A cisterna contém,
a fonte transborda.
William Blake
Physis designa o que brota e permanece em seu brotar. Quando uma expressão brota em um rosto, a expressão e o rosto formam o brotar de um afeto. Quando um pensamento brota na mente, o pensamento e a mente formam o brotar do pensar. Tudo isso, para os gregos, constituía a physis, e era parte dela. Physis não é exatamente o que é físico, material. Physis é o que somente existe brotando, na unidade dinâmica do brotado e do brotar.Um pensamento ou ideia não existe pronto no Céu. Não devemos confundir o brotado com o brotar. De todo brotar nasce um brotado, ao passo que o brotar nasce de si mesmo, brotando.
A árvore brota da semente. Mas a própria semente é um brotar da physis. A árvore também é um brotar: de seiva, de folhas, de oxigênio, de frutos e novas sementes. Quando da semente nasce a árvore, esquecemos que a árvore é um brotar da semente ainda continuando, pois esquecemos o brotar para nos ocupar com aquilo que brotou. Olhada dessa maneira, a semente não morreu para a árvore advir, pois a árvore é o devir da semente. E a semente, por sua vez, é a continuidade de um brotar que persevera nela e através.
A physis é um brotar que se faz semente, árvore, bicho, homem, rio, ar, oceano, cosmo.A physis brota e permanece em seu brotar: desse brotar brotam coisas, entes. Quando dizemos "semente", esquecemos que uma semente nasceu de outra coisa, e fará gerar outra coisa. Esquecemos que semente é uma relação com a não semente. Cortamos a semente do fluxo que ela é. Damos um nome, de-finimos: damos um fim; de-terminamos, damos um término. Fazemos isso, e a isso chamamos de conhecimento. Chamamos de conhecimento o desligar do brotado do brotar.
Sensível a esse brotar, Espinosa afirma que o conhecimento se faz com as ideias, sem dúvida. Porém, segundo ele, a autêntica ideia não determina ou define o objeto que lhe corresponde. Espinosa se vale de um termo que carrega consigo uma rica imagem. Espinosa afirma que a ideia "envolve" o seu objeto. A ideia de semente não determina ou define a semente, ela a envolve. A ideia está envolta naquilo que ela dá a pensar e conhecer. A ideia da semente cresce junto com a semente, pois ela também é viva, enquanto pensar. A ideia toma a forma do seu objeto, cobrindo seus ângulos, suas curvas, suas invaginações, suas dobras.E o objeto cresce envolto na ideia que nos permite não apenas pensá-lo, como também ser afetado por ele. A ideia não é uma cerca ou fôrma, ela é uma membrana, uma pele, uma superfície dinâmica. Enfim, ela é uma potência, e não uma forma. A forma não é o que limita uma potência, a forma é até onde uma potência consegue ir. Para Espinosa, a ideia nada mais é do que o próprio objeto visto de uma perspectiva diferente, e o objeto nada mais é do que a ideia vista de uma perspectiva diferente. Ideia e objeto são uma única realidade, porém vista de perspectivas diferentes. As perspectivas diferentes não são ilusões, elas também são reais, pois toda realidade engendra perspectivas: sob certa perspectiva, a árvore é a continuação da semente;sob outra perspectiva, a semente é a árvore ainda envolta em uma ideia que precisará crescer. Ideia e objeto são expressões de um mesmo brotar que não existe sem produzir coisas que brotam dele.O que caracteriza todo brotar é sua fecundidade, sobretudo a fecundidade de fecundar-se brotar.
Heidegger , por sua vez, chama a esse brotar que se sustenta a si mesmo de vigor. O
autêntico vigor não é ser apto a fazer isto ou aquilo, levantar enormes pesos ou ser capaz de hercúleos esforços, após os quais vem o cansaço. O autêntico vigor é
o de vigorar, brotando – e assim permanecer, sem se cansar.
Tudo o que tem vigência , extrai o seu existir desse vigor,
embora dele se afastando, para poder ser uma vigência, um ente determinado.
Diz-se que um homem atinge seu maior vigor quando alcança a
plena realização de suas potencialidades. Assim, quando adulto terá mais vigor
do que quando criança ou idoso. Mas chegado ao pleno vigor do adulto, logo já se
inicia o declínio do vigor enquanto força plena. Porém, o vigor da physis é o
vigor pleno já brotando. O brotar não é jovem ou velho, ele é pleno brotar. E
nada tem tanto vigor do que o que brota de si mesmo, aquilo cujo “si” é brotar:
sair de si para permanecer como brotar.
Manoel de Barros dizia que "o andarilho abastece de pernas as distâncias". O andarilho não é aquele que traça onde chegar, tampouco o move a nostalgia de retornar de onde partiu. O andarilho é aquele cujos passos brotam do seu desejo de construir uma linha de fuga. É do brotar dos seus passos que nascem os caminhos, mesmo que o andarilho caminhe em um deserto, ou sobre o mar, ou sobre o abismo. O andarilho andarilha escrevendo, falando, ouvindo,pensando, sentindo, vendo, amando, ousando, singularizando. O andarilho avança sobre o caminho que brota do seu criar caminhos, mesmo que o cerquem muros, impossibilidades, "nãos".Ele avança, não se sabe como, porquê ou razão. Ele avança , e não vai sozinho: envolvem-no multiplicidades, intensidades, aflorações, des-saberes, despalavras,horizontamentos; ele é envolvido e também envolve tais ideias, emprestando sua vida para que nela tais empoemamentos ganhem vida, e também nos empoeme, brotando.
(Van Gogh, A vinha encarnada, 1888) |
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