Espinosa nos fala de dois tipos de
exercício do poder. O primeiro é o exercício democrático. O exercício
democrático se caracteriza por ser a expressão daquilo que Espinosa chama de “multitudo”.
É muito difícil traduzir essa palavra, ela não é bem uma “multidão” , muito menos
uma “massa amorfa”. A multitudo é a
multiplicidade de singularidades . “Indivíduo”
é um termo sociológico que se opõe à noção de sociedade, como se indivíduo e
sociedade fossem duas realidades
diferentes e às vezes antagônicas, como se vê no liberalismo-individualista e
no socialismo . Mas singularidade e multiplicidade não são duas realidades, elas são uma só, ao
mesmo tempo una e múltipla. Na multitudo a singularidade se vê fazendo parte de
uma realidade múltipla e plural da qual a outra singularidade também é parte .A
multitudo geralmente se manifesta em situações nas quais a liberdade de pensar se
vê em perigo. Rebanhos são feitos de indivíduos dóceis, ao passo que a
multitudo é a construção de um existir coletivo afirmador de uma sociedade
aberta. A multitudo não cabe em nenhuma forma, seja a forma do rebanho, a forma de uma classe ou a forma de um partido. As
palavras “fORma” , “ORdem” e “nORma” têm uma origem comum : o termo “or”, que
significa “padrão”. O termo “urdidura” também possui essa origem . E é por isso
que quem tece tecidos ou bordaduras precisa mais do que urdiduras: também
precisa construir tramas. As tramas são abertas e múltiplas, às vezes
transversais noutras vezes curvas, ao passo que a urdidura é sempre reta.
Já o segundo tipo de exercício de
poder é o “teológico-político”. “Teológico-político”, aqui, não é apenas a
mistura de religião e política. É também isso, porém é mais coisas. Um poder se
torna teológico-político quando a política se torna refém de alguma outra
instância que é então tratada como se fosse um “Deus” . “Deus” no sentido de
algo que requer obediência, sem questionamento. “Deus” no sentido de uma “Ordem” ou “Norma”
inquestionáveis, Ordem e Norma essas que , hoje, são cinicamente identificadas com
uma “Normalidade” rebanhesca de templos,
incluindo os templos do consumo. Assim, o poder teológico-político também é aquele
que faz do “Mercado” um Deus. É por isso que o poder teológico-político que
prega a “prosperidade” individualista combina tão bem com o poder econômico-financista que tem no
Capital o seu Deus. Ambos não aceitam outros deuses. Por isso, perseguem outras
religiosidades, como as de matriz africana e os pajés; bem como veem como demoníacos os
que agem em favor dos direitos dos excluídos, dos índios, dos pobres, dos
trabalhadores e das minorias.
A multitudo, por ser potência, não
pode ser reduzida ao poder instituído de uma forma determinada. A democracia se
expressa em determinadas formas ( parlamento , instituições, partidos, etc),
porém ela vai além do aspecto formal-representativo. A multitudo é esse aspecto
da democracia que não se deixa formalizar totalmente. A diferença entre as formas democráticas (
incluindo partidos) e as não democráticas reside no fato de que as não
democráticas tendem a se enrijecer em formas que se fecham à mudança e à
multiplicidade imanentes à multitudo . Os partidos democráticos são abertos à
multiplicidade imanente constituinte da sociedade.A novidade de Espinosa, e ao
mesmo tempo sua dificuldade, é que ele defende a democracia como uma dimensão
também ontológica , e não apenas político-representativa. Não que a multitudo
não caiba em ideias, porém ela só cabe na sua ideia própria: plural , aberta e
heterogênea. Parafraseando Manoel de Barros: não se pode passar régua na
multitudo.. Régua é "existidura de limite", ao passo que a multitudo
não tem limites, e é por isso que ninguém pode determinar que "acabou a
história" ou que "uma mudança não é mais possível". Não por uma
questão de otimismo político, mas de consistência e afirmação ontológica
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