segunda-feira, 21 de agosto de 2017

o dom

Costumamos imaginar a memória como uma gaveta onde guardamos coisas, as lembranças. Assim, abrindo a gaveta-memória encontramos as roupas dobradas, roupas sem corpo, que assumem a forma artificial que lhes damos, dobradas, para assim caberem ordenadamente naquela caixa.
Mas não é isso a memória, senão a imaginação do que ela seja.A memória não é uma caixa. A memória se assemelha mais a lençóis finos com os quais cobrimos os entes, sejam eles   acontecimentos, pessoas ou coisas. Até mesmo estados da mente podem ser assim cobertos pelo tecido que fia a própria mente: é o que acontece  quando nos lembramos, por exemplo, de algo que pensamos, sonhamos  ou imaginamos.
O lençol assume a forma daquilo que ele cobre, o imitando na aparência, porém não no ser. Por vezes, cobrimos esse lençol que cobre com outro lençol que o cobre, e este ainda com um outro, e este com mais outro, de tal maneira que a mente deixa de ser um fluxo uno e indivisível para se tornar um justapor de camadas. Sorrateiramente, a mão do tempo furta o ser que estava embaixo, sem vermos, sem sentirmos, sem sabermos. No entanto,  pelo uso e costume os lençóis mantêm a forma do que cobriam , embora envolvam uma ausência, um nada. Quando se tenta retirar tais lençóis em busca da realidade coberta, chega-se à primeira camada, e sob ela mais nada. Então, a imaginação vem ocupar o vazio onde a coisa era, a coisa que se esqueceu que havia. Inventa-se uma metafísica, uma mística, para explicar o porque daquele primeiro lençol manter-se a imitar o vazio, como um fantasma. E assim nasce a palavra fabuladora,  que toma o lugar da coisa que lhe dava contorno e vida.

Mas há aqueles que não procuram debaixo das representações o que a representação oculta com o trio  imaginação-memória-palavra. Eles abrem a percepção para verem as coisas antes que a mente as cubra e as esconda, para depois se esquecer do que assim cobriu. Eles roubam do tempo o que o tempo nos roubou, restituindo o ser a ele mesmo, o ser que está sempre se fazendo ser. E o ser lhes devolve o sentido , como uma doação recebida, um dom. Espinosa chama a esse dom de intuição. Intuir não é cobrir com lençol , mas apreender cada coisa a partir de um horizonte que nunca se fecha.




Nenhum comentário: