sábado, 4 de abril de 2020

imanência: uma vida...


A poeta Lhasa de Sela conta a seguinte história: quando  surge no interior do   útero, o feto se assemelha a um ponto de luz  que brilha como uma pequena e pulsante estrela .À medida em que vai crescendo, o feto desenvolve  órgãos que não são para aquele mundo, mas o feto não sabe disso. O feto capta então sons que vêm de fora do seu mundo. Nessa fase de seu psiquismo em rascunho , ainda não há diferença entre realidade e sonho, percepção e memória, eu e mundo.  Pouco a pouco, o feto vai crescendo : o útero  que parecia imenso vai ficando apertado.  Quando então nasce, o bebê descobre  para quais fins eram os órgãos  que lhe nasceram dentro do útero. Assim, a visão, a audição, o tato...se tornam instrumentos para explorar e conhecer o mundo dado. E é aqui que nasce a separação entre realidade e sonho, eu e mundo, sujeito e objeto, subjetividade e objetividade. Porém, há órgãos sutis e especiais que ainda continuam a nascer em nós, mesmo após a gente ter nascido. São órgãos para explorar realidades diferentes dessas  que pertencem ao mundo “acostumado”. Esses órgãos são  diferentes de todo órgão visível que temos. Eles se parecem com os olhos, mas podem ver mais, pois veem também  o imperceptível; eles são semelhantes aos ouvidos, porém escutam mais, pois escutam o inaudível; eles são também uma forma de tato, mas que podem  tocar o impossível. Esses órgãos sutis  fazem do corpo mais do que mero corpo orgânico, pois tais órgãos  tornam indiscerníveis  o corpo e  o espírito, o sentir e o pensar, o subjetivo e o objetivo. Esses órgãos tornam de novo feto e embrião aquele no qual eles nascem , pois  assim são  o pensador e o poeta: fetos que fazem do mundo o útero que os alimenta e mantém vivos. São esses órgãos ainda por descobrir que tornam alguém artista ou  pensador. A arte e as ideias que criam são o testemunho do que viram, sentiram, pensaram e tocaram com os órgãos de uma vida que nunca morre, e da qual cada poema e ideia nova fazem o parto.  

( imagem: o filósofo Deleuze e Julien, seu filho)






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