Em grego, “Eurídice” não
é apenas um nome próprio, o nome de uma pessoa. Na “Sabedoria dos Mistérios”,
Eurídice é um dos nomes da alma. É um paradoxo a união dos termos “sabedoria” e
“mistério”. A filosofia acadêmica separou esses termos, os fez inimigos. Sabedoria,
propala o acadêmico, é o que desfaz todo mistério. A razão é loquaz e
calculadora. É discursando teoricamente , ou matematizando quantitativamente,
que a razão crê vencer o mistério.
“Mistério” e
“místico” têm uma raiz comum: “mys”, que
significa “fechar a boca”. Não se trata
apenas de fazer silêncio. Os estoicos diziam que é mais fácil fechar a boca
para que nela não entre alimento ou bebida em excesso do que fechá-la para
impedir que por ela saia a palavra incauta. Espinosa ensinava, por sua vez, que muitos reis sabem controlar, mandando, em
legiões; porém , não são poucos os reis que perdem seus reinos por não saberem
mandar nas palavras que saem de suas bocas...
“Mys” significa fechar a
boca que apenas tagarela, que tão somente emite opinião. O mítico fecha essa
boca reativa, para assim desejar abrir outra boca . Esta usará também as
palavras, mas não dirá apenas palavras no que dirá. Os místicos também fecham
aquela boca prosaica para a boca que canta possa cantar.
Orfeu é o iniciador desse
canto místico. Ele cantava porque queria
dessa forma expressar seu afeto por Eurídice, para que esta também o fosse. É
para a alma que se canta, e é tendo uma que se pode cantar.
Quando Eurídice , morta,
vai ao Hades, Orfeu para de cantar. Mas
o poeta não se resigna: ele resolve ir até onde nunca foram antes os homens, tampouco os deuses. Ele decide ir
ao Hades, ao Inferno. O poeta tem a coragem de ir à morte buscar sua vida que
aquela aprisionou.
Diferentemente do “rio de
Heráclito”, que não tem começo ou fim, e nele se entra apenas pelo meio, pelo
fluxo,pelas margens, o rio que leva ao Hades nasce aqui, no tempo, e morre às
portas do Hades: ele tem apenas um sentido, sempre vai e nunca volta.
Quando chega ao Hades, o
poeta vê que nesse lugar há apenas uma noite absoluta. Nesse lugar escuro sua
Eurídice vivia como sombra. O escuro nada tem de mistério. Mistério quem tem é a palavra que canta . Não é a morte o mistério, o
mistério é a vida.
Então, em meio àquele
escuro, o poeta começa a cantar. Ninguém sabe ao certo o que Orfeu cantava. Talvez o poeta
cantasse o que os autênticos poetas
sempre cantam, de tal modo que é ouvindo um Cartola ou um Noel que podemos ,
através deles, ouvir o que cantava Orfeu.
É cantando, e não
chorando ou lamentando, que o poeta reencontra Eurídice, sua alma. Se lágrimas
ou dor existem no poeta, são lágrimas e dor choradas e sentidas também pelas
palavras, de tal modo que mesmos tais coisas o poeta transforma em canto.
Hades, o deus daquele
lugar, concede então ao poeta o direito de levar Eurídice de volta. Hades
somente disse uma coisa, que não era bem uma ordem, era um sábio conselho:
“você vai à frente, Eurídice irá imediatamente atrás de você. Não se vire para
olhar para Eurídice enquanto não estiverem totalmente fora daqui.”
O poeta então começou seu
retorno ao mundo dos vivos, com sua alma atrás de si. No entanto, inseguro e
querendo conferir se Eurídice estava de fato ali, o poeta olha para trás....Ele
soube então que Eurídice ali estava, porém a alma sucumbiu a esse saber que
queria objetificá-la. Ela se objetifica, vira coisa palpável: uma estátua de
sal que, no entanto, se desmorona.
Tudo que obtemos mediante
uma arte, e não por herança ou aquisição, tal realidade existe apenas por conta
de uma graça, de uma espontaneidade, que
depende mais de nós mesmos do que das coisas externas. Assim, tais realidades
lúdico-poéticas, que é onde vive a alma, logo desaparecem e morrem se quisermos
provar sua existência por objetificantes aferições.
Há um conto russo no qual
o amante, ainda deitado na cama pela manhã, vê a amada sentada diante da
penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção . Ela apenas se
olha, não se julga ou se mede , tampouco se compara a alguém que não esteja
ali, que lhe fosse mais bela ou mais feliz. Ela está plenamente ali, naqueles
gestos daquele corpo, não sendo apenas um corpo, porém. O amante fica
paralisado contemplando...A amada se percebe olhada, se vira e, assustada,
pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que fazia. Ele então lhe pede:
“Repete o que você estava fazendo!...” , “Mas o que eu estava fazendo?”, “Você
estava se penteando, se olhando, cantarolando...”. “Era assim que eu estava
fazendo?”, tenta a amada repetir o que acontecera. “Não, não é assim que era...”,
diz o amante. Por mais que a amada tentasse, ela não conseguia repetir , de
forma programada, o que fizera de forma espontânea. Ela estava vivendo...
Ele percebeu então que
vira o que os religiosos chamam de “graça”, uma espontaneidade que não explica
por outra coisa senão por si mesma, como uma dádiva idêntica à própria
existência que vivemos, sem que haja uma separação ou hiato entre o que vivemos
e o que sentimos e pensamos. A graça
acontece não quando a gente quer, não podemos exigir que recebamos o que
somente podemos receber por dádiva e graça. E aquilo que assim recebemos sempre
se parece com nada.
Não é pelo querer que se alcança esse estado.
O querer nos afasta dele. Quando vemos a presença da graça, quando somos sua
presença, achamos o que dizer cantarolando, como o fizeram Orfeu, Noel,
Cartola.
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