Minha bisavó era índia. Nunca a vi
pessoalmente, ela morreu bem antes de eu nascer. Certa vez vi uma foto dela, uma
foto muito antiga, quase já eterna. Vi seu jeito, seu espírito, vi nela coisas das
quais não tenho lembrança ou consciência, mas que estão no meu corpo, no meu sangue, no meu
inconsciente.
Recentemente, no meio de uma profunda
noite, sonhei com ela . Era um desses sonhos
que nem sonho se parecem , sonhos
que nos despertam e têm
mais vida do que o real insano onde dominam os pesadelos sociais que nos tiram o sono.
Como minha bisavó índia estava viva
nesse sonho! O vestido que ela vestia
parecia feito de luz, uma luz mais
luminosa que toda luz que já vi . Não era uma luz que ofusca e faz os olhos
desviarem. Ao contrário, era uma luz
que potencializava o ver, o ver para fora e o ver para dentro . Também não
era como a luz do sol a pino do meio-dia, era mais como a luz da lua, luz que clareia os caminhos que a escuridão
esconde. Atrás de minha bisavó, como se
fosse o fundo de uma pintura, havia um céu de um azul indescritível, desses que a
gente só entende quando vê e nunca mais
esquece : um azul que “celesta”, como diz Manoel de Barros. Às vezes em maio acontecem
tardes com um azul assim, um azul que entra em nós e forra a parte desnuda de nossa
alma, vestindo-a de céu e horizonte. Ao redor da cabeça de minha bisavó, cujos cabelos
grisalhos estavam soltos, havia um cocar feito de flores, como uma guirlanda. Flores de
todas as cores, de todas as cores mesmo. Muitas das cores eu nem sabia o nome,
e muitas outras flores eram de cores que
nem têm nome ainda. As mais vivas dessas cores eu só tinha visto igual nos quadros de Frida Kahlo e nos desenhos que
eu pintava quando criança, brincando de inventar cores.A maior parte das flores que enfeitavam a cabeça de minha
bisavó eram de cores sem nome ainda, cores
que somente os olhos que sonham , ou os olhos da criança, podem conhecer e ver. Eram flores infinitas ,
muitas já abertas e outras se abrindo ainda , como olhos novos que nascem.
Então, me olhando nos olhos com
compreensão e amor, minha bisavó
índia me deu um abraço que transmitia proteção, força e coragem. E como
se me benzesse com palavras , perto do meu ouvido a índia sábia me falou: “Abra
seu olho cósmico, não há o que temer”.
“Sonhar é acordar-se para dentro”. (Mário Quintana)
“Onde o mundo interior e o exterior
se tocam,
aí se encontra o centro da alma”.
(Novalis)
“Escuta-me, escuta-me também com teus olhos. E quando chegares a acordar, desperto ficarás eternamente”. (Nietzsche)
( imagem: “O abraço de amor de
Pachamama, a Mãe-Terra” / de Frida Kahlo)
“Tenho em mim um sentimento de aldeia
e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não
sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar
ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser
virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer
melhor os índios” (Manoel de Barros). Esta música do vídeo é cantada nos ritos
de iniciação dos jovens Kayapós à vida em comunidade. A letra lembra aos jovens
que os Ancestrais também sãos os rios, as árvores, enfim, a terra que dá
alimento e proteção; e que não há futuro digno sem manter viva a memória coletiva dos
Ancestrais:
(para assistir , clicar no link do youtube)
Um comentário:
Filho De Oxum
Segue O Fluxo Rio Acima
E Vê Que A Fonte É Feminina
Vai àquela mata;
vai à entranha da terra,
sugar o seio
da natureza divina.
Vai beber a água nascente
na fonte,
sem pote que a transporte
à boca que se aproxima.
Água nascida e renascida,
cantando e decantando,
desencantada...
filtrada nas insignificâncias do barro.
Ê Mané!!!
Tratando
de alma,de ar,
de água:
a pureza, valor é.
Incontável em métricas.
Água é suficiente.
Água desaprisionada de qualquer recipiente
de armazenar
ou de servir,
de vender
ou de comprar.
Vai beber e se irmanar
na vida fluído,
de água fluída.
Vai beber
no fluxo que lava
e leva palavras
e ideias ruidosas
para arejar nas corredeiras
e cachoeiras de Oxum.
robertomarques
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