terça-feira, 23 de maio de 2017

azular

Em grego, "eros" significa tanto “amor” quanto “asas”. Na mitologia, Eros é um Daimon, uma dividade que não mora no Monte Olímpico, tampouco vive ele em lagos, florestas, cavernas ou debaixo da terra. Eros vive entre o ceu e a terra, ele habita um espaço de travessias, passagens. Por isso, a necessidade de asas. Porém, as asas  de Eros são asas de borboleta,  não são como as que têm os pássaros.  Enquanto as asas dos pássaros são feitas de penas, e com elas os pássaros já nascem , como se lhes fossem inatas, as asas da borboleta nascem como expressão de um processo de metamorfose.As asas inatas dispensam um aprendizado, pois o “instinto” as programou. Contudo, as asas de borboleta apenas nascem após um processo que parece uma  morte, mas é renascimento ( tal como parece que está morta a lagarta em seu casulo).
Para os gregos, Eros é “uma força que une”: onde há separação, onde há dois, Eros faz nascer um.Antes de tudo, Eros deve nos unir a nós mesmos, uma vez que o mundo muitas vezes nos faz existir separados de nós mesmos, cindidos, em desacordo com a gente mesmo. E é por isso que, querendo dizer sim, muitas vezes dizemos não; ou querendo dizer não ,dizemos sim; querendo nos aproximar, nos afastamos; querendo nos afastar, ficamos perto, mesmo daquilo que nos afasta de nós mesmos. Enfim,  querendo amar, odiamos.Se não estamos unidos a nós mesmos, em acordo com a gente mesmo, jamais nos uniremos de fato aos outros.Ao contrário, amaremos ao outro com a esperança que ele nos ame, e quem sabe assim possamos, mediante o outro, nos unirmos a nós mesmos. Mas esse amor jamais dá certo, pois ele equivale a querer não exatamente se unir ao outro, mas subordiná-lo a nós. Logo esse amor possessivo vira ódio, rancor, queixa.
Para Espinosa, amar a si mesmo é unir-se a si mesmo, esforçando-se para evitar fazer de si mesmo espectador ou público de si mesmo, seja nas coisas boas seja nas ruins que nos acontecem, uma vez que esse proceder imaginativo sempre cria cisão. Por essa razão, a autêntica união a si nunca é apenas união a si mesmo, e é por isso que amar a si nada tem a ver com amar apenas ao próprio ego.Como Narciso, o ego está sempre em relação consigo por intermédio de reflexos, aparências, idealizações, e não em um verdadeiro encontro. Quando verdadeiramente nos unimos a nós mesmos, vemo-nos como parte de um todo.Assim, não vemos apenas a nós, egoicamente, pois vemos também ao outro como parte diferente do mesmo todo.
É por isso que Deus, ou a Natureza, é , para Espinosa, Amor: ele é o que une. O Amor   nos une a nós mesmos nos unindo a ele, e unidos a ele nos unimos ao diverso que está unido a ele, diversamente.Através do Amor, aprendemos a amar o diverso de nós enquanto amamos a nós mesmos.
Espinosa chama a esse conhecimento do todo  de Ciência Intuitiva, ou Terceiro Gênero de Conhecimento.Não conhecemos o todo conhecendo cada parte dele, uma a uma, indutivamente. Tampouco podemos conhecer o todo sem conhecer suas partes singulares, naquilo que elas têm de únicas. O azul que está nos infinitos graus de azul não pode ser separado dessas infinitas maneiras que o expressam. Cada uma dessas singulares maneiras entra em relação com todas as outras, por intermédio do todo que ela expressa. Cada grau de azul é percebido e  visto com nossos olhos finitos, ao mesmo tempo que o azul enquanto todo é intuído pelos olhos do nosso espírito  como aquilo que antecede em potência azular cada grau seu de azul.
 “Intuir” significa: “apreender no interior o que está no interior”. Intuir é apreender imanentemente a imanência. Intuir nunca é colocar-se fora, tornar-se sujeito, e fazer do intuído um objeto exterior. Todos os graus de azul têm algo em comum: eles são expressões do azul. Conhecer o comum é prática do Segundo Gênero de Conhecimento. Este segundo gênero quem o faz é a razão. O segundo gênero conhece a relação entre os graus, a partir do que eles têm em comum. Nenhum grau é idêntico a outro, e é por isso que eles podem ter o azul enquanto o comum que os põem em relação, agenciados, enquanto diferentes.
Porém, como conhecer diretamente, nela mesma, a diferença que cada grau é? Como conhecer a singularidade de cada grau? Nenhum grau existe em si, como um ponto ou ego. Cada grau é a expressão de algo. Não se pode conhecer um grau separado da realidade da qual cada grau é um grau, uma expressão, um modo, uma diferença. Não há como conhecer o grau singular sem conhecê-lo como expressão do infinito azul que infinitamente se expressa em outros graus. Esse infinito azul não está fora do grau singular que o expressa: ele lhe está imanente, como Corpo do seu corpo, como Espírito do seu espírito, como Vida da sua vida. Intuir não é apreender o grau e depois o todo. Intuir é apreender na imanência do grau o todo , com seus infinitos graus. Para Espinosa, essa apreensão se assemelha a um clarão, como o de um relâmpago que percorre o infinito com velocidade infinita. Nunca se pode apreender o todo a não ser como imanência imanente a um grau singular.
O azul não está “dentro” de cada grau seu. Ser imanente não é ser “interior a”. “Imanente” vem de “imanare”: “ir para dentro do manancial”. “Manancial” é “fluxo incontível, irrepresável”.O grau de azul é um   ir para o manancial-azul, para ser mais azul intensamente.O manancial-azul desrepresa o grau de todo limite que o impede de ser mais azul . Quanto mais um grau vai para dentro do manancial-azul, mais o grau aumenta sua potência de expressar o azul, diferencialmente. O que pode limitar um grau de azul é outro grau de azul, quando estes não  se compreendem como graus, mas como o próprio azul. O todo não pode limitar um grau seu, pois isso seria limitar a si mesmo, o que seria  um absurdo.
Um grau de azul se torna mais potente não enquanto domina ou destrói os outros modos de azul. Um grau de azul se torna mais potente quanto mais potência ele tem de azular, afirmativamente. Ele se torna mais potente quanto mais de azul ele consegue expressar.

(Martha Barros, Poético Azul)



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