Mesmo quando estive muito doente,
jamais fui doentio.
Nietzsche
Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo,
Manoel de Barros
Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo,
Manoel de Barros
Do ponto de vista do direito natural não há delito, pois não existe o justo ou o injusto nesse âmbito. No direito natural cada um segue seu conatus, segue portanto sua natureza, e faz tudo para conservá-la."Natureza" não é apenas o rio, a pedra, o bicho... Natureza é tudo o que existe e se esforça para perseverar existindo. Natureza é existência.Os seres que existem desejam o mais que podem continuar existindo, e esse desejo constitui um direito, o primeiro de todos: ele não está codificado ou escrito, ele não nasce de um legislador. Ele brota junto com o próprio nascer de cada coisa: é a vida mesma, a vida de cada coisa se esforçando para continuar viva. Nesse âmbito da existência, a vida não quer o Bem, o Mal, a Verdade...Ela quer apenas uma coisa: ela quer tão somente a si mesma, e a isto quererá com o máximo de força que tiver, pois a vida nada é senão esse máximo de força para ser vida. Esse é seu direito, sua força, sua saúde.
O direito natural não é o direito social ou civil .O direito natural antecede a formação da sociedade. Contudo, ele não é “anti” ou a-social, dado que tais prefixos nada são sem o social que lhes confere um sentido. Mesmo a ideia de “margem”, quando se diz que alguém ou algo está à margem do social, pressupõe já um social constituído.O direito natural não é anti ou a-social: ele é pré-social.
Esse "pré", no entanto, não indica anterioridade histórica no tempo. É um pré no sentido lógico e ontológico. Nenhuma sociedade pode eliminá-lo sem eliminar a si própria, pois o ontológico precede o sociológico. Pode-se dizer que o direito natural é uma abertura que toda sociedade mantém para a natureza: as sociedades diferem no espaço e no tempo, porém sempre o mesmo é o direito natural. É essa abertura que livra as sociedade de se enrijecerem em formalismos de toda ordem, dos quais o mais perigoso é o formalismo jurídico ( que tanto pode favorecer às espertezas antidemocráticas...). Toda sociedade é histórica, mas não a natureza à qual ela deve se abrir, e que a antecede como o eterno antecede o temporal. Toda autêntica "desobediência civil" deve ser, antes de tudo, uma obediência ou afeto pelo ontológico.
Contudo, é uma abstração imaginar que possa existir um direito natural a par de um direito social constituído, assim como é uma abstração imaginar que possa existir homem sem uma sociedade, tal como imaginaram os filósofos políticos clássicos. No direito natural não há o justo ou o injusto, isso é certo. Contudo, não há homem que exista em uma sociedade sem o justo e o injusto. De onde vem o justo e o injusto? Eles somente podem vir das regras instituídas pelo homem em sua liberdade de co-instituir sua liberdade com outros homens.O justo não é uma ideia pairando num Céu Inteligível, tampouco o injusto lança raízes em uma suposta essência Demoníaca do homem. O justo e o injusto são valores criados, inventados. São as regras que devem expressar tais valores.Mas por que tais valores foram criados? Os valores foram criados para serem os instrumentos de potencialização do direito natural do homem. Não há uma separação entre o natural e o social, pois o próprio natural é uma comunidade ontológica , uma democracia absoluta.
Nesse sentido, as filosofias da história e do direito civil abrangem apenas as sociedades constituídas e os modos pelos quais elas se relacionam com isso que as ultrapassa em potência, a natureza,e que está aquém de toda história. Logo, está aquém de noções como evolução e involução, progresso ou decadência. As sociedades progridem ou decaem , tendo em vista os valores que elas determinam para si mesmas. Por isso, é impossível a uma sociedade conservar-se em uma duração temporal sem fim. Quanto mais ela se esforça para isso, mais toma a feição de um império cujo mandatário se revestirá de atributos divinos sobrenaturais.
Decerto que uma sociedade não pode ter uma duração sem fim, como não o pode ter qualquer indivíduo que existe. É por isso que toda sociedade é histórica, inclusive os valores que a sustêm. Porém, de todas as sociedades históricas, a que mais tem potência para durar é a sociedade democrática: mesmo que ela não exista de fato, sempre existe a reivindicação dela. Onde ela não existe , ela é, por isso mesmo , reivindicada , desde o momento em que os homens cessem de servir ao déspota ou ao Estado, e busquem exercer a conservação de suas próprias potências, a começar pela liberdade de pensar, pois estas potências só podem aumentar no auxílio mútuo, e não no servir exclusivamente a um só, mesmo que seja o próprio ego. E quando a democracia já existe, há sempre a tarefa de potencializá-la. Nesse sentido, embora histórica, a sociedade democrática é a que mais é absoluta, vez que ela é a expressão social do próprio direito da natureza. Em Espinosa, "conservar a própria existência" não significa algo estático ou conservador ( no sentido moral ou político). Para o filósofo, somente o que é criado pode ser conservado. Assim, conservar a existência democrática é continuar a produzi-la, mantendo-a livre, viva, potente.
Ser absoluta não significa ser exatamente eterna. Ab-soluto: o que não pode ser dissolvido, soluto. Mesmo que sejam dissolvidas as regras e as constituições, não pode ser dissolvido o desejo de democracia do homem, desde que o homem seja de fato um homem, e não um servo ou escravo . O homem do poder e da tristeza pode querer dissolver a civilização, seja com bombas ou pela corrupção. Contudo, esse poder (potesta) não é ab-soluto, pois nenhum poder (potesta) é absoluto. Saber do limite desse poder, e resistir a ele, nada tem a ver com esperança, otimismo ou ingenuidade. Tem a ver com o pensar, com a filosofia, com a saúde, enfim, com a potência ( potentia). Ou a filosofia é isso, essa resistência criativa e democrática, ou então não é nada.
O Estado nasce quando delegamos nosso poder de agir, não o de pensar. O Estado surge da delegação do nosso poder de agir. A potência de pensar é sempre um fato natural, privado: o pensar é sempre potência indelegável ( ninguém pode pensar por ninguém, embora alguém possa ser o agente do pensar para um outro, desde que haja um bom encontro, um agenciamento). O pensar é privado não porque dependa da atividade econômica ou porque nasça no interior de um oikos, de uma casa , de uma família. Ele é privado porque ele nasce na imanência do espírito , enquanto ideia viva do corpo.
Segundo Espinosa, é da natureza humana querer mandar e resistir a obedecer.Esse direito natural é aplicado, primeiramente, no próprio indivíduo em relação a si : livre é quem manda em si mesmo, servo é quem é mandado por outro.Antes do obedecer a si mesmo há o mandar em si mesmo, como efetuação de uma potência.No estado de natureza tal direito natural leva os homens ao conflito. A sociedade civil nasce não para abolir esse direito/desejo, ela nasce para o ampliar e potencializar mediante as regras que os homens co-instituem na vida em comum. Mediante as regras, todos mandam . Uma regra na qual apenas alguns mandam, tal regra já não é mais regra. Como tal, ela pode ser destruída.Não exatamente destruída pela força bruta, mas destruída pela afirmação de uma regra que possa mais do que ela.Mesmo quando uma regra democrática proíbe um comportamento , tal proibição não é uma negação aos que, por ela, comandam, mas àqueles que não sabem governar-se.Se uma regra proíbe um comportamento que é lesivo a uns ou ao todo, o homem livre não verá nessa proibição algo que limite o seu desejo, pois o que a regra quer ele também o quer, dado que ela é uma expressão do seu desejo individual como parte de um desejo coletivo, de uma alma em comum.
Mas as regras jurídico-sociais valem apenas para o campo das ações públicas na construção do comum civil, elas não se aplicam ao pensamento . Este produzirá outro comum, outras regras: regras do conhecimento das coisas da natureza, incluindo a natureza da qual a sociedade é uma parte, e não uma realidade à parte.Assim, as regras sociais serão tão ou mais democráticas quanto mais expressarem o que o pensamento conhece ser as regras da própria natureza.
Em filosofia, "natureza" nada tem a ver com o mero instintivo ou biológico. O instintivo e o biológico são expressões da mesma natureza da qual são também expressões um poema, uma teoria científica, uma equação matemática. E nenhuma dessas expressões é uma expressão privilegiada. "Natureza" significa "essência", ou seja, algo que qualifica uma existência, e que somente a partir da existência pode ser conhecida e pensada. Em Espinosa, essência tem por sinônimo potência.
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