Em sua Filosofia da mitologia, Shelling considera que a arte grega revela,
de forma segunda ou derivada, o que o mito expressa de forma primeira,
originária. Por isso, a arte grega buscava na mitologia seus temas. Exatamente
por ser arte, invenção, a arte não pode ser primeira, sem perder sua natureza
de arte. A invenção artística é assim considerada
por existir algo não inventado que se lhe contrapõe, tal como o
refletido em relação ao reflexo . Se tudo fosse inventado, não se teria
consciência da invenção. Se assistíssemos a uma peça de teatro que nunca
terminasse , e se nós mesmos fôssemos parte dela, essa peça já não seria
teatro, seria a vida mesma, mesmo que fôssemos apenas espectadores dela.
Segundo argumenta Shelling, a
mitologia não é arte, ela é uma forma singular de produzir conhecimento,
conhecimento do que vem primeiro, exatamente por ser divino. Por isso, por dar
a conhecer o que é primeiro, a mitologia não é segunda, ela é primeira. Ela é a
invenção sem a consciência de invenção. A mitologia vive a experiência de não
separação entre o conhecimento e aquilo que é conhecido. Logo, ela é realidade,
uma realidade absoluta, isenta da separação entre subjetividade e objetividade,
corpo e espírito. Nesse sentido, é impossível para nós vivermos o mito tal como
o viveram os gregos que o inventaram , talvez apenas o poeta e a potência
imaginante da criança disso sejam capazes. Ao inventarem os mitos, os gregos
inventavam a si mesmos, sem que houvesse antes dessa invenção um grego como
“verdade objetiva” do que é ser grego. Talvez seja essa a grande lição que
temos de aprender com os gregos: sermos os artistas de nós mesmos.
O grego assim inventado não é
histórico, mas simbólico. “Sym-bólico” : união ou agenciamento das partes.
“Dia-bólico”: separação das partes. Todo símbolo é uma parte que se oferece à
outra parte dela que somos. O símbolo agencia diferenças no encontro que o
expressa. O “diabólico”, ao contrário, é o que nos reduz a um ego, a um cogito.
Talvez nada mais diabólico do que disse Descartes, atormentado pelo seu “Gênio
Maligno”: “o homem está só no mundo, e fala apenas consigo mesmo”. Mas os sabiás
com trevas, como Manoel, Deleuze e Espinosa, acreditam nessa simbólica
poético-filosófica: “o homem está só no mundo, se fala apenas consigo mesmo”.
Por isso, esse grego simbólico inventor
de mitos também podemos o encontrar em nós , desde que ainda nos afetemos pelo
Canto das Musas, e aprendamos não exatamente a nos comportarmos , mas a “inventarmos comportamento”.[1]
Como diz
Deleuze, “a literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que
não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los”[2]. O
mito começa com o caos. Perdemos, talvez, o sentido desse começo, no qual arte
e vida ainda não se haviam separado. Em
Aristóteles, a arte imita a vida. Naquela época em que se produziam os mitos,
porém, a poesia era a vida mesma que se repetia outra, como sentido produzido
para si mesma, como Caos e como Gaia, Terra.
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