No
mito, Narciso era conhecido por desprezar todos os outros seres, tanto os
humanos quanto os divinos. Ninguém, pensava ele, era digno de sua atenção, de
seu tempo, de seu interesse, enfim, de seu afeto. Dizem que ele guardava seu
afeto para quando encontrasse alguém que
o merecesse. Certa vez, ele despertou o amor de Afrodite, porém também a rejeitou.
Afrodite lhe mandou então uma maldição, uma maldição da qual o próprio Narciso
seria, ao mesmo tempo, o carrasco e a vítima.
Houve
uma ocasião em que Narciso teve que atravessar um lago. Pela primeira vez,
então, Narciso viu alguém que despertou seu interesse. Enfim, alguém chamou sua
atenção. Ele ficou inseguro e nervoso, temendo não ser notado por esse ser que
despertou seu desejo. Embora com receios, ele decide acenar para o tal ser, e
este também acena para Narciso. O coração de Narciso dispara, suas mãos
transpiram. Ele resolve sorrir. Para sua imensa felicidade, o outro ser também
sorri para ele. Narciso mal cabia dentro dele mesmo de tanta felicidade, enfim ele achou alguém que o merecia, que
estava à altura de seu afeto, de sua
alegria, de seus dias, de sua vida.
Ele
resolve então esticar o braço para tocar com a mão este ser amado...Feliz,
Narciso vê que o tal ser também resolve
esticar o braço para tocar aquele que queria tocá-lo. Quando as mãos de ambos
iam tocar-se, no momento exato em que a
mão de Narciso tocaria enfim o ser amado, a ponta de seus dedos toca a
superfície do lago, e logo após afunda no lago a mão inteira...
Narciso
contemplara apenas sua imagem, sua aparência refletida na superfície do lago.
No entanto, ele não conseguia parar de amar esse reflexo, esse nada. Era ele,
ao mesmo tempo, o amado e o amante, porém o objeto amado não podia amá-lo. Era
ele que tanto amava, e era ele também que o fazia sofrer. Ele se amava e ele
mesmo se rejeitava. A maldição de Narciso era amar algo que ele nunca poderia
ter , pois ele amava apenas uma aparência, um reflexo, que a corrente do lago fazia
passar.
Amar
exclusivamente a si mesmo é amar a ninguém, dado que é um amor que não pode ser
retribuído: aquele que ama apenas a si
mesmo quer ser amado por si mesmo, porém ele fica à espera que este “si mesmo”
o ame.... Narciso , na verdade, quer ser amado mas sem saber amar. Se ele não
sabe amar, não saberá amar , em primeiro lugar, a si mesmo.... O amor de
Narciso é, na verdade, uma recusa de viver de fato o afeto. Pois todo afeto
pressupõe o encontro com o outro, envolve outro ser, com um desejo que não é o
nosso, com uma vida que não é a nossa. O mito de Narciso relata,
simbolicamente, a recusa da vida social, da vida em sociedade, da qual sempre
fazem parte a divergência, as diferenças de perspectivas e a aceitação,
inclusive, de que o outro não ame o que a gente ama.
O
mito de Narciso é a narrativa simbólica que envolve o nascimento do eu, do ego.
O eu na criança nasce quando esta estabelece uma relação especular com os pais, que são o
seu "outro". É a partir do
outro que o eu se constitui, "negando" paradoxalmente este outro para ser si mesmo. Quando cresce , o eu desconhece que
é um efeito, colocando-se então imaginariamente como causa, como origem de si
mesmo. Então, ele passa a procurar no outro o si mesmo, para fazer do outro o
seu reflexo, no espelho de sua mente.
(Narciso, Caravaggio, 1597/99) |
(Narciso, Vik Muniz, 2005) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário