sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

as carruagens



(trecho do livro)

No Fedro, Platão se valera da   ideia da carruagem   como modelo para a  compreensão da alma humana. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser. Por mais que tente forçá-lo a seguir em linha reta, é sinuosamente, barrocamente, que o cavalo preto insiste em ir. Este cavalo preto é o Desejo. 
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. Este nasce pela impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes também seu chicote,  mas  o desejo não se dobra, resiste, e segue atraído pelas  aparências  do mundo sensível  .  Seguir  o desejo é perder-se, desorientar-se, maldizia  Platão.  Mas a alma  não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que provém a maior parte da energia que a  faz mover-se. 

Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche. Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus, Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis  feras transportando o deus e mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou reprime a natureza  ( como o faz o cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir.  Dioniso transforma a agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro, domador: somente se pode segui-lo com a condição de transformar-se, conjugando  disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz. 

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