(trecho do livro)
No
Fedro, Platão se valera da ideia da carruagem como modelo para a compreensão da alma humana. A carruagem de
Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de
nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a
carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência
à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é
dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro
cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a
razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser. Por mais que tente forçá-lo
a seguir em linha reta, é sinuosamente, barrocamente, que o cavalo preto
insiste em ir. Este cavalo preto é o Desejo.
Segundo
Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo
preto, estão sempre em conflito. Este nasce pela impossibilidade que a razão
encontra de pôr o desejo na direção dos valores morais que ela visa atingir. A
disciplina moral é a rédea da razão, às vezes também seu chicote, mas o
desejo não se dobra, resiste, e segue atraído pelas aparências
do mundo sensível . Seguir
o desejo é perder-se, desorientar-se, maldizia Platão.
Mas a alma não pode prescindir desse
rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que provém a maior parte da energia
que a faz mover-se.
Curiosamente,
uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche. Trata-se da Carruagem de
Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus, Dioniso se
locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de
cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis feras transportando o deus e mostrando o
grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou reprime a
natureza ( como o faz o cocheiro de
Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira
à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se
unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam,
que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir. Dioniso transforma a agressividade destrutiva
e mortífera das pulsões-panteras em
potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou
guia, cocheiro, domador: somente se pode segui-lo com a condição de transformar-se,
conjugando disciplina e inventividade na
condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe, pois seu destino é o
próprio percurso enquanto este se faz.
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