Quem canta
ora duas vezes.
Santo Agostinho
Schiller
Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam. Schiller
Li
certa vez um conto no qual se narrava a seguinte história: o cenário era a
manhã de um dia, uma manhã comum. Não se dizia que era um dia especial:
feriado, domingo ou aniversário . Era a manhã de um dia , como todos os dias. A
cena se passa em um quarto. Um casal acaba de acordar. Não sabemos ao
certo se são casados, namorados,
amantes. Ele ainda está deitado; ela se encontra sentada diante da penteadeira.
Ela penteia o cabelo olhando-se no espelho. Ela não se inspeciona, não critica algum defeito próprio, nem reclama de
algo a ser melhorado, tampouco se compara com alguém ausente. Ela simplesmente
se olha e se vê. Ela não se idolatra, como fez Narciso. Ela apenas se olha, e
não apenas a si se vê. Seu rosto não imagina ou se lembra; ela não está no
passado , tampouco se ausenta em uma realidade diferente daquela. Seu rosto,
seus gestos, seus olhos, tudo nela é um sim. Um sim àquilo que acontece, como
acontece, sem ter um porquê, uma razão, uma explicação. Tudo se basta, se
realiza, como tem de ser. Ela cantarola uma canção. Não canta a letra inteira,
canta apenas o refrão, o ritornelo,o retorno de um elo, bem baixinho. Mais do que a letra, ela canta o ritmo,
tornando-se ela mesmo esse ritmo simples da canção. Assim como esta, ela dura,
sem olhar no relógio o tempo dessa duração.
De
repente, o namorado a olha. Ele fica vidrado, parece contemplar uma obra de
arte perfeita. Não era um quadro, uma peça, um filme ou uma ópera o que ele
via. Era mais do que isso, e parece ser a isto que aquelas artes buscam imitar.
Era a vida. Não a vida teorizada ou romantizada. Era a vida, uma vida não
apenas física, não apenas espiritual, mas a união dessas coisas, bem ali, aqui,
e não acolá ou além. Ela se volta e vê o
amado a vê-la. Ela se assusta com a expressão que vê, e pergunta: “-O que
foi!?”. Ele quase salta da cama e lhe
roga:
-Repete
o que você estava fazendo, faz de novo!
- Mas
o que eu estava fazendo? Não estava fazendo nada....
- Você
estava se penteando, se olhando, cantarolando...
-
Ah...era isso? Nem notei....Era assim?
A
mulher tenta repetir o que fizera. Porém , agora eram apenas um arremedo os
gestos, uma cópia somente: a cópia de um modelo que se perdeu, junto com aquele
tempo idêntico à canção. O homem se limita a dizer que não era assim que ela
estava fazendo, que era diferente....Por mais que ela tentasse, o que foi não
volta....
Ela
não conseguia reproduzir de forma calculada, encenada, prevista, o que
acontecera de maneira espontânea, não posada. Contudo, não estava no passado o
que se perdera. Estava ali naquele presente, em todo presente que passa. Era
uma relação com o presente que presentemente se pensava. A ilusão está em achar
que o presente que se vive de tal forma espontânea é aquele que passou e foi se
esconder na memória. E que se evocarmos bem esse fantasma, teremos de novo a
carne, o osso e o espírito do que foi vivo. Contudo, o que o homem vivera não
foi o que se pode evocar como lembrança. O que ele quer é reencontrar aquele
presente que parecia não passar, e que está mais na percepção, essa janela do
espírito, do que na memória, que é seu porão.
Ela
vivera o que se pode chamar de graça. A
graça é o que se recebe sem fazer pedidos e imploramentos. A graça vem quando
menos se espera, e vem de graça, sem preço; de tal forma que recebê-la não
constitui empréstimo, tampouco dívida. Porém, não se recebe a graça sem
achar-se em gratidão. Quem mais é grato mais graça acha nas coisas que o
mercado diz serem inúteis e não valerem nada.
Nunca a graça vem quando estamos no palácio ou no pódio. Na verdade, a
graça nunca vem, ela sempre está: ela é essa experiência espontânea, inocente,
de não mais julgar, medir, contar, objetificar, criticar. A graça é “fazer o
nada aparecer”, diz Manoel de Barros. Não o nada de coisa alguma, mas o nada
que não é nenhuma coisa, que não é coisa.
Quem
vive a graça sabe que a vive, embora não possa conhecê-la enquanto a vive. Pois conhecer é fazer de um
acontecimento um objeto, é sair do
acontecimento enquanto todo indiviso. E quem vê a graça não sabe como agir
sobre ela, pois lhe falta a memória daquilo, falta-lhe o conceito, embora não
lhe falte o ser. De algo novo não se tem a memória. Na memória está o já visto
e vivido, o já experimentado. A graça é a novidade que se dá sem avisar,
celestando o ínfimo.
A
graça é a própria vida que acontece em nós a despeito de nós não a vermos.
Afastar-se da graça constitui a desgraça. Esta não é exatamente o infortúnio do
fato trágico, tampouco a desgraça mais danosa é a perda da saúde ou das posses.
A pior das desgraças é uma vida mecânica, pragmática, uma vida que se afastou
de si própria, e que só vê graça em piadas ou no mero cômico a zombar dos
outros.
Conquistar
essa graça espontânea requer o abandono de toda ideia de conquista; alcançar
essa graça pede que se ceguem os olhos e se cale a boca para tudo aquilo que se
via e se falava como certeza e plano de vida.
Quem se acha na graça se encontra, e sempre cantarola uma canção, por
mais simples que ela seja. Não precisa
cantar a canção inteira, basta apenas o refrão: que é o retorno de um elo, como ritornelo , que nos liga mais do que à canção.
(mitologia: As três Graças) |
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