A utopia é uma maneira questionante, não passiva, de se relacionar com o lugar. Como se sabe, "topos" significa, em grego, "lugar". Assim compreendido, o lugar não é apenas uma parte do mundo físico, pois há lugares mentais, desejantes, incorporais, nos quais nunca se pode estar, apenas acontecer, devir. As palavras "estátua", "estático", "estar" e "Estado" se originam de um mesmo termo latino, stare , que significa "parada". Como dizem Deleuze e Guattari (1992), a etimologia é o atletismo do filósofo. Ela é um exercício do pensamento que nada tem a ver com as semânticas do dicionário, pois se trata de encontrar o acontecimento que dá origem às palavras, agramaticamente. Desse modo, há lugares que são de parada, como o é também um túmulo; são lugares de poder e de morte, enfim. Mas há lugares que são de processos, de devires, de metamorfoses, de agenciamentos. Os lugares de parada podem ser circunscritos por contornos ou limites, ao passo que há lugares, lugares quaisquer, cujas fronteiras são limiares em vizinhança com outros lugares deles diferentes.
É sempre com a utopia que a filosofia se torna política (..): ela [a utopia] designa etimologicamente a desterritorialização absoluta (..). A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, “Erewhon”, não remete somente a “No-where”, ou a parte Nenhuma, mas a “Now-here”, aqui-agora. (DELEUZE;GUATTARI,1992, p. 130).
A geometria euclidiana pensa o lugar como algo que mora dentro de uma cerca, de um limite determinável; já o lugar da utopia cresce à medida em que ousamos habitá-lo: são lugares que crescem conforme crescemos, tendo a liberdade como tamanho.A utopia compreende um lugar ligado umbilicalmente à Terra, o infinito. O lugar, o topos, expressa um "aqui"; já o "u" de "utopia" significa um "agora". Erradamente se traduz "utopia" como "não-lugar", dando à partícula "u" a função de negação ou privação. A "utopia" é um "aqui-agora": de tal modo que é no agora que podemos libertar o aqui de seu imobilismo, mas também é no aqui que podemos pensar o que desejamos ser a partir de agora , e não a partir de amanhã...O aqui-agora não é espera, não é esperança: é liberdade em ato, ato da potência, no espaço e no tempo. Todavia, não se trata de um espaço meramente físico, ou de um tempo tão somente cronológico.É um espaço de criação que pede um tempo que é de ruptura, de inovação.
Do ponto de vista físico, os lugares são simultâneos: eles estão dados, sem sucessão, em um mesmo presente histórico, cada um com sua respectiva identidade. Do ponto de vista da utopia, os lugares são coetâneos: eles co-existem e se conectam, pela diferença. A coetaneidade dos lugares utópicos: espaços de rizoma e heterogênese. Do ponto de vista da física social, estudantes, trabalhadores, artistas, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, favelados, intelectuais, etc., ocupam lugares euclidianamente estanques,molares, delimitados que são por contornos determinados, muitas vezes construídos com arame farpado, dado que um Paradigma os segmentaliza. Da perspectiva da coetaneidade da utopia, esses lugares se abrem e se comunicam pela experiência de um agora que faz do aqui o espaço comum daqueles que, em devir-minoritário, sintagmático, desejam criar agora um outro lugar que seja aqui, e não em outra vida ou em outro mundo. Como dizem Deleuze e Guattari, " a revolução é a apresentação do infinito no aqui-agora : a revolução é a desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à nova Terra, ao novo povo" (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 131).
Os que nascem em um mesmo lugar se reconhecem chamando-se reciprocamente de "conterrâneos":os que têm "uma terra em comum", um mesmo natal.Como desterritorialização absoluta, a Terra de que falam Deleuze e Guattari não se confunde com um território ou Estado. Somente afirmando essa Terra é que nos tornamos conterrâneos de tudo o que é vivo, e nos reconhecemos pela Diferença que escapa a toda recognição, uma vez que nosso natal é a terra incognita: esta terra está onde se afirma uma linha de fuga. A célebre pergunta de Espinosa, “o que pode um corpo?”, mais do que pretender uma resposta, ela nos quer pôr diante de uma incógnita.Toda potência é uma incógnita.
A afirmação da Terra é dupla: ela implica a coetaneidade dos lugares vividos como lugares de diferenças em conexão e agenciamento para instituir o comum, e supõe também a experiência de um devir planetário que nos torna conterrâneos por aquilo que criamos e ousamos, contra todo fascismo e apequenamento da vida.A Terra é sempre terra incognita: “o que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita nunca reconhecida , nem reconhecível” ( DELEUZE, 1988, p. 224). Esta terra incognita é a Terra que nos torna conterrâneos da criação , e que invoca um povo que não deve ser reduzido a uma realidade pertencente a um território psicossociológico. O povo é um agente coletivo que povoa sem padronizar ou segmentar. O povo não é maioria, ele é um devir-povo sempre minoritário. O filósofo não fala por esse povo ou no lugar dele, o filósofo fala diante dele, ele “fala na frente”[1].
[1] A expressão “fala na nossa frente se você tem coragem” , não tem por alvo exatamente enunciados duvidosos que se quer combater; diferentemente, essa expressão também expressa o desejo de constituição de um lugar coletivo como coragem de um devir-verdade.Sobre a “coragem” como virtude filosófica, mais potente do que a “philia” : Michel Foucault, Le courage de la vérité, Paris, Gallimard,2009 ( especialmente a referência a Espinosa , que não define a filosofia como “philia”, mas como “emendatio do intelecto” e “salut”: emendatio, ou correção, do instrumento, o seu perseverante “polimento”, para que assim alcancemos a salut, cuja tradução adequada é “saúde”, e não “salvação”, daí o aspecto “crítico e clínico” que deve acompanhar um modo de vida filosófico).
Nenhum comentário:
Postar um comentário