Quando a noite estrelada cobre o oceano, os peixes sob as águas dirigem seus olhos para cima, e com curiosidade inspecionam o espelho d’água, que é o único céu que conhecem , como limite transparente de seu mundo. A percepção dos peixes é atraída pelo tremeluzir de pontos luminosos que parecem sobrevoar a superfície . Os peixes não sabem o que são as estrelas. Se não sabem o que elas são, muito menos saberão o que são seus reflexos. Como diz Bergson, toda percepção é interessada, não importa se a dos homens ou a dos peixes. Ao verem aqueles pontos piscando, aparentemente ao alcance da ação que podem empreender de forma útil e pragmática, os peixes imaginam que cada ponto luminoso é um vaga-lume ao alcance de suas bocas. Então, eles partem para se apropriarem daquilo que seus olhos vêem: saltam e abocanham o vazio; retornam e saltam de novo, mas nada pegam.
Os peixes não são movidos por uma ilusão. Somente se eles soubessem o que são as estrelas, e confundissem os reflexos delas com elas próprias, somente nesse caso se poderia dizer que eles são movidos por uma ilusão, tal como diria Platão. Mas eles não sabem ou conhecem o que são as estrelas, tal como também parece não as conhecer Platão...
Os peixes conhecem muito bem o que são vaga-lumes, pois já os comeram em inúmeras situações quando de fato eram eles que estavam voando sobre as águas, e tal alimentar-se não foi uma ilusão: dele nasceu um conhecimento e, deste, uma ação.E desta ação também emergiu uma consciência que lhes possibilita uma recognição.O que move os peixes é o conhecimento dos vaga-lumes, que é inseparável da memória dos mesmos, e que vincula a percepção à recognição.Mesmo sem proferirem palavra, os peixes emitem opinião, como todo homem cuja percepção é governada pela recognição.Não é a ignorância que os move, pois ignorância é privação, e toda privação precisa ser explicada, embora ela mesma não explique nada de real. Ela é uma ausência, e nada que é ausência pode mover um corpo.
O que move os peixes é a presença de um conhecimento que eles têm dos vaga-lumes, e não a ignorância de conhecimento do que são as estrelas. Na verdade, o que os move é um conhecimento que não alcançou todas as realidades que ele poderia alcançar. Os peixes são movidos por um conhecimento que é um grau baixo de conhecimento, mas que é ainda conhecimento, assim como um grau menos intenso de amarelo é ainda amarelo, embora possam existir outros graus mais intensos do amarelo, nos quais o amarelo existe mais. E disso só sabe quem o experimenta, tal como o experimentou Van Gogh.
Os conhecimentos que não alcançam toda a potência que eles podem, e a isto ignoram, correm o risco de engendrarem mais danos a quem os segue do que o que comumente se chama de ignorância. É por isso que as crianças nunca fazem guerras ou se deixam tomar por dogmas ou fanatismos. A ignorância mais perigosa nunca é a de um objeto externo, seja estrela ou vaga-lume; a ignorância mais perigosa é a prática de um conhecimento que ignora a potência que o conhecimento pode. Um conhecimento assim tende a buscar poder ( potesta) , o que nada tem a ver com potência ( potentia). Quem ignora essa potência, ignora a si próprio, e se contenta em viver no grau mais baixo do que pode, pois é a medida do que conhecemos que dará contornos ao nosso modo de vida.
Somente o conhecimento pode libertar o homem de um conhecimento que não é exercido com o máximo de potência. O inimigo do conhecimento não é a ignorância em relação a objetos, mas ignorância do que pode o conhecimento. E tal ignorância não é um objeto, é tão somente um grau mais fraco que ignora que existem outros graus mais intensos.
Como diz Espinosa, é preciso, primeiro, conhecer o que é o conhecimento: quando isso acontece, percebemos que o conhecimento é uma atividade inseparável de um autoconhecimento de nossa potência de pensar e agir, enfim, de nossa potência de existir.
Todo conhecimento produz uma imagem de si próprio. Aqueles que apenas conhecem vaga-lumes, se autoconhecerão na medida desse conhecimento. Mas aqueles que também conhecem as estrelas, de alguma forma se autoconhecerão como possuindo algo também sideral e infinito, e aprenderão a ver esse infinito em todas as coisas, inclusive nos vaga-lumes.Em latim, um dos sentidos de desejo é desiderio : "seguir a estrela".
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