O olho vê,
a lembrança revê
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Livro Sobre Nada, p. 75.
- o transver e o transfazer
O prefixo “des” comumente exprime “negação”, “ação contrária”, “privação”, “afastamento”. Por exemplo, “desfigurado”: aquilo que é desprovido de figura. Contudo, somente de forma aproximada essa explicação linguística consegue traduzir o uso que Manoel de Barros faz do termo “des”.
No poeta, portanto, “des” é uma ideia : a ideia de uma ação. Não se trata de uma ação de simplesmente negar, contrariar, privar ou afastar, mas de “transfazer”. “Des” é uma ação de transfazer as coisas , retirando delas as suas utilidades. Transfazer: fazer poesia, desinventar sobretudo as palavras e dar a elas funções de não significar ou não representar, para que assim elas possam reinventar-se como sentido.
Nem todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e rima atinge essa condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do que rima e verso. Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto que faz Manoel de Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, à disposição de “inventar comportamentos” e vislumbrarmos novas possibilidades para a vida que vivemos. Mais do que nos fazer ler poesia, Manoel quer nos empoemar.
Em suas poesias e entrevistas podemos encontrar os principais frutos desse “transfazer”: desformar , desnome, desútil, des-ser, desinventar, descomer, desabrir, desuntensílio, desobjeto, desler, despalavra, enfim, deslimite.
Note-se que não são exatamente neologismos tais expressões. Não são palavras novas, mas o reinventar, o “transfazer”, das mesmas palavras ordinárias, comuns.
Mais do que negar ou significar uma privação, “des” expressa potencialização: um “transfazer” da coisa em outra. Comumente usamos o termo “trans” como algo que atravessa fronteiras, cercas, formas. Por exemplo: prática trans-disciplinar. O “trans” aqui indica um processo de ir além das fronteiras e amarras de uma única disciplina. O ‘trans”, portanto, é prática de fazer os conjuntos se comunicarem, descobrirem algo em comum. Por isso, nada mais “trans” do que a prática de comunicar, pois isso envolve que encontremos um espaço comum ao eu e o outro, um espaço do nós.”Trans-formar”: mudar a forma, fazê-la conectar-se com um conteúdo que nela não cabe, a não ser se ampliando, modificando e alargando seus limites, ou os apagando.
Uma coisa é o alicate, outra é a ideia de “cremoso”. O transfazer de uma coisa noutra faz nascer o “alicate cremoso”como desuntensílio da “Oficina de Transfazer Natureza”. Essa “oficina” é a própria poesia. E “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, afirma o poeta..Mais do que um prefixo, o “des” exprime uma ideia de ação que é transformadora.O “des” é a força que subverte o sentido habitual das coisas. Ele não é forma, mas processo. Por isso, ele é a própria essência da poética de Manoel de Barros.
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