No poema
“Escova”, Manoel narra um acontecimento que presenciou quando criança:
ele viu dois homens sentados no chão “escovando osso”. No princípio, diz o
poeta, “achei que aqueles homens eram loucos”
ficando assim no chão “escovando osso.” Mas ele olhou bem e viu que não
podiam ser loucos aqueles homens, pois eles não escovavam de forma mecânica,
fazendo por fazer ou por obrigação; havia neles um cuidado no escovar, como se
o osso fosse um pergaminho antigo, um papiro, um mapa de um tesouro perdido. O
poeta descobriu então que aqueles homens eram "arqueólogos": eles
escovavam o osso para dele retirar a poeira, a sujeira, a craca. Num tempo
muito antigo, aquele osso fez parte de um
esqueleto sob músculo e pele de um animal imenso. O osso era parte de um ser
vivo que não existia à parte. Pois esse ser vivo era parte de um mundo hoje extinto. Contudo, esse mundo não
desapareceu totalmente, ele ainda está
vivo , “arquivado” no osso. O osso também pode ser um arquivo que guarda a origem
de onde veio. "Arquivo” vem de “arqué”: “origem”. Esse osso também se
torna um "documento". Essa palavra vem de “docere”, de onde nasce
também “docente”: “aquele que ensina”. Arquivo e documento, o osso guarda sua
origem que ensina não só sobre o passado, ensina também sobre nosso
presente, fazendo-nos compreender que
nosso mundo é parte de um mundo maior do qual o mundo extinto também era uma
parte, e que nosso próprio mundo também corre o risco de ser extinto, sobretudo pela ignorância humana
que se imagina um ser à parte da natureza, e assim a preda, destrói, queima ,
dizima.
Manoel diz que aprendeu a escovar
também, só que as palavras: o poeta escova as palavras, retira delas a craca, a
sujeira , o clichê, a torpeza, a estreita de visão, a opinião obscurantista, as
verdades do ódio, o preconceito, a intolerância.... tudo isso que nas palavras
colocou a mentalidade sem poesia, sem criatividade, sem empatia, sem
conhecimento...mas que adora usar as palavras para fazê-las de arma de suas vis
, preconceituosas e obscurantistas opiniões.
O poeta escova a palavra até achar de
novo a semente dela, para assim fazer nascer dela poesia, sentido novo,
reinauguramentos para que possamos vencer , agindo, os que nos querem extintos.
A escova do poeta é instrumento ao mesmo tempo
crítico, clínico e criativo.
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