quinta-feira, 9 de novembro de 2017

a singularidade 2






As intensidades do girassol são forças do tempo?
Cláudio Ulpiano

Um girassol se apropriou de Deus:
foi em Van Gogh.
Manoel de Barros



O vídeo acima é a abertura do filme Os girassóis da Rússia , de Vittorio de Sica. O plano geral mostra uma realidade ampla, aberta ao  horizonte. Vemos incontáveis girassóis, um campo de girassóis. Difícil determinar os limites onde termina essa multitudo que parece não ter contornos, apenas limiares (que se estendem  ao azul do céu). Englobando a multitudo, mas sem encerrá-la em limites ou cercas, vemos um todo que a tudo horizonta. O todo é um plano de imanência, uma abertura, sem a qual não pode haver um chão, um território.
Então , da perspectiva desse todo a câmera parece que  vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto apenas olhávamos para o todo.À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um  vento , ora suave ora mais forte, que toca e agita a vida de alguns girassóis . Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos esses acontecimentos que atingem apenas parte da multitudo. Um mesmo acontecimento, o vento, provoca reações diferentes em cada girassol distinto, conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta o vento de forma firme; outro se curva e parece que vai se quebrar, triste.
Começamos a ver então que a multiplicidade é heterogênea, posto que composta de partes diferentes, singulares. Cada vez mais essas partes vão perdendo a relação exterior e extensiva com o todo , e começam a realçar seu estilo, sua assinatura, o seu ser um, sua existência única. Já não vemos mais o todo, o horizonte. Percebemos agora três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol.O girassol preenche toda a tela, que outrora era preenchida pelo todo. Vemos que uma singularidade pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos se explica por cores, texturas, molecularidades. Saímos de uma realidade extensiva e entramos em uma realidade expressiva.Entramos, enfim, em nós.
O girassol em sua singularidade continua a comunicar-se com o todo, porém através de sua diferença, de sua singularidade. O todo está inserido nele ( como essência íntima, diria Espinosa, como minadouro, complementaria Manoel) e ele está inserido no todo, no horizonte.Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não víamos a realidade intensa do afeto que o singular expressa.
Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que coloquemos, esse ser assim ampliado torna-se um rosto. Ele não ganha um rosto: ele se torna , por inteiro, um rosto. Ele devém uma superfície que  se explica apenas por valores expressivos, intensos. Em toda expressão há algo implicado. Toda expressão é uma explicação. A expressão explica, traz para fora, o que está implicado nela, o que lhe é imanente.A expressão é esse duplo movimento onde o dentro e o fora enfim se conjugam, potencializados em uma singularidade viva. Pois é isto que é um rosto : a vida colocada em um primeiro plano expressivo.
Então, o girassol parece viver/expressar alegrias, dramas, afetos, desejos: embora não possua cérebro e nervos, um girassol também pensa e sente.






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