sábado, 6 de fevereiro de 2021

os Ancestrais

 

Minha bisavó era índia. Nunca a vi pessoalmente, ela morreu bem antes de eu nascer. Certa vez vi uma foto dela, uma foto muito antiga, quase já eterna. Vi seu jeito, seu espírito, vi nela coisas das quais não tenho lembrança ou consciência, mas  que estão no meu corpo, no meu sangue, no meu inconsciente.

Recentemente, no meio de uma profunda noite, sonhei com ela . Era um desses sonhos  que nem sonho se parecem , sonhos  que   nos despertam   e têm mais vida   do que o real  insano  onde dominam os pesadelos sociais que nos tiram o sono.

Como minha bisavó índia estava viva nesse sonho!  O vestido que ela vestia parecia feito  de luz, uma luz mais luminosa que toda luz que já vi . Não era uma luz que ofusca e faz  os olhos  desviarem. Ao contrário, era uma luz  que potencializava o ver, o ver para fora e o ver para dentro . Também não era como a luz do sol a pino do meio-dia, era mais como a luz da lua,  luz que clareia os caminhos que a escuridão esconde.  Atrás de minha bisavó, como se fosse o fundo de uma pintura,  havia  um céu de um azul indescritível, desses que a gente só entende  quando vê e nunca mais esquece : um azul que “celesta”, como diz Manoel de Barros. Às vezes em maio acontecem  tardes com um azul assim, um  azul que  entra em nós e forra a parte desnuda de nossa alma, vestindo-a de céu e horizonte. Ao redor da cabeça de minha bisavó, cujos cabelos grisalhos estavam soltos, havia um cocar  feito de flores, como uma guirlanda. Flores de todas as cores, de todas as cores mesmo. Muitas das cores eu nem sabia o nome, e muitas outras flores eram  de cores que nem têm nome ainda. As mais vivas dessas cores eu  só tinha visto igual   nos quadros de Frida Kahlo e nos desenhos que eu pintava  quando criança, brincando de  inventar cores.A maior parte  das flores que enfeitavam a cabeça de minha bisavó eram de cores  sem nome ainda, cores que somente os olhos que sonham , ou os olhos da criança,   podem conhecer e ver. Eram flores infinitas , muitas já abertas e outras se abrindo ainda , como olhos novos que nascem.

Então, me olhando nos olhos com compreensão e amor, minha  bisavó índia  me deu um abraço que  transmitia proteção, força e coragem. E como se me benzesse com palavras , perto do meu ouvido a índia sábia me falou: “Abra seu olho cósmico, não há o que temer”.

 

“Sonhar é acordar-se  para dentro”. (Mário Quintana)

 

“Onde o mundo interior e o exterior se tocam,

aí se encontra o centro da alma”. (Novalis)


“Escuta-me, escuta-me também com teus olhos. E quando chegares a acordar, desperto ficarás eternamente”. (Nietzsche)

 

( imagem: “O abraço de amor de Pachamama, a Mãe-Terra” / de Frida Kahlo)



“Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios” (Manoel de Barros). Esta música do vídeo é cantada nos ritos de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá alimento e proteção; e que não há futuro digno sem  manter viva a memória coletiva  dos  Ancestrais:


                                           (para assistir , clicar no link do youtube)

Um comentário:

cauepizindim disse...

Filho De Oxum
Segue O Fluxo Rio Acima
E Vê Que A Fonte É Feminina

Vai àquela mata;
vai à entranha da terra,
sugar o seio
da natureza divina.
Vai beber a água nascente
na fonte,
sem pote que a transporte
à boca que se aproxima.

Água nascida e renascida,
cantando e decantando,
desencantada...
filtrada nas insignificâncias do barro.
Ê Mané!!!
Tratando
de alma,de ar,
de água:
a pureza, valor é.

Incontável em métricas.
Água é suficiente.
Água desaprisionada de qualquer recipiente
de armazenar
ou de servir,
de vender
ou de comprar.

Vai beber e se irmanar
na vida fluído,
de água fluída.

Vai beber
no fluxo que lava
e leva palavras
e ideias ruidosas
para arejar nas corredeiras
e cachoeiras de Oxum.

robertomarques