Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.
No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.
Manoel de Barros
Além disso, o poeta não diz “eu-te-amo” apenas ao que é belo , ou ao que o gosto médio diz ser amável. Ele não ama sob os critérios da recognição dos valores dominantes. Ele não diz eu-te-amo exclusivamente a isto ou aquilo: o que ele diz amar não se torna,para ele, um ser à parte. Ele diz eu-te-amo a todas as coisas, de tal modo que cada coisa se torna parte singular de um todo que é processo, potência.Ele diz eu-te-amo a todas as coisas porque primeiro ele o diz ao todo do qual cada coisa é uma parte , uma expressão.
O poeta não diz apenas em versos ou palavras, ele o diz em gestos,em pensamentos, em ações.Ele o diz também com o seu corpo e com sua existência inteira, e desse amor não nasce ciúmes ou traições.Somente sendo fiel a esse amor é que o poeta é fiel a si mesmo.Esse amor não o torna dono do que ama,nem se alimenta de esperanças.Por esse amor ele se liberta e liberta o que ama: no poema que de fato vive e cria, e não em promessas.
Espinosa dizia que a função da filosofia é nos produzir um olhar sinóptico, um olhar que liga cada coisa ao todo. Um olhar que vê não apenas uma coisa e depois outra, mas a conexão entre elas, o meio. Tudo está conectado com tudo: a vitória está conectada com a derrota, o acerto está conectado com o erro, a verdade está conectada com a falsidade, o juiz está conectado com o bandido, a razão está conectada com a imaginação, a realidade está conectada com o sonho. Estar conectado não significa estar subordinado, ou que um é superior ao outro. O importante, o que dá sentido aos termos de cada relação , é o que está no meio, é a própria relação. Quando nos colocamos na perspectiva da relação, percebemos que juiz e bandido, razão e imaginação, acerto e erro, etc., são termos relativos não apenas uns aos outros, mas relativos à relação que lhes dá um sentido.
Todavia, afirmar a relação nada tem a ver com defender o relativismo.O relativismo nasce quando se supõe que bandido e juiz são o mesmo, assim como a verdade ou o erro. O relativismo geralmente segue de mãos dadas com o ceticismo e o cinismo,uma vez que reduz a relação aos termos.Mas quem dá as mãos ao ceticismo finda por andar em círculos, ao passo que quem as dá ao cinismo cedo descobrirá que se encontra sozinho. Somente a compreensão, como diz Espinosa, pode conduzir-nos pelas mãos e nos levar para onde já estamos.E lugar onde estamos é sempre o de uma relação, a começar pela relação de cada um consigo mesmo.
Por isso, quando nos colocamos na perspectiva da relação afirmamos apenas ela como necessária, de tal forma que compreendemos que, sob uma outra relação, o que hoje é bandido pode se tornar um justo,ou o que sob determinada relação é erro sob outra poderia ser acerto, ou o que sob determinada relação é ensino pode ser aprendizado sob outra relação. Através da relação e da conexão cada coisa se liga não apenas a outra que lhe seja oposta, ela se liga também ao todo e , através deste, a ela própria,para assim mudar, devir, (re)inventar-se.
Sob determinada relação, a droga é veneno; sob outra, remédio. Todavia,isto não significa dizer que ela nunca é veneno .Ao contrário, significa dizer que nem sempre a droga é veneno, ou que nem sempre a razão é razão:sob certa relação, a razão pode ser veneno, o juiz pode ser bandido, e o bandido pode ser um santo. Pensar as coisas sob o viés da relação é pensar como é produzido o sentido que lhes atribuímos, e que este sentido sempre está inserido em uma prática que nós mesmos construímos, mesmo que passivamente. Enquanto pensarmos a relação apenas em termos duais ( juiz-bandido, verdade-falsidade) corremos o risco de ficarmos reféns das dicotomias e dos discursos que se alimentam do preto e do branco, do não e do sim apenas.
Na pintura, o discurso racional sempre se expressou com o predomínio da forma, do limite, em detrimento da cor.O discurso passional, ao contrário, sempre realçou a sombra, o claro-escuro, o fundo negro, as trevas...Em ambos os casos, sempre se colocou a cor em segundo plano. Sabe-o disso não apenas quem pinta : a cor desborda os limites, bem como introduz uma pluralidade expressiva irredutível à gramática redutora do preto, branco, cinza e sombra. Pelas cores, percebemos que a sombra não é a ausência da luz ou o efeito de um princípio ativo distinto da luz ( a treva). Pois as cores também produzem sombras, como se o pode ver em Vermeer.
O olhar sinóptico não é um olhar relativista ou que aceita, resignadamente, que tudo é igual,homogêneo. O resumo de algo às vezes é dito “sinopse”. Para fazermos a sinopse de um livro ou filme, é preciso que o tenhamos visto ou lido. Mas quem viu, inteira, a própria vida? Em princípio, somente podemos fazer a sinopse de um dia que vivemos à meia-noite do mesmo.Essa idéia , porém, confunde a sinopse com a reprodução abreviada do que se viveu ou do que se teve a experiência.
Quem viu, inteiro, Deus ou a Natureza? A experiência com o infinito nunca pode terminar, como se termina a leitura de um livro.Quem leu um livro se torna apto a relatar o que leu.Mas e quem viu Deus ou o Absoluto,do que se torna capaz de narrar?E deve fazê-lo em prosa? Ou apenas em versos o conteúdo do que viu pode caber?
Quando Espinosa emprega o termo “sinopse” ele está a querer dizer que o infinito está resumido em cada coisa, por mais simples que seja esta coisa, não importando se ela é uma vitória ou uma derrota, uma dor ou uma alegria, um idoso ou uma criança que acaba de nascer. Enquanto vivemos o dia, e o tomamos mais como algo que passa do que como algo que dura, não conseguimos experimentar/viver cada parte dele como o resumo dele mesmo. Se a isto soubéssemos enquanto o vivemos, seríamos como um artista a criar uma obra, dado que o todo não é um texto pronto,mas uma virtualidade , uma matéria ou potência a criar. Então, quando à meia-noite fazemos uma sinopse do dia, o fazemos segundo as possibilidades existenciais daquela parte do dia, e não segundo toda a potência que foi o dia inteiro. Inclusive,parte dessa potência que escapa à consciência pode ser melhor resumida e expressa em um sonho que nos desperta no meio da noite, fazendo-nos compreender algo que não percebemos durante o dia.
O que vale para um dia vale igualmente para uma vida inteira: cada momento de uma vida é um resumo da vida inteira. Quem descobre isso, e o vive, olha não só a parte,o resumo, mas o todo, o que está sempre a se viver,pois o todo é sempre maior que cada parte sua, e é maior até mesmo que a soma das mesmas.É surpreendente pensar assim:o dia que vivemos é maior do que as partes dele que vivemos, assim como é maior que cada parte dela a vida nossa mesma. É maior não como um pé que não cabe em um sapato, ou um livro que não cabe em uma bolsa. É maior porque torna maior cada parte que a expressa,assim como um tom mais vivo de azul torna mais azul o grau de azul que o expressa.Quando uma parte se liga ao todo do qual ela é uma expressão, ela se torna maior porque ela,através do todo, se liga a todas as partes que expressam o mesmo todo: embora única e singular, ela se descobre ligada ao inumerável que expressa o mesmo todo de mil outras perspectivas, e nenhuma dessas outras perspectivas é a dela própria, o que acentua sua diferença, ao mesmo tempo em que a liga e a integra ao todo que é sua alma heterogênea.
Cada parte de uma vida é uma sinopse de uma vida inteira, embora a vida inteira seja maior do que a mera soma de suas sinopses. De nossa vida inteira vivemos quase exclusivamente a parte atual, a mesma que a cada momento passa. Mas o que passa é a parte atual, não a vida inteira, que é sempre virtual. A parte atual é governada pela percepção, ao passo que a vida inteira somente é vivida pela memória,pelo pensamento e mesmo pela imaginação.
O olhar sinóptico, porém, não é um olhar da percepção, da memória ou da imaginação: ele é o olhar da alma que, enfim, se tornou inteira, sabendo-se parte do que é infinito, e o infinito é a multiplicidade do que existe de infinitas maneiras. O olhar sinóptico é aquele que vê cada coisa finita como um resumo singular do infinito, uma vez que o infinito lhe está imanente como aquilo que nunca a deixa ser finita, limitada. Para ligar cada resumo a outro é preciso, antes, ter a experiência do todo, e este nunca é um livro ou texto. Ele se assemelha mais a uma música:não a música que está em uma partitura ou cd, mas a música que flui, que dura, e que faz de nós mesmos o seu intérprete, de tal modo que apreender tal música não se faz sem que criemos e aperfeiçoemos nosso próprio estilo, tal como o artista, o músico, que ama tanto o tocar quanto o que precede e prepara o tocar: o estudo,o treinar,o aperfeiçoar, enfim, o esforço.
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