesma coisa que criatividade. As crianças nascem fantasiosas, porém nem todas conseguem desenvolver a criatividade.

Quando a criança, movida pelo medo, imagina haver um monstro debaixo da cama, o monstro  é produto de sua fantasia, embora a criança ignore isso.

Mas se a criança ,  ludicamente, cria uma história onde há um monstro, ou simplesmente desenha um monstro e fabula uma narrativa , a criança aprende que o monstro é criação de sua mente, de tal modo que, se ela o criou, também o pode derrotar, criando igualmente o personagem corajoso  que enfrentará e  vencerá o monstro. Criança que assim  brinca aprende a esconjurar o medo. O medo apequena a mente, já a criatividade  faz a mente  crescer e se horizontar.

Toda criança nasce fantasiosa, porém para haver o despertar da criatividade é preciso criar meios socioeducacionais que potencializem o imaginar pensante nas crianças.

Os tir4nos estão sempre perseguindo os criativos  e colocando “monstros” debaixo da cama dos ignorantes, assim infantilizando, pelo medo,  os homens.

Homens infantilizados são incapazes de se autogovernarem, terminando  por se submeterem ,  pela credulidade,    ao poder teológico-político acumpliciado com tir4nos.

“Comunista”, “vermelho”... são os “monstros” que o poder   teológico-político  colocou    debaixo da cama dos acorrentados à credulidade ,   para assim ludibriá-los e levá-los a crer delirantemente que  um mero ladrão de joias traidor da pátria é um “Messias” que irá salvá-los.

Esse poder teológico-político vem perdendo força, seu “Messias” só engana hoje incautos incuráveis da credulidade. Mas é preciso continuarmos atentos .

 



Esta música de Nelson Cavaquinho é parte da trilha sonora do filme de Petra:








 





"Pessoas que se enquadram cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se como sujeitos dotados de motivação própria. Inclui-se ai a postura de tratar os outros como massa amorfa. Uma democracia não deve apenas funcionar, mas sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas.

Só é possível imaginar a verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados. A única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência". ( Trecho do livro Educação e Emancipação, de Theodor Adorno)


sexta-feira, 11 de julho de 2025

Fortaleza-Quilombo

 

Em sua Ética, Espinosa dá especial importância a uma virtude: a fortaleza. Em latim, “fortitudo”. Alguns traduzem “fortitudo” como “força do ânimo”.  A palavra “ânimo” expressa a unidade da mente e do corpo quando agem. O “des-ânimo” é a despotencialização do nosso ânimo, do nosso poder de agir.

“Virtude” significa “força”. Não a mera força física ou bruta, mas a força potencial . Originalmente, “virtu” designava a força que nasce de uma fibra , fio ou corda, quando são tensionados e “vibram”.

 Por exemplo, o violão somente produz música se suas cordas forem vibradas; o arco só pode lançar suas flechas longe se sua corda  for tensionada ; o próprio coração , ao pulsar, faz suas fibras vibrarem para impulsionarem o sangue por todo o corpo.

Da mesma maneira, ideias que fazem pensar levam a mente a vibrar, abrindo-se para o mundo.  Coragem, indignação, generosidade, solidariedade, empatia, senso de justiça...são virtudes que , para virarem ação sobre o mundo, requerem  fibra naqueles que as sentem, para que neles elas vibrem.

Segundo Espinosa, a fortaleza é o ninho que dá guarida a todas as virtudes e as protege, como um escudo. Sem fortaleza, não há filosofia, ética, conhecimento, vida digna. A fortaleza-virtude é  força, mas não é violenta; ela tem potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser rígida.

 Uma fortaleza não precisa de muros ou cercas, e disso   a flor de lótus  dá o testemunho: ela desabrocha e persevera sendo ela mesma a despeito de  ao redor dela  predominar a lama. A fortaleza da flor de lótus  é a força que lhe é imanente, e que a lama não turva ou toca. Na sabedoria oriental, a flor de lótus é considerada  o símbolo da sabedoria prática.

Epicteto foi feito escravo em Roma , como aqui Dandara e Zumbi . A filosofia foi, para Epicteto, a sua Palmares: quando o poder quer nos  agrilhoar ( simbólica ou fisicamente ),   são Quilombos que precisamos edificar, dentro e fora da gente. Não por acaso,  na língua banto “fortaleza”  é  “quilombo”.

A fortaleza que protege uma sociedade livre e independente não é feita de muros ou arame farpado, a fortaleza de uma sociedade soberana é a democracia direta e participativa.






E anteontem foi o dia de nascimento de Mercedes Sosa ( ela faria 90 anos). Letra-poema de Violeta Parra:




 

sábado, 5 de julho de 2025

Eles contra nós

 

Os jornais surgiram na Europa como espaços críticos e simbólicos da então emergente burguesi4  . Os jornais nasceram como voz de uma classe contra outra classe: como voz da burguesi4 contra a m0narquia.

Depois, com os movimentos operários, surgiram jornais de esquerda como voz dessa nova classe nascente. Até hoje na Europa, há jornais de esquerda que fazem contraponto aos jornais (neo)liberais hegemônicos que, tal como no passado, ainda defendem o interesse de uma determinada classe, ainda que tentem dissimular isso.

No Brasil nunca houve algo semelhante: aqui, a imprensa foi criação da monarquia, quase como uma porta-voz dela. Os primeiros jornalistas eram filhos de senhores de engenho. Nunca tivemos, a não ser isoladamente, uma imprensa que veiculasse  outra voz sem ser a voz da classe dominante. Hoje, os senhores de engenho são outros...

 Um empresário estadunidense ultrdireitist4 , ferrenho apoiador e financiador de Trump, recentemente disse com cinismo: “Marx estava certo, o motor da história é a luta de classes.  Só que agora somos nós, os ricos, que fomentamos a luta e avançamos contra nossos inimigos:  os pobres.”

Conforme alguns colegas já disseram, a imprensa corporativa distorce os fatos ao afirmar que o governo assumiu o lema “Nós contra eles”, quando na verdade é o inverso que acontece: “São eles contra nós”. Ao distorcer a realidade, a imprensa corporativa revela que ela sempre foi   a voz desse “eles”, e não do nós.

Quem são “eles”? “Eles” chagaram aqui nas caravelas; “eles” depois foram os donos dos navios negreiros; “eles” moravam nas casas-grandes; hoje, a caravela colonialista, o navio negreiro escravagista e a casa-grande excludente são o “eles” do mercado financeiro que fazem dos juros aviltantes a nova forma de açoite ( como na imagem pintada por Banksy que acompanha esta postagem).

“Nós” somos os trabalhadores, os estudantes, os professores, as mulheres, os indígenas, os artistas, as minorias, as crianças... E também  as florestas, os seres vivos,  os rios, o planeta, enfim.

Como ensinava Espinosa, o “eles” é um pequeno grupo que usa o poder (“potestas”)  para   se colocar à parte, como um “todo à parte”, porém sugando a vida de todos para assim manterem seus privilégios usurpad0res ; o “nós” é a multitudo e sua potência ( “potentia”) no exercício de uma democracia que não é representativa, mas direta.

Nem sempre a multitudo dá sinais de vida, às vezes parece que ela está desesperançada, cansada, quase morta... É a indignação que desperta a multitudo e agencia , como partes singulares dela, aqueles e aquelas que se unem e  agem ante as injustiças.




 







 

sábado, 28 de junho de 2025

Para adiar o fim do mundo...

Nesses últimos dias , falou-se muito em “fim do mundo”. Isso me lembrou um livro de Krenak:

Quando entrou em contato pela  primeira vez com a cultura do homem branco, o pensador indígena  Krenak dizia que a ideia mais incompreensível para ele era a  de que o mundo estaria condenado a um fim, a um “Juízo Final”. E o mais surpreendente era saber  que essa visão destruidora era a base de uma religião que se dizia do Amor.

Esse discurso  niilista  de que a Mãe-Terra teria um dia fim parecia legitimar que o homem branco  já começasse a destruí-la   desde agora,  derrubando  as florestas de Pachamama  e tudo o que faz ninho nelas, poluindo seus mares e rios, enfim,  ameaçando de extinção os povos da floresta e, por extensão, a humanidade inteira.

Mas os povos das florestas têm um antídoto que os protege.  Esse antídoto não está no cacique , o “chefe político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse antídoto está naquele que é chamado de   “pessoa coletiva”.

Nos povos da floresta , a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade.

Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem pede cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo.

A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”. Não se trata, portanto,  de um poeta que  escreve poesia enquanto mero  “gênero literário”, e sim  poesia como produção de sentido umbilicado à vida, poesia que é vivida e partilhada como poética da re-existência.

O poeta da tribo expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo :o mundo dos povos da floresta. 

 A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo-planetária.

Tanto em Krenak como em Manoel,  a resistência ao niilismo e suas formas reativas nada tem  a ver com otimismo ou romantismo , mas expressa aquilo que Espinosa em sua Ética chamava de “perseverança”.

Poesia que resiste ao “fim do mundo” é voz da multivariada comunidade humana, esteja ela nas florestas ,  cidades ou periferias, conscientizando de que  todos somos partes do planeta terra ,   nossa  aldeia comum .







domingo, 22 de junho de 2025

as duas mãos

 

 Em épocas remotas, um certo ser estranho que mal se distinguia dos primatas pegou o osso de um fêmur e dele fez uma arma. Assim se materializou, pela primeira vez, o poder sob a forma de ameaça de destruição e m0rte feita a outro ser. 

Essa mesma mentalidade ameaçadora e destrutiva depois se armou com pau,  flecha,  bala,  pólvora,  canhão ,  mísseis...Até chegar ao grau máximo dessa macabra involução : a bomb4 atômic4.

A mão daquele proto-primata que fez do osso uma arma é a mesma  que , hoje, ameaça apertar o botão nucle4r. Essa mão perdeu os pelos, as unhas estão cortadas, ela se tornou a mão do homem branco. Mas impulsionando  essa mão saída da manga  de um terno caro está o mesmo impulso cego, irracional.

Mas naquela mesma época primeva outros se valiam das mãos para criarem arte nas paredes das cavernas. Eram os ancestrais dos artistas e educadores.

De um lado, as mãos destrutífer4s a serviço  da m0rte; de outro, a mão criadora-artística afirmadora da vida.

Alguns teóricos “utilitaristas”, quase todos estadunidenses,  consideram que a guerr4 é o preço a ser pago pelo progresso material da humanidade. Eles elencam  vários apetrechos tecnológicos que “evoluíram” a partir da guerr4.

Ou seja,  esses teóricos “pragmáticos-realistas” consideram que a guerr4 não apenas destrói, ela também construiria tecnologias que , após a guerra, melhoram a vida do homem no planeta. Em geral, esses teóricos consideram que a mão da guerr4, e não a mão artística-educadora, seria aquela que , no fim das contas, produziu a “evolução” da humanidade.

Porém, esse raciocínio se mostra absurdo quando se considera o último fruto dessa árvore da violência: a arm4 atômic4. Portanto,  é uma ignorância falaciosa  usar os raciocínios para tentar justificar a existência da irracionalidade, sobretudo essa que hoje ameaça o planeta, seja pela guerra ou   por um sistema econômico desumano-predador, que são as duas faces da mesma moeda da involução iniciada naquele fêmur ameaçador.

Também considero uma falácia perigosa considerar que só haverá paz quando  todos os países tiverem  bomb4 atômic4, como se a luz pudesse nascer do cultivo da treva.

A guerr4 nos mostra que a evolução tecnológica pode estar a serviço de uma involução que  faz o homem regredir a uma mente semelhante àquela do proto-primata,

A humanidade não começou naquele fêmur levantado em ameaça, ela começou naquelas mãos que transfiguraram a realidade em arte, em linguagem, em cor e forma. São dessas mãos que nasceram a educação, a solidariedade e a empatia.

 

( Este belo livro é apenas uma sugestão. A despeito das mãos que se armam com pequenezas hediond4s, este livro não nos deixa esquecer a grandeza que também pode nascer das mãos humanas , e que são a essas mãos criadoras  que devemos unir as nossas , seja qual for a nossa prática: seja no simples cuidado com a saúde da nossa  mente e corpo, seja na ação comum pela  dignidade coletiva  )








sábado, 21 de junho de 2025

A partida de Perséfone

Segundo a mitologia, Hades é a divindade que habita a região trevosa muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez,  Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a divindade  da fertilidade.

E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer em Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, ele raptou  Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de  beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava .

Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone subiria para viver entre nós,  sua chegada nos  trazendo a primavera.  Durante outra parte do ano, uma parte  doída para nós, Perséfone viveria lá embaixo . Desta maneira nasceu o inverno: o período em que Perséfone desce para ir morar com Hades.

 Mas para nos confortar um pouco e minorar a tristeza pela sua ausência, Perséfone criou flores que florescem no inverno. Foi assim que nasceram a Tulipa, a Angélica , o Crisântemo , a Orquídea e o Lírio que, como ensina Manoel de Barros, “brota  de monturos...”

Ontem começou o inverno. Perséfone nos deixou...

Ainda bem que pode nos socorrer e acalentar outra narrativa originária  , uma narrativa de autoria do povo  tupi-guarani, cujo sangue também corre nas nossas veias. Para esse povo, o   ipê  é  a árvore-filha mais potente e perseverante de Pindorama, a Mãe-Terra;  pois o ipê é capaz de florescer o ano inteiro em resistente primavera, mesmo sob o inverno.

“Árvore da Vida”, assim nossos povos originários chamam  o ipê. Nem o inverno , nem os vis predadores armados com  motosserra  impedem o ipê de dizer , florindo,  o que  o poeta Goethe disse em versos: “O céu da teoria é cinza; mas sempre verdejante é a árvore da vida.”


(imagem: “Roots” /“Raízes”, de Frida Kahlo)






 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

HOJE, 19/06, CHICO BUARQUE FAZ 81 ANOS

 

Antes de ouvir Chico, eu o li. Antes de ouvi-lo como música, eu o li como poesia que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola, numa época na qual ainda pairava sobre nós a dit4dura.  Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos.

Eu já sabia ler livros : livros de história, de física, de química, de geografia e até livros sobre literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver mera erudição ou o intelecto.

Foi a poesia presente na canção popular  que, quando criança,  me fez aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por descobrir.

Li pela primeira vez Chico numa aula de língua portuguesa dada no antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que, na parte de interpretação de textos,  empregavam os “parnasianos”, a nossa querida professora  resolveu adotar um livro heterodoxo, plural :o livro apresentava  as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção .

Tais festivais ainda eram recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram. Por isso, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro  fazia o que Foucault chama de micropolítica da resistência.

Quando li  “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é fugir de um território habitual,costumeiro, ordinário.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha,incluindo as cartilhas que tentam codificar nossa percepção, palavras  e maneiras de pensar e agir. 

Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : eu me reterritorializava em um território novo composto de   sensações e afetos que não eram apenas pessoais.

 Essa desterritorialização  me  ampliava para além dos muros da escola: me lançava no mundo,  me inseria no cosmos. Foi a partir dali que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam nos adestrar.

Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo.


( este livro é apenas uma sugestão)