Costumamos imaginar a memória como uma gaveta onde guardamos
coisas, as lembranças. Assim, abrindo a gaveta-memória encontramos as roupas
dobradas, roupas sem corpo, que assumem a forma artificial que lhes damos, dobradas,
para assim caberem ordenadamente naquela caixa.
Mas não é isso a memória, senão a imaginação do que ela
seja.A memória não é uma caixa. A memória se assemelha mais a lençóis finos com os
quais cobrimos os entes, sejam eles acontecimentos, pessoas ou coisas. Até mesmo estados
da mente podem ser assim cobertos pelo tecido que fia a própria mente: é o que acontece quando
nos lembramos, por exemplo, de algo que pensamos, sonhamos ou imaginamos.
O lençol assume a forma daquilo que ele cobre, o imitando na
aparência, porém não no ser. Por vezes, cobrimos esse lençol que cobre com
outro lençol que o cobre, e este ainda com um outro, e este com mais outro, de
tal maneira que a mente deixa de ser um fluxo uno e indivisível para se tornar
um justapor de camadas. Sorrateiramente, a mão do tempo furta o ser que estava
embaixo, sem vermos, sem sentirmos, sem sabermos. No entanto, pelo uso e costume os lençóis mantêm a forma
do que cobriam , embora envolvam uma ausência, um nada. Quando se tenta retirar
tais lençóis em busca da realidade coberta, chega-se à primeira camada, e sob
ela mais nada. Então, a imaginação vem ocupar o vazio onde a coisa era, a coisa
que se esqueceu que havia. Inventa-se uma metafísica, uma mística, para
explicar o porque daquele primeiro lençol manter-se a imitar o vazio, como um
fantasma. E assim nasce a palavra fabuladora, que toma o lugar da coisa que lhe dava contorno
e vida.
Mas há aqueles que não procuram debaixo das representações o
que a representação oculta com o trio imaginação-memória-palavra. Eles abrem a
percepção para verem as coisas antes que a mente as cubra e as esconda, para
depois se esquecer do que assim cobriu. Eles roubam do tempo o que o tempo nos roubou,
restituindo o ser a ele mesmo, o ser que está sempre se fazendo ser. E o ser
lhes devolve o sentido , como uma doação recebida, um dom. Espinosa chama a
esse dom de intuição. Intuir não é cobrir com lençol , mas apreender cada coisa
a partir de um horizonte que nunca se fecha.
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