"Anarquia"=
"an-arqué". Um dos sentidos de "arqué" é
"comando". A anarquia é um não-comando: "não" como crítica,
e não como mera reação à existência de um comando. Sobretudo, a anarquia é uma
crítica a um "comando externo" que se coloque acima dos comandados.
Assim, criticar o comando é criticar também os mecanismos que nos tornam
"comandados": não apenas pelo Estado, mas comandados também pelo
mercado, pela mídia, pelo consumo, pelo ódio, enfim, pela tolice. É preciso
compreender a ideia de "comando" em um sentido bem amplo, para assim
não reduzir anarquia a compreensões estreitas, clicherosas. O poeta por exemplo, como afirma Manoel de Barros,é
aquele que escapa aos comandos homogeneizantes da gramática.
Porém a crítica ao
comando externo deve ser o resultado ou
consequência de uma atitude que a precede. Essa atitude não é negativa, ela não
é um destruir, mas um construir: "Só podemos destruir sendo
criadores", já nos ensinava o "anarquista" Nietzsche.
Então, antes da crítica
aos comandos externos que, de fora, querem nos impor modelos de como viver,
devemos construir uma consistência interna, uma potência, uma saúde imanente.
Esse procedimento de consistência exige também uma luta, um esforço, que não se
faz sem as ideias e sua força, e a força das ideias nada tem a ver com a força física ou bélica.
O autêntico anarquista ,
ou libertário, comanda a si mesmo não como um general a um exército, não como a
bebida ao dependente, não como o pastor a um rebanho; ele se esforça para
comandar, em primeiro lugar , a si mesmo, e deve se inspirar no modo como um
maestro comanda uma orquestra, como um pintor comanda as tintas, como o poeta
comanda as palavras. Pois tal como essas coisas, nós também somos uma
multiplicidade.
Por isso, o autêntico
anarquismo não é preto, branco ou cinza. Ele é multi e pluri-colorido, e em
cada cor ele afirma ainda as nuances e matizes, os tons, as variações. E ainda:
para pintar um quadro é preciso ter uma perspectiva.
Segundo Negri
interpretando Espinosa, o anarquismo não é sistema político ou proposta de
governo, simplesmente porque ele não é sistema , mas rizoma, conexão. O
anarquismo não é sistema político, ele é modo de vida, ontologia, estética,
poética. Ele é isso porque ele é afirmação da heterogeneidade da existência, e
essa heterogeneidade não pode ser representada, dado que ela pode apenas ser
vivida, experimentada, produzida. A poesia vive no "antesmente
verbal", escreve Manoel de Barros; a anarquia precede a política, tal como
o fazer precede o produto.
Por isso, o plano do
anarquismo é sempre micropolítico, o que nada tem a ver com a macropolítica dos
partidos. "Micropolítica" não significa política das coisas pequenas,
pois política das coisas pequenas costuma ser a prática da macropolítica. "Micropolítica"
é a política que não pode ser separada das práticas, sobretudo daquelas
práticas que a macropolítica diz não serem práticas políticas, como as práticas
de ensino, as práticas artísticas, as práticas de consumo, as práticas de prazer,
as práticas culturais, etc.
O anarquismo não é
discurso de um partido, ele é expressão de uma parte, de uma parte sempre
heterogênea que, em sua diferença, expressa um todo. Como diz Deleuze comentando
a “multitudo” de Espinosa: Anarquia Coroada. Mas essa “coroa” mencionada por
Deleuze não é como a dos reis, cujas pedras preciosas que a enfeitam cheiram a colonialismo e exploração de seres humanos. A “coroa”
que cada membro singular da multitudo porta é a expressão de sua singularidade,
de sua ecceidade, enfim, de sua potência
imanente . Não é uma coroa , portanto, da potestas ( poder), é uma coroa da
potentia ( potência). Sobretudo, é uma coroa feita de ideias libertadoras que ampliam as cabeças que elas cobrem.
Assim, o anarquismo não é pulsão de morte
contra o todo, ele é a afirmação de um todo que potencialize as partes. E esse
todo nunca é um partido ou um Estado, pois estes também são partes. O Estado
fascista é aquele que se comporta como um todo à parte, que vive à custa da
sociedade.
É na micropolítica que se
luta contra os fascismos e suas várias manifestações, principalmente os micros
fascismos cotidianos que infestam as práticas mais rotineiras.Mas se luta com
alegria, e não com ódio. Sobretudo, nunca, jamais um anarquista pode ensejar
comportamentos que alimentem a menor
confusão entre suas práticas e a de um fascista, e muito menos se pode
confundir “libertário” com “(ultra)liberal”, tal como o faz a mídia hegemônica a
respeito do lunático eleito presidente da Argentina .
“Não aprecio tanto
seguir como ser seguido:
para me acompanhar aonde vou
é preciso aprender a amar andar ao lado.”
Nietzsche
Espinosa Pluri e Multicor
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