(trecho do capítulo que escrevi neste livro)
A filosofia é Grega, isto todos sabem. Todavia, o filósofo vem de uma zona de vizinhança entre o ocidente e o oriente. O filósofo vem das bordas do mundo grego. Se a filosofia tem seu nascimento em Atenas, constituindo assim o primeiro capítulo de sua história, o surgimento do filósofo nos mostra a insuficiência da história da filosofia para compreender essa questão, uma vez que o filósofo vem de fora dessa história: “os filósofos são estrangeiros, mas a filosofia é grega” (DELEUZE e GUATTARI,O que é a filosofia?, p.116). A relação da filosofia com o filósofo pede uma geofilosofia.
O filósofo não habita exatamente uma fronteira, ele habita limiares. O ser que habita limiares recebe o nome de daimon [1] . Na Grécia, o daimon possuía asas[2]. Eram asas de borboleta, e não de pássaro. Os pássaros já nascem com asas, ao passo que o nascer das asas da borboleta foi precedido por uma metamorfose. As asas do daimon são os atributos espinosistas de um sujeito larvar. O conceito sobrevoa o plano de imanência com asas que são a expressão de uma metamorfose, de uma anexatidão.O conceito também tem asas ( O que é a filosofia?, p 58).
O daimon é o habitante de um espaço liso que só se deixar habitar como nômade. O nômade não é exatamente quem muito se movimenta de lugar a lugar. Como diz Manoel de Barros, o nômade é um Andarilho, um Andaleço que "abastece de pernas as distâncias" e "mora debaixo do próprio chapéu". O filósofo mora debaixo do conceito que ele cria: o conceito “é vagabundo, não-discursivo, em deslocamento sobre um plano de imanência” ( O que é a filosofia?, p. 187).
É na Grécia do século V a.C que o filósofo encontrará condições favoráveis ao exercício do pensamento. Trata-se de uma sociedade movida pelo gosto da opinião e pela associação, da qual emergirá o afeto da amizade; por isso mesmo, é nessa sociedade que também há o gosto por desfazer a associação, pela rivalidade. O filósofo chega a Atenas como estrangeiro. Se a filosofia tem sua história, o filósofo tem apenas devir. É o filósofo que faz a filosofia entrar em um devir-estrangeiro, de tal modo que ela, a filosofia, entra em relação com a não-filosofia: inventa mais do que amigos, inventa intercessores.
Deleuze e Guattari afirmam que faz parte da compreensão de um conceito filosófico a sua compreensão não-conceitual: os conceitos não remetem apenas a outros conceitos, “os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não-conceitual. (...) O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos não-filósofos” (O que é a filosofia?, p. 57). Para compreendermos adequadamente toda a potência que um conceito filosófico possui, é necessário que saibamos ter igualmente uma compreensão não-conceitual do conceito. Essa compreensão não-conceitual implica que saibamos compreendê-lo também politicamente, etologicamente, clinicamente, eticamente, enfim, poeticamente. Essa compreensão heterogenética não é exterior ao conceito, uma vez que faz parte da compreensão do conceito o seu devir não-conceitual, que é o seu devir-estrangeiro, a sua geofilosofia.
Essa não-filosofia não é o senso comum ou o bom senso. O senso comum se caracteriza pelo predomínio da opinião e da recognição (ULPIANO, Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento,2013, p.77). A filosofia dogmática parece romper com o senso comum em relação aos conteúdos deste, mas não quanto à forma: esta reaparece sob veste filosófica com o predomínio de um sujeito suposto universal e de um objeto pretendido geral. Segundo Deleuze e Guattari, quando a filosofia rompe de fato com o senso comum, com seu conteúdo e com sua forma, ela o faz por instauração de um território e de uma Terra. Ao invés de um Sujeito e um Objeto, um território e uma Terra, uma geofilosofia, enfim.
O ser estrangeiro do filósofo não é em relação a um território no qual ele teria vivido e nascido de fato, e que seria diferente deste no qual ele está. O ser estrangeiro do filósofo é definido em sua relação de direito com a Terra. Esta é um natal, não um inato. É em relação com a Terra que o filósofo se torna um estrangeiro de direito, estrangeiro inclusive ao território acadêmico da filosofia. O ser estrangeiro do filósofo o torna um Outsider (DELEUZE; GUATTARI, Mil platôs, 1980): ele vive o invivível: a "Pura Reserva" ( O que é a filosofia?, p. 202).A reserva não é a dele, não é uma reserva por oposição a uma extroversão de opiniões. A reserva em questão, a Pura Reserva, é a do Acontecimento que o filósofo experimenta viver: o Acontecimento é sempre reserva de si mesmo, uma vez que ele não se esgota nas atualizações do vivido: “O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir” ( O que é a filosofia?, p. 46). O por vir não é o futuro do tempo cronológico, ele não é o prolongamento do presente no qual somos, mas no qual também deixamos de ser, uma vez que o presente passa; o por vir é o tempo da metamorfose.
[1] Na Grécia antiga, "Daimon" era a divindade que não tinha casa no "Céu", como possuíam os deuses olímpicos. Tampouco morava o Daimon no chão, entre os homens. O Daimon habitava o espaço entre o Céu e a terra, um espaço de travessias. Mas não era uma travessia como aquela que fazemos quando cruzamos uma ponte, uma rua ou mesmo uma fronteira que separa dois países. O espaço de travessia no qual habita o Daimon é aquele que liga o tempo à eternidade, o que nasce e morre ao que se imortaliza. Contudo, entre o tempo e a eternidade não existe uma fronteira determinada, nem se tratava de morrer para alcançar o Céu. Era nesta vida que se alcançava ou vislumbrava aquela esfera divina, desde que nos guiasse um Daimon. O Daimon não habita o Céu ou a terra, ele vive nessa zona que somente se pode atravessar em metamorfose. "Metamorfose" não é a mesma coisa que "transformação". Em ambos os termos existe a palavra grega "morfé", que significa "forma".Trans-formar significa: "passar de uma forma à outra" ( esse é o princípio, por exemplo, da reencarnação pitagórica).Meta-morfé, por sua vez, tem o sentido de "ir além da forma, do limite". Sozinho, o homem não consegue ir além de sua forma, de sua medida. Daí a necessidade de ele encontrar um Daimon, se o seu desejo for o de ir além de si mesmo. Existiam vários Daimons. Nem todos sabiam o caminho....Alguns eram apenas promessa.Outros, fingiam levar ao Céu , quando na verdade faziam subir muito alto com a intenção de aumentarem o tamanho da queda, como aquela que seduziu Ícaro.De todos os Daimons, o mais buscado, porém o mais difícil de achar, era exatamente Eros. Em latim, o Amor. Em grego, "Eros" significa também "asas", mas asas de borboleta. Em latim, "Amor" significa : "não-morte", pois o "a" tem valor de negação, tal como em "afasia", "sem fala". Para os gregos, então, Eros era o agente de uma metamorfose propiciadora de uma experiência de não-morte.Fora dele, sem sua mão a conduzir, tudo é morte.
[2] Desenvolvo esse tema no artigo: Espinosa, Deleuze e Guattari: o desejo como metamorfose, Revista Alegrar, DEZ/2012, nº 10.
[2] Desenvolvo esse tema no artigo: Espinosa, Deleuze e Guattari: o desejo como metamorfose, Revista Alegrar, DEZ/2012, nº 10.
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