O poeta e filósofo Lucrécio, mestre de Espinosa, dizia que tudo é feito de átomos e vazio. Os corpos que vemos
são átomos reunidos. Dos corpos se desprendem átomos muito sutis que mantêm a forma do corpo do qual se
desprenderam. É graças a esses átomos sutis
que podemos perceber os corpos. Nunca percebemos diretamente os corpos,
percebemos apenas os átomos sutis que eles emitem, e que guardam semelhança com
a fonte de onde provieram. Lucrécio dá o seguinte nome a esses átomos
sutis : “simulacro”. Os simulacros são
imagens que simulam a fonte de onde
vieram. Quando a gente se lembra de alguém que vimos ontem, evocamos dentro de
nossa mente um simulacro da pessoa, não a própria pessoa. Se a gente sonha com
ela, vemos o simulacro dela, não a fonte do simulacro.
Porém, acontece de os
simulacros às vezes se tornarem “independentes” dos corpos de onde vieram, como
se adquirissem “vida” própria. É assim que, dos simulacros, podem nascer os “fantasmas”. Os fantasmas são
simulacros que levam a mente a imaginá-los tão ou mais reais do que suas fontes
. Quando os fantasmas dominam a mente, adquirem vida própria enfraquecendo o
poder de pensar da mente, que assim se aliena negando a ciência, a filosofia e
a própria natureza.
São três os principais
tipos de fantasmas: os oníricos, os eróticos e os teológicos. Os fantasmas
oníricos são os do sonho. Muitos imaginam que os sonhos são mensageiros do
“além”, e que eles seriam uma realidade mais verdadeira do que a que vemos com
os olhos despertos. Isso vem da ignorância acerca da verdadeira fonte desses
fantasmas, que são os simulacros que os corpos emitem. Os fantasmas eróticos nascem das fantasias sexuais narcísicas que substituem o amor real por prazeres
egoicos , tornando-se sintoma de uma impotência de amar enfraquecedora da natureza
compósita de eros, o amor . Os fantasmas
teológicos surgem quando se imagina Deus como um tirano sentado num trono nos ameaçando com castigos ou dando “prêmios” aos obedientes . As
intolerâncias religiosas , os delírios
negacionistas , as fantasias narcísicas
e as superstições da ignorância vêm desses três fantasmas ou da combinação
deles ( por trás dos moralistas fantasmas
teológico-políticos sempre há um fantasma erótico reprimido...).
Nele mesmo, o fantasma
não tem vida. A vida que ele adquire vem da imaginação alienada que ignora como é a natureza, seus corpos e simulacros.
Lucrécio define a filosofia como a prática de “desfantasmar” a nós mesmos e ao
mundo , para assim reencontrarmos a natureza e nos libertamos dos fantasmas que
geram superstição, ignorância e servidão.
Os átomos são capazes de
um “desvio” que subverte o “mesmal” das linhas retas. Lucrécio chama de “clinâmen”
a esse desvio libertário, expressão em nós de um pensar que redescobre novos
caminhos. Múltipla e heterogênea, a
natureza se parece mais com um poema a
ser recitado do que com ordens de um tirano a querer nos impor obediência e medo.
(neste livro há um
artigo sobre Lucrécio)
("Os átomos todos dançam🎼..." verso da música de Caetano)
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