segunda-feira, 13 de julho de 2020

o poder democrático e o poder teológico-político


Espinosa nos fala de dois tipos de exercício do poder. O primeiro é o exercício democrático. O exercício democrático se caracteriza por ser a expressão daquilo que Espinosa chama de “multitudo”. É muito difícil traduzir essa palavra, ela não é bem uma “multidão” , muito menos uma “massa amorfa”. A  multitudo é a multiplicidade de singularidades  . “Indivíduo” é um termo sociológico que se opõe à noção de sociedade, como se indivíduo e sociedade  fossem duas realidades diferentes e às vezes antagônicas, como se vê no liberalismo-individualista e no socialismo  . Mas singularidade e multiplicidade  não são duas realidades, elas são uma só, ao mesmo tempo una e múltipla. Na multitudo a singularidade se vê fazendo parte de uma realidade múltipla e plural da qual a outra singularidade também é parte .A multitudo geralmente se manifesta em situações nas quais a liberdade de pensar se vê em perigo. Rebanhos são feitos de indivíduos dóceis, ao passo que a multitudo é a construção de um existir coletivo afirmador de uma sociedade aberta. A multitudo não cabe em nenhuma forma, seja a forma do rebanho, a  forma de uma classe ou a forma de um partido. As palavras “fORma” , “ORdem” e “nORma” têm uma origem comum : o termo “or”, que significa “padrão”. O termo “urdidura” também possui essa origem . E é por isso que quem tece tecidos ou bordaduras precisa mais do que urdiduras: também precisa construir tramas. As tramas são abertas e múltiplas, às vezes transversais noutras vezes curvas, ao passo que a urdidura é sempre reta.
Já o segundo tipo de exercício de poder é o “teológico-político”. “Teológico-político”, aqui, não é apenas a mistura de religião e política. É também isso, porém é mais coisas. Um poder se torna teológico-político quando a política se torna refém de alguma outra instância que é então tratada como se fosse um “Deus” . “Deus” no sentido de algo que requer obediência, sem questionamento. “Deus”  no sentido de uma “Ordem” ou “Norma” inquestionáveis, Ordem e Norma essas que , hoje, são cinicamente identificadas com  uma “Normalidade” rebanhesca de templos, incluindo os templos do consumo. Assim, o poder teológico-político também é aquele que faz do “Mercado” um Deus. É por isso que o poder teológico-político que prega a “prosperidade” individualista combina  tão bem com  o poder econômico-financista que tem no Capital o seu Deus. Ambos não aceitam outros deuses. Por isso, perseguem outras religiosidades, como as de matriz africana e os pajés; bem como veem como demoníacos os que agem em favor dos direitos dos excluídos, dos índios, dos pobres, dos trabalhadores e das minorias.

A multitudo, por ser potência, não pode ser reduzida ao poder instituído de uma forma determinada. A democracia se expressa em determinadas formas ( parlamento , instituições, partidos, etc), porém ela vai além do aspecto formal-representativo. A multitudo é esse aspecto da democracia que não se deixa formalizar totalmente.  A diferença entre as formas democráticas ( incluindo partidos) e as não democráticas reside no fato de que as não democráticas tendem a se enrijecer em formas que se fecham à mudança e à multiplicidade imanentes à multitudo . Os partidos democráticos são abertos à multiplicidade imanente constituinte da sociedade.A novidade de Espinosa, e ao mesmo tempo sua dificuldade, é que ele defende a democracia como uma dimensão também ontológica , e não apenas político-representativa. Não que a multitudo não caiba em ideias, porém ela só cabe na sua ideia própria: plural , aberta e heterogênea. Parafraseando Manoel de Barros: não se pode passar régua na multitudo.. Régua é "existidura de limite", ao passo que a multitudo não tem limites, e é por isso que ninguém pode determinar que "acabou a história" ou que "uma mudança não é mais possível". Não por uma questão de otimismo político, mas de consistência e afirmação ontológica





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