A poeta Lhasa de Sela conta a seguinte história: quando surge no interior do útero, o
feto se assemelha a um ponto de luz que
brilha como uma pequena e pulsante estrela .À medida em que vai crescendo, o
feto desenvolve órgãos que não são para
aquele mundo, mas o feto não sabe disso. O feto capta então sons que vêm de
fora do seu mundo. Nessa fase de seu psiquismo em rascunho , ainda não há
diferença entre realidade e sonho, percepção e memória, eu e mundo. Pouco a pouco, o feto vai crescendo : o útero que parecia imenso vai ficando apertado. Quando então nasce, o bebê descobre para quais fins eram os órgãos que lhe nasceram dentro do útero. Assim, a visão,
a audição, o tato...se tornam instrumentos para explorar e conhecer o mundo
dado. E é aqui que nasce a separação entre realidade e sonho, eu e mundo,
sujeito e objeto, subjetividade e objetividade. Porém, há órgãos sutis e
especiais que ainda continuam a nascer em nós, mesmo após a gente ter nascido. São
órgãos para explorar realidades diferentes dessas que pertencem ao mundo “acostumado”. Esses
órgãos são diferentes de todo órgão visível
que temos. Eles se parecem com os olhos, mas podem ver mais, pois veem também o imperceptível; eles são semelhantes aos
ouvidos, porém escutam mais, pois escutam o inaudível; eles são também uma
forma de tato, mas que podem tocar o
impossível. Esses órgãos sutis fazem do
corpo mais do que mero corpo orgânico, pois tais órgãos tornam indiscerníveis o corpo e o espírito, o sentir e o pensar, o subjetivo e
o objetivo. Esses órgãos tornam de novo feto e embrião aquele no qual eles
nascem , pois assim são o pensador e o poeta: fetos que fazem do mundo
o útero que os alimenta e mantém vivos. São esses órgãos ainda por descobrir que
tornam alguém artista ou pensador. A
arte e as ideias que criam são o testemunho do que viram, sentiram, pensaram e tocaram
com os órgãos de uma vida que nunca morre, e da qual cada poema e ideia nova fazem
o parto.
( imagem: o filósofo Deleuze e Julien, seu filho)
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