( apresentação que escrevi para o livro
“Palavra Muda”, do poeta Paulo Vasconcelos)
Segundo o poeta Manoel de Barros, poesia não é
apenas verso e rima no papel, poesia éempoemamento: horizontamento da alma. Cada poeta , quando é um poeta de fato, nos
empoema inventando o sentido e o ser do que sejapoesia.
“Palavra é sempre muda”, dizem, “quem
fala é a boca”.Mas Paulo nos ensina que
a própria palavra pode ser muda, para assim expressaro que não consegue dizer a mera bocaque apenas diz palavra.
Paulo inventa um devir-só
repleto de esvaziamento de egos. Devir-só não é a mesma coisa que ser
sozinho. Esse devir-só é o dizer dequem expressa , das coisas mais comuns, o seu incomum único.
Paulo data alguns poemas ao modo
deacontecimentos de um diário. São
poemas com registro de nascimento , dia e hora, dando a ver que poema é
acontecimento unindoo íntimo lírico
aosocial e histórico.
O poeta é um “cristo pagão” que
aceita sua solidão acompanhada de deuses, muitos deuses, os do dia e os da
noite, sobretudo estes, e ainda mais alguns que carecem de nome, mas não de
ser.
Solidão é o dão de quem se dá
(“poesia é coisa de dão”, Manoel de Barros). Paulo escreve como quem se
esvaziapara que nada resista à poesia
que o preenche. Ele se desvencilha do gozo de uma“sozinhez” narcísica, para assim narrar, não
sem dor,as solidões da singularidade ao
mesmo tempo simples e refinada. Em seus versos há perceptos de paisagens
sem homens, feitasde mar , de peixes e
desmesuras aquáticas; há montanhas e suas alturas, mas também há o tecido
urbano, no qual o humano está àprocura
de si mesmo.
Há um fio entre o verso enós. O fio não nasce de um ponto, ele nasce
de um novelo que Paulo desdobra , esvaziando-se . Não é palavra o que ele nos
dá, ele nos dá uma canção que espera o amor voltar para atenuar as dores dessa
“difícil vida danada”,que mesmo assim é
celebrada , sem arrependimentos , sem culpa, com boa vodca.
Um “deus” com “d” minúsculo faz-se
mais humano que o homem, ele aprende o desejo, a saudade, tem pai mortal e lê
cordel. Assim, esse deusnão espera
obediência, apenas que o vejamosincorporando-se “natureza e tempo” , para assim também nos fazer gente,
tempo, lua, saudade não nostálgica.
A palavra muda não é a que ausenta a
palavra, a palavra muda é a conquista de um silêncio completo: diz tudo sem
dizer nada, pois não o diz com o som, o diz apenas com o sentido artesanado.
Segundo o poeta
Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar
cartilhas . A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”.
Ensinar a
inventar e criar para não sucumbirmos à resignação e ao medo , essa é a lição
de tal didática, lição para aprendermos a nos refazermos.
Manoel diz que
aprendeu essa didática não em livros ou com mestres doutores, ele a aprendeu
com um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta
inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a
Manoel como (re)inventar-se. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me
escreve”.
Essa criança
lúdico-poética não é uma idade , ela é a própria potência da vida em seu
“minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos
convida para os seus “exercícios de ser criança”.
“Velhez” ,
segundo o poeta, também não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade
refém do “mesmal”. O mesmal é a vida reativa, ressentida, resignada, não
importa a idade que se tenha. Às vezes, até mesmopartes da sociedade são tomadas pela velhez,
engendrando assim servidões e tir4nias. O mesmal e sua velhez sãoa antipoesia - no sentido existencial,
político e subversivoque a poesia tem.
Na vida, os
exercícios de ser criança consistem em soltar e dar linha na pipa , atirar com
estilingue nas latas, jogar bola na rua , muitas vezes tendo que driblar a
repressão dos guardas . Os exercícios são as “peraltagens” de que são capazes
as crianças.
É preciso
aprender a fazer essas peraltagens com as palavras, para elas serem para nossa
liberdade o que a linha é para a pipa : para horizontar a mente com linhas de
fuga.
Que nossas
palavras também aprendam a driblar as significações dominantes e seus guardas.
Enfim , inventar com as palavras uma lúdica arma, um simbólico estilingue, uma
arma para fazer viver e não para matar, apontada contra a velhez dos reaças.
Como ensina
também Kierkegaard: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse
seu mestre”.
Texto publicado no facebook:
Certa vez, quando eu era aluno de filosofia, ouvi uma aula belíssima
do professor Cláudio Ulpiano dizendo que
só há uma condição de resistirmos ao poder, ou não sermos seduzidos por ele, seja ele qual for : permanecendo marginais. Ser marginal é estar na margem: nem
dentro , nem fora.
A margem é como uma membrana: um espaço de comunicação entre
o dentro e o fora. O poder, por sua vez, quer sempre o centro, e é por isso que
ele é centrípeto, monopolizador, e a tudo quer subordinar à sua lógica.
A lógica do poder é a
da “bolha” , do espaço fechado, e por isso teme aberturas, horizontes.
Mas quem se coloca “fora”, num espaço de pretensa “neutralidade”
, com certeza não se compromete, porém perde o poder de agir: constata, critica,
reclama, mas não age.
Tudo tem uma membrana. E é nesse espaço da membrana que é
preciso se colocar se quisermos construir linhas de fuga. Como diz Manoel de
Barros, é na membrana que podemos desabrir algo que está fechado.
Disse isso por conta desse espaço aqui, o facebook. De uns
tempos para cá, eles adotaram a prática de diminuir o alcance das postagens de
todos que não se tornam “produtor de conteúdo” para ele.
Eles fazem uma espécie de chantagem: “se você não quiser ter
suas postagens invisibilizadas e sua página escondida, submeta-se ao nosso
comércio”. Comércio do que exatamente? Comércio de nós mesmos, pois é disso que
se trata: nós somos o produto que eles vendem, comprando-nos antes.
Inclusive, como todo Mefistófeles, eles prometem que se
vendermos nossa alma para eles teremos uma recompensa:
nossas postagens serão “bombadas”, “impulsionadas” e “turbinadas” pelos robôs e
algoritmos deles, não importa o conteúdo ou a qualidade da postagem.
Eu disse NÃO a essa chantagem. Não sou funcionário deles,
não “sou produtor de conteúdo digital” . Os conteúdos que coloco aqui, vêm da
vida real. Não sou “produtor de conteúdo digital” desse Mefistófeles digital, minha
profissão é: professor.
Não tenho o menor interesse que minhas postagens sejam “turbinadas”
por robôs acéfalos. Todos nós que postamos aqui , sobretudo textos, desejamos sim ser lidos e,
se merecermos, recebermos partilhas e comentários, mesmo que discordantes. Escrevemos
para pessoas, são elas que nos interessam e justificam nossa presença aqui, não
robôs.
Nada contra , claro, quem deseja ser “produtor de conteúdo
digital”, mas o que não pode é o face chantagear todos a sê-lo.
É como professor que me
manterei aqui: na margem, na membrana, como marginal. É na margem disso aqui
que podemos, mesmo estando aqui, não cedermos a isso aqui, não sermos
instrumentos deles ( que são cúmplices do “MAGA”), e empregarmos esse espaço aqui contra eles e a
favor de nós, de nossas lutas sociais e políticas por emancipação e por uma
vida mais digna: lá, no mundo real.
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Como dizia Nietzsche, os homens do poder sempre tentam
passar a ideia de que os valores e a ordem que lhes colocam no lugar onde eles estão, um lugar de privilégios e domínio sobre
os outros seres humanos, esses valores e ordem seriam como
o gelo das geleiras nos picos das montanhas: uma realidade irremovível,
imutável, eterna.
Ante isso, ensinava Nietzsche, a filosofia somente tem serventia
se for como o “vento do degelo”.
Os livros de filosofia costumam dizer que há duas maneiras de adquirir conhecimento: por progressão
e por conversão. A imagem que melhor traduz o conhecimento por
progressão é a de uma escada: aprender se torna um processo de subir degraus.
Começa-se no degrau do primário, passa-se ao degrau do ensino básico, depois
sobe-se ao degrau do ensino médio...até chegar ao degrau da faculdade. Aqui, há ainda os degraus dos períodos, depois o degrau do mestrado, sendo seguido
pelo do doutorado até chegar ao último degrau: o do pós-doc. Contudo, o que
caracteriza o conhecimento por progressão é que ele tem um começo e um fim(o
pós- doc) , assim afirmando a lógica de um suposto “progresso formal-intelectual”
.
O conhecimento por conversão segue outra lógica: não a da escada que
sobe, mas a de uma mudança de caminho, uma guinada, uma virada. Con-versão: “voltar-se
para”. Em Platão, por exemplo, a conversão implica em um voltar-se para cima:
para o Céu onde moram as Ideias. Mas como chegar até lá? Para lá não há degraus
ou escadas. É preciso ter asas. Para Platão, o conhecimento não é um progredir,
e sim um retornar: um voltar-se para a Origem Transcendente.
Inspirando-se nos pré-socráticos, Deleuze afirma que há ainda uma
terceira maneira de adquirir
conhecimento: nem por subida de degraus, nem por ascensão por asas, mas por subversão.
E esse processo não é puramente acadêmico ou intelectual, mas existencial e
vital.
Subverter não é subir degraus e nem alçar às alturas, mas virar de cabeça
para baixo uma ordem de coisas dadas. Subverter é destruir, mas destruir para criar:
“Só podemos destruir/subverter sendo criadores”, afirma Nietzsche. O subversivo faz de suas mãos mais do que
asas: pois nelas, em suas mãos, ele carrega ferramentas para forjar uma
realidade nova, como Espinosa polindo lentes para subverter a visão. Assim, Espinosa
subverteu a imagem do filósofo: fez-se
artesão.
Enquanto a conversão busca um Céu
nas alturas, o subversivo quer a Terra, ele afirma a Terra como o verdadeiro
Céu. A progressão mira o alto de um podium, a conversão almeja o Céu, porém a
subversão constrói o plano horizontal das conexões que ampliam e expandem.
Heráclito, Lucrécio, Espinosa, Nietzsche, Marx, Deleuze...se inscrevem na
linhagem dos subversivos, cada um à sua maneira. Para eles, não se filosofa
para progredir em conhecimento hierárquico ou para fugir da terra, mas para
subverter os poderes que apequenam a vida, fomentam a superstição, exploram o
ser humano e ameaçam o presente e o futuro da terra.
A poeta Carolina de Jesus, por exemplo, subverteu a lógica da ignorância
que jogou livros no lixo: salvando os livros do lixo, Carolina de Jesus
subversivamente produziu riquezas de ideias e afetos que não se compram ou
vendem no “mercado”. No filme Meu amigo Nietzsche, o menino também
salvou a filosofia do lixo, subvertendo assim a pobreza e a exclusão. Arthur
Bispo do Rosário subverteu o lugar de louco no qual o confinaram, e com a arte
subverteu nossa compreensão do que é a lucidez.
Sem dúvida, é fundamental subverter a visão eurocentrada da filosofia, para
assim afirmamos o pensar original que brota das nossas periferias e lugares de
exclusão. Às vezes, para despertamos o filosofar é preciso subverter a lógica acadêmica
da filosofia , e assim unir o pensamento à vida.
O excelente e imperdível novo documentário de
Petra Costa me fez lembrar o livro “Tratado teológico-político” , de Espinosa.
No livro, o filósofo descreve o fenômeno da “credulidade”. No fundo
de toda credulidade vigora o medo. Não o
medo que pode nascer em quem enfrenta reais perigos, mas o medo ressentido que
prostra e cega. O que Espinosa descreveu em palavras, Petra mostrou em som e imagens.
Segundo Espinosa, é o medoo sentimento que melhor define a condição de servo
voluntário.
“Credulidade” não é a mesma coisa
que“fé”. A autêntica fé não negaa ciência, já a credulidade é neg4cionista do
conhecimento.
A fé é movidapelo amor, mas é o ódi0 o combustível da credulidade. A fé busca a
justiça e age em favor dos pobres , a credulidade troca a cruz por arm4s e faz da
religião um vil negócio. A fé almeja alcançar Deus, a credulidade em tudo vê o
“Diabo”.
A credulidade se traveste de religião,
mas é na verdade projeto de poder obscur4ntista:poder teológico-político.
A credulidade é rasa, rasteira: por não
conseguir alcançar a profundidade do sentido que há nos textos sagrados, ela
imaginaque berrando e gritando se fará
ouvirpeloEspírito Santo.
A credulidade é produtora de
fantasia. Essafantasiaretroalimenta a credulidade, criando assim um
mundo paralelo à parte, mas que é visto pela credulidade como“Mundo Verdadeiro”. Não por acaso, a palavra
“Verdade”está sempre na boca delirante
da credulidade.
Fantasia não é a mesma coisa que
criatividade. As crianças nascem fantasiosas, porém nem todas conseguem
desenvolver a criatividade.
Quando a criança, movida pelo medo, imagina
haver um monstro debaixo da cama, o monstroé produto de sua fantasia, embora a criança ignore isso.
Mas se a criança ,ludicamente, cria uma história onde há um
monstro, ou simplesmente desenha um monstro e fabula uma narrativa , a criança
aprende que o monstro é criação de sua mente, de tal modo que, se ela o criou,
também o pode derrotar, criando igualmente o personagem corajosoque enfrentará evencerá o monstro. Criança que assimbrinca aprende a esconjurar o medo. O medo
apequena a mente, já a criatividadefaz
a mentecrescer e se horizontar.
Toda criança nasce fantasiosa, porém
para haver o despertar da criatividade é preciso criar meios socioeducacionais
que potencializem o imaginar pensante nas crianças.
Os tir4nos estão sempre perseguindo
os criativose colocando “monstros”
debaixo da cama dos ignorantes, assim infantilizando, pelo medo,os homens.
Homens infantilizados são incapazes
de se autogovernarem, terminandopor se
submeterem ,pela credulidade,ao poder teológico-político acumpliciado
com tir4nos.
“Comunista”, “vermelho”... são os
“monstros” que o poderteológico-políticocolocou debaixo da cama dos acorrentados à
credulidade , para assim ludibriá-los e
levá-los a crer delirantemente que um
mero ladrão de joias traidor da pátria é um “Messias” que irá salvá-los.
Esse poder teológico-político vem
perdendo força, seu “Messias” só engana hoje incautos incuráveis da
credulidade. Mas é preciso continuarmos atentos .
Esta música de Nelson Cavaquinho é parte da trilha sonora do filme de Petra:
"Pessoas que se enquadram
cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se
como sujeitos dotados de motivação própria. Inclui-se ai a postura de tratar os
outros como massa amorfa. Uma democracia não deve apenas funcionar, mas
sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas.
Só é possível imaginar a
verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados. A única concretização
efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas
nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação
para a contestação e para a resistência". ( Trecho do livro Educação
e Emancipação, de Theodor Adorno)
Em sua Ética,
Espinosa dá especial importância a uma virtude: a fortaleza. Em latim,
“fortitudo”. Alguns traduzem “fortitudo” como “força do ânimo”. A
palavra “ânimo” expressa a unidade da mente e do corpo quando agem. O “des-ânimo”
é a despotencialização do nosso ânimo, do nosso poder de agir.
“Virtude”
significa “força”. Não a mera força física ou bruta, mas a força potencial .
Originalmente, “virtu” designava a força que nasce de uma fibra , fio ou corda,
quando são tensionados e “vibram”.
Por
exemplo, o violão somente produz música se suas cordas forem vibradas; o arco
só pode lançar suas flechas longe se sua corda for tensionada ; o
próprio coração , ao pulsar, faz suas fibras vibrarem para impulsionarem o
sangue por todo o corpo.
Da mesma
maneira, ideias que fazem pensar levam a mente a vibrar, abrindo-se para o
mundo. Coragem, indignação,
generosidade, solidariedade, empatia, senso de justiça...são virtudes que ,
para virarem ação sobre o mundo, requerem fibra naqueles que as
sentem, para que neles elas vibrem.
Segundo
Espinosa, a fortaleza é o ninho que dá guarida a todas as virtudes e as
protege, como um escudo. Sem fortaleza, não há filosofia, ética, conhecimento,
vida digna. A fortaleza-virtude é força, mas não é violenta; ela tem
potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser rígida.
Uma
fortaleza não precisa de muros ou cercas, e disso a flor
de lótus dá o testemunho: ela desabrocha e persevera sendo ela mesma
a despeito de ao redor dela predominar a lama. A
fortaleza da flor de lótus é a força que lhe é imanente, e que a
lama não turva ou toca. Na sabedoria oriental, a flor de lótus é considerada o
símbolo da sabedoria prática.
Epicteto foi
feito escravo em Roma , como aqui Dandara e Zumbi . A filosofia foi, para
Epicteto, a sua Palmares: quando o poder quer nos agrilhoar (
simbólica ou fisicamente ), são Quilombos que precisamos
edificar, dentro e fora da gente. Não por acaso, na língua banto
“fortaleza” é “quilombo”.
A fortaleza que
protege uma sociedade livre e independente não é feita de muros ou arame
farpado, a fortaleza de uma sociedade soberana é a democracia direta e participativa.
E anteontem foi o dia de nascimento de Mercedes Sosa ( ela faria 90 anos). Letra-poema de Violeta Parra:
Os jornais
surgiram na Europa como espaços críticos e simbólicos da então emergente
burguesi4 . Os jornais nasceram como voz de uma classe contra outra
classe: como voz da burguesi4 contra a m0narquia.
Depois, com os
movimentos operários, surgiram jornais de esquerda como voz dessa nova classe
nascente. Até hoje na Europa, há jornais de esquerda que fazem contraponto aos
jornais (neo)liberais hegemônicos que, tal como no passado, ainda defendem o
interesse de uma determinada classe, ainda que tentem dissimular isso.
No Brasil nunca
houve algo semelhante: aqui, a imprensa foi criação da monarquia, quase como
uma porta-voz dela. Os primeiros jornalistas eram filhos de senhores de
engenho. Nunca tivemos, a não ser isoladamente, uma imprensa que veiculasse outra
voz sem ser a voz da classe dominante. Hoje, os senhores de engenho são
outros...
Um
empresário estadunidense ultrdireitist4 , ferrenho apoiador e financiador de
Trump, recentemente disse com cinismo: “Marx estava certo, o motor da história
é a luta de classes. Só que agora somos nós, os ricos, que
fomentamos a luta e avançamos contra nossos inimigos: os pobres.”
Conforme alguns
colegas já disseram, a imprensa corporativa distorce os fatos ao afirmar que o
governo assumiu o lema “Nós contra eles”, quando na verdade é o inverso que
acontece: “São eles contra nós”. Ao distorcer a realidade, a imprensa corporativa
revela que ela sempre foi a voz desse “eles”, e não do nós.
Quem são “eles”?
“Eles” chagaram aqui nas caravelas; “eles” depois foram os donos dos navios
negreiros; “eles” moravam nas casas-grandes; hoje, a caravela colonialista, o
navio negreiro escravagista e a casa-grande excludente são o “eles” do mercado financeiro
que fazem dos juros aviltantes a nova forma de açoite ( como na imagem pintada
por Banksy que acompanha esta postagem).
“Nós” somos os
trabalhadores, os estudantes, os professores, as mulheres, os indígenas, os
artistas, as minorias, as crianças... E também as florestas, os seres vivos, os rios, o planeta, enfim.
Como ensinava Espinosa,
o “eles” é um pequeno grupo que usa o poder (“potestas”) para se colocar à parte, como um “todo à parte”,
porém sugando a vida de todos para assim manterem seus privilégios usurpad0res ;
o “nós” é a multitudo e sua potência ( “potentia”) no exercício de uma democracia
que não é representativa, mas direta.
Nem sempre a multitudo
dá sinais de vida, às vezes parece que ela está desesperançada, cansada, quase
morta... É a indignação que desperta a multitudo e agencia , como partes
singulares dela, aqueles e aquelas que se unem e agem ante as injustiças.
Nesses
últimos dias , falou-se muito em “fim do mundo”. Isso me lembrou um livro de
Krenak:
Quando
entrou em contato pelaprimeira vez com
a cultura do homem branco, o pensador indígenaKrenak dizia que a ideia mais incompreensível para ele era a de que o mundo estaria condenado a um fim, a
um “Juízo Final”. E o mais surpreendente era saberque essa visão destruidora era a base de uma
religião que se dizia do Amor.
Esse
discursoniilista de que a Mãe-Terra teria um dia fim parecia
legitimar que o homem brancojá
começasse a destruí-ladesde agora, derrubando as florestas de Pachamamae tudo o que faz ninho nelas, poluindo seus
mares e rios, enfim,ameaçando de
extinção os povos da floresta e, por extensão, a humanidade inteira.
Mas os
povos das florestas têm um antídoto que os protege.Esse antídoto não está no cacique , o “chefe
político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse antídoto está naquele que é
chamado de “pessoa coletiva”.
Nos povos
da floresta , a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou
“personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz
narrativas que expressam o “nós” da comunidade.
Somente
sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva”
não profere ordens e nem pede cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de
uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças
de fim de mundo.
A “pessoa
coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem
nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”. Não se
trata, portanto,de um poeta que escreve poesia enquanto mero “gênero literário”, e simpoesia como produção de sentido umbilicado à
vida, poesia que é vivida e partilhada como poética da re-existência.
O poeta
da tribo expressa um poder diferente daquele que exerce o cacique, o
poeta promove curas para enfermidades que o pajé não consegue
curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é
a resistência por intermédio da palavra que não deixa morrer um mundo :o
mundo dos povos da floresta.
A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de
enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento
de falas”, tal como aflora na pessoa coletiva Manoel de Barros, um
dos poetas da nossa tribo-planetária.
Tanto em
Krenak como em Manoel,a resistência ao
niilismo e suas formas reativas nada tema ver com otimismo ou romantismo , mas expressa aquilo que Espinosa em
sua Ética chamava de “perseverança”.
Poesia que
resiste ao “fim do mundo” é voz da multivariada comunidade humana, esteja ela
nas florestas , cidades ou periferias, conscientizando
de que todos somos partes do planeta
terra , nossa
aldeia comum .
Em épocas
remotas, um certo ser estranho que mal se distinguia dos primatas pegou o osso
de um fêmur e dele fez uma arma. Assim se materializou, pela primeira vez, o
poder sob a forma de ameaça de destruição e m0rte feita a outro ser.
Essa mesma
mentalidade ameaçadora e destrutiva depois se armou com
pau, flecha, bala, pólvora, canhão
, mísseis...Até chegar ao grau máximo dessa macabra involução : a
bomb4 atômic4.
A mão daquele
proto-primata que fez do osso uma arma é a mesma que , hoje, ameaça
apertar o botão nucle4r. Essa mão perdeu os pelos, as unhas estão cortadas, ela
se tornou a mão do homem branco. Mas impulsionando essa mão saída da
manga de um terno caro está o mesmo impulso cego, irracional.
Mas naquela
mesma época primeva outros se valiam das mãos para criarem arte nas paredes das
cavernas. Eram os ancestrais dos artistas e educadores.
De um lado, as
mãos destrutífer4s a serviço da m0rte; de outro, a mão
criadora-artística afirmadora da vida.
Alguns teóricos
“utilitaristas”, quase todos estadunidenses, consideram que a guerr4
é o preço a ser pago pelo progresso material da humanidade. Eles
elencam vários apetrechos tecnológicos que “evoluíram” a partir da
guerr4.
Ou
seja, esses teóricos “pragmáticos-realistas” consideram que a guerr4
não apenas destrói, ela também construiria tecnologias que , após a guerra,
melhoram a vida do homem no planeta. Em geral, esses teóricos consideram que a
mão da guerr4, e não a mão artística-educadora, seria aquela que , no fim das
contas, produziu a “evolução” da humanidade.
Porém, esse
raciocínio se mostra absurdo quando se considera o último fruto dessa árvore da
violência: a arm4 atômic4. Portanto, é uma ignorância
falaciosa usar os raciocínios para tentar justificar a existência da
irracionalidade, sobretudo essa que hoje ameaça o planeta, seja pela guerra
ou por um sistema econômico desumano-predador, que são as duas
faces da mesma moeda da involução iniciada naquele fêmur ameaçador.
Também considero
uma falácia perigosa considerar que só haverá paz quando todos os países tiverem bomb4 atômic4, como se a luz pudesse nascer do
cultivo da treva.
A guerr4 nos
mostra que a evolução tecnológica pode estar a serviço de uma involução
que faz o homem regredir a uma mente semelhante àquela do
proto-primata,
A humanidade não
começou naquele fêmur levantado em ameaça, ela começou naquelas mãos que
transfiguraram a realidade em arte, em linguagem, em cor e forma. São dessas
mãos que nasceram a educação, a solidariedade e a empatia.
( Este belo livro é apenas uma sugestão. A despeito das mãos
que se armam com pequenezas hediond4s, este livro não nos deixa esquecer a
grandeza que também pode nascer das mãos humanas , e que são a essas mãos
criadorasque devemos unir as nossas ,
seja qual for a nossa prática: seja no simples cuidado com a saúde da
nossamente e corpo, seja na ação comum
peladignidade coletiva)
Segundo a
mitologia, Hades é a divindade que habita a região trevosa muito abaixo da
superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.
Certa
vez, Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu
Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”,
pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de
Cronos, o Tempo, com Cibele, a divindade da fertilidade.
E foi em sua
neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa
semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é
fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres
mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores.
Hades se
apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma
imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer em Hades um desejo
por cores.
Num ato
condenável, ele raptou Perséfone para fazê-la morar lá embaixo .
Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com
espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.
Enquanto isso,
sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava
nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de poesia, e
ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a
segunda ao coração secava .
Zeus interveio e
foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone subiria para viver
entre nós, sua chegada nos trazendo a
primavera. Durante outra parte do ano, uma parte doída
para nós, Perséfone viveria lá embaixo . Desta maneira nasceu o inverno: o
período em que Perséfone desce para ir morar com Hades.
Mas para
nos confortar um pouco e minorar a tristeza pela sua ausência, Perséfone criou
flores que florescem no inverno. Foi assim que nasceram a Tulipa, a Angélica ,
o Crisântemo , a Orquídea e o Lírio que, como ensina Manoel de Barros, “brota de
monturos...”
Ontem começou o
inverno. Perséfone nos deixou...
Ainda bem que
pode nos socorrer e acalentar outra narrativa originária , uma
narrativa de autoria do povo tupi-guarani, cujo sangue também corre
nas nossas veias. Para esse povo,
o ipê é a árvore-filha mais potente e
perseverante de Pindorama, a Mãe-Terra; pois o ipê é capaz de
florescer o ano inteiro em resistente primavera, mesmo sob o inverno.
“Árvore da
Vida”, assim nossos povos originários chamam o ipê. Nem o inverno ,
nem os vis predadores armados com motosserra impedem o
ipê de dizer , florindo, o que o poeta Goethe disse em
versos: “O céu da teoria é cinza; mas sempre verdejante é a árvore da vida.”
Antes de ouvir
Chico, eu o li. Antes de ouvi-lo como música, eu o li como poesia que se lê
para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola, numa
época na qual ainda pairava sobre nós a dit4dura. Eu não tinha mais
do que 11 ou 12 anos.
Eu já sabia ler
livros : livros de história, de física, de química, de geografia e até livros
sobre literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência
que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas
desenvolver mera erudição ou o intelecto.
Foi a poesia
presente na canção popular que, quando criança, me fez
aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por
descobrir.
Li pela primeira
vez Chico numa aula de língua portuguesa dada no antigo primeiro grau. Ao invés
daqueles livros tradicionais que, na parte de interpretação de
textos, empregavam os “parnasianos”, a nossa querida
professora resolveu adotar um livro heterodoxo, plural :o livro
apresentava as letras de músicas dos compositores que participaram
dos festivais da canção .
Tais festivais
ainda eram recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram. Por isso, eu
não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro fazia
o que Foucault chama de micropolítica da resistência.
Quando
li “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que
Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é
fugir de um território habitual,costumeiro, ordinário.Como diz Manoel de
Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha,incluindo
as cartilhas que tentam codificar nossa percepção, palavras e
maneiras de pensar e agir.
Ao ler Chico, eu
não apenas me desterritorializava : eu me reterritorializava em um território novo
composto de sensações e afetos que não eram apenas pessoais.
Essa
desterritorialização me ampliava para além dos muros da
escola: me lançava no mundo, me inseria no cosmos. Foi a partir dali
que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e
“nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a
livros , muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos
queriam nos adestrar.
Embora eu não
entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico,
algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio
que foi ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo.