sábado, 9 de novembro de 2024

Beatitude

 

Midas era um homem que alimentava por dentro uma ambição desmedida por posses , dinheiro e  poder.

Querendo aparentar ser o que não era, certa vez Midas  ajudou um homem em dificuldades , e a essa ajuda Midas  deu grande publicidade, querendo dela extrair popularidade. 

Parecia que ele se preocupava com o outro, mas na verdade ele estava usando o outro como meio de obter fama, prestígio.

Dioniso viu Midas ajudando o homem em dificuldades , pensou que ele agia por  genuína bondade  e quis recompensar Midas dando-lhe o poder de realizar seu mais íntimo desejo. É no que mais se deseja que cada um revela como é por dentro.

Midas então revelou em seu pedido o quanto era pobre interiormente: seu desejo era que virasse ouro tudo o que tocasse. Midas imaginava que assim teria a felicidade.

Dioniso compreendeu que Midas não era por dentro como aparentava ser por fora. Mas realizou seu mesquinho desejo, pois sabia que dali viria uma lição, ainda que dolorosa.

Assim, sob o toque ganancioso de Midas viravam ouro  a colher, a mesa, a cadeira, o copo...Mas viravam ouro também , uma estátua de ouro, alguém  que ele abraçava, o cão que ele afagava, o passarinho que vinha pousar na sua  mão...

 Para seu desespero, igualmente  virou estátua de frio ouro seu filho  pequeno que ele pegou no colo . Depois, viravam ouro  a água, o arroz, a carne, a maçã, o pão...antes que Midas pudesse matar a fome e saciar a sede.

Sentindo-se o mais miserável dos homens, Midas  então chorou, e de longe eram ouvidas  suas lágrimas quicando no chão como moedas.

Midas descobria assim  que a loucura por acúmulo é a pior  das carências...Então, ele busca  Dioniso e pede uma  cura para aquela  pobreza de apenas no ouro ver riqueza.

Dioniso conduz Midas até um rio que passava perto de uma aldeia pobre e o lava no fluxo de suas águas.   O rio ficou repleto de pepitas de ouro  que Dioniso partilhou com  os necessitados.  Midas enveredou por  uma estrada e sumiu...

Passou o tempo,  todos pensavam que Midas já   estivesse   morto. Até que um dia ele retorna. Vestia-se parecendo um andarilho, tinha a companhia de um  cãozinho  vira-lata e estava pousado em seu ombro um passarinho como se ali fosse um ninho.

Midas se mostrava  simples por fora, mas por dentro parecia enfim rico. Tal  riqueza vinha da cura que lhe fez Dioniso, que escondeu uma das pepitas no peito de Midas  , e de ouro se tornou seu coração renascido solidário.

Midas agora parecia ter aprendido,  praticando-a, esta lição de ouro de Espinosa: "Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois, proposição 49, escólio)

 

( Na Ética de Espinosa, recebe o nome de “beatitude” a riqueza que nasce do conhecimento que se partilha para  potencializar a vida. Em  Manoel ,  beatitude é empoemamento ,  poesia emancipadora ) 






 


Riqueza autêntica não é o número estampado na cédula do dinheiro, riqueza verdadeira é   o papel de que é feita a cédula, papel esse que veio da árvore como parte de uma floresta. Riqueza de verdade  não é o número na moeda, mas o níquel de que ela feita, níquel que foi retirado do seio da terra.

Riquezas autênticas são o trabalho produtivo, o conhecimento, o afeto, os rios, os mares, as florestas, o tempo...Na criança que nasce, o tempo é a riqueza da vida futura; no idoso, o tempo é a riqueza da vida vivida.

Os juros são a comercialização do tempo, a vida transformada em negócio financeiro . Ao emprestarem um valor hoje para cobrarem  sobre  ele   15%  ao mês ou 340% ao ano de ganho e lucro,  mês e ano  se tornam a mercadoria que os bancos e financeiras se acham os proprietários. Mês e ano são medidas do tempo. E  tempo é vida. Assim , é da nossa vida que se trata: eles a compram de nós  e eles mesmos a vendem para nós, lucrando abusivamente com esse comércio infame, como no passado no qual seus antecessores históricos  escravizavam seres humanos e os comercializavam.   

Hoje, os bancos e a mídia financiada por eles pressionam o governo por cortes na educação e na saúde, alegando estarem preocupados com a dívida pública. Mas , ao mesmo tempo, pressionam pelo aumento  da taxa de juros abusivamente  , cujo efeito perverso imediato é aumentar exatamente a tal a dívida pública do governo , que se vê obrigado assim a cortar gastos públicos   , para assim pagar a dívida pública da qual os bancos são os principais recebedores...

O efeito calculado disso é tentar inviabilizar o governo, tornar impossível o cumprimento de suas promessas no campo social, o que leva à insatisfação das camadas populares com a política , fazendo crescer a base social das igrejas fundamentalistas , que inoculam nessa mesma população a ideologia da “prosperidade” , que é a mesma ideologia dos bancos, de tal modo que o dogma do carrasco  se torna o mesmo que o da sua vítima...

Como ensinava Espinosa, em situações assim a maior riqueza, a mais necessária, é a indignação, desde que ela saia da reatividade individual-privada e ganhe o  espaço público, tornando-se voz ativa  em ação.


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