sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

imanência e transcendência

 

                FILOSOFIAS DA TRANSCENDÊNCIA E FILOSOFIAS DA IMANÊNCIA[1]

 

 

Aristóteles concebia a filosofia de forma dual, binária ou dicotômica, pois ele separava a filosofia em duas partes: a teorética e a prática.  A primeira parte tem por método a contemplação dos objetos de estudo :  em um nível mais elevado, Deus, as estrelas, o cosmos, enfim, o Ser; e , em um nível inferior, as quantidades, as qualidades , o movimento e  os seres vivos. A atividade teorética inferior é assim  considerada em razão de os objetos de seus estudos envolverem a matéria ( os objetos  da astronomia, da física e da biologia, por exemplo, possuem matéria ), ao passo que quanto mais elevado é o objeto de estudo da atividade teorética, menos matéria tem: Deus é o objeto mais eminente da atividade contemplativa-teorética, uma vez que Deus é, em Aristóteles , Forma Pura ou Motor Imóvel.

Nesse sentido , a disciplina mais elevada da atividade contemplativa-teorética é a teologia[2] . Ou seja, esse objeto primeiro da filosofia é transcendente ao mundo da natureza. Trans-ens: o que existe fora do mundo dos entes naturais, portanto, fora do espaço e do tempo. Somente a razão conseguiria alcançar essa transcendência, desde que depurada dos fatores sensórios-sensíveis oriundos do corpo e da sensibilidade.

Já a parte prática da filosofia concerne ao agir humano. A ética e a moral[3] são , em Aristóteles , as duas disciplinas principais da filosofia em sua dimensão prática.

Muito diferente é a visão da filosofia ensinada por estoicos e epicuristas. Enquanto Aristóteles defendia uma visão binária-dicotômica  , estoicos e epicuristas ensinavam que a filosofia é constituída por três partes: a ética, a lógica e a física. A ética estuda a agir humano, a lógica se debruça sobre a atividade cognitiva  da mente e seus frutos ( sendo o principal desses frutos o conhecimento) e a física tem por objeto a natureza.

Contudo, para estoicos e epicuristas a natureza nada tem a ver com aquela estudada  por Aristóteles em sua física como dimensão oposta à realidade transcendente de Deus; nos estoicos e epicuristas a própria natureza é divina, e nada há fora dela. De certo modo, estoicos e epicuristas retomam o pensar dos pré-socráticos, sobretudo Demócrito ( para os epicuristas) e Heráclito ( inspiração dos estoicos), esboçando assim uma filosofia da Imanência.

Originariamente, imanência vem de “imanare”. A raiz dessa palavra é a mesma de “manancial”, tal como o manancial de um rio. Manancial é fluxo, assim como o rio de Heráclito enquanto imagem poético-filosófica do Devir. Dessa maneira, imanência é “ir para dentro do fluxo”, do devir ou, como diz Espinosa, da Potência . Enquanto as filosofias da  transcendência colocam fora da natureza o principal objeto de seus estudos,  objeto esse alcançável apenas pela “razão pura”, as filosofias da  imanência fazem da natureza o tema primeiro de suas investigações , natureza essa da qual tudo é uma expressão ou maneira de ser.

Imanência não é a mesma coisa que interioridade. Por exemplo, em Descartes as Ideias Inatas estão no interior da razão, porém a razão é transcendente a essas Ideias que estão no interior dela. A imanência  não é interior a algo, pois se ela fosse interior a algo esse algo seria diferente dela ( assim como a gaveta é diferente do objeto que guardamos no interior dela). Mas como tudo é natureza, nada está fora dela: ela é imanente a tudo, incluindo imanente à mente e ao corpo. Ou melhor, mente e corpo são expressões da natureza, e não uma realidade à parte dela[4].

O estudo da natureza se torna a razão de ser da lógica e da ética, uma vez que  filósofo é aquele cujo agir coincide com a própria maneira de ser da natureza. Os estoicos resumiam essa questão com a expressão Amor Fati: querer o acontecimento, não negá-lo ou projetar nele nossos medos, superstições  e ressentimentos [5].

Por isso, o corpo assume papel fundamental nas filosofias da imanência. Consequentemente, a arte também ocupará um lugar decisivo nessas filosofias, pois a arte é a expressão máxima da potência do corpo, de tal modo que a arte ( estética / poética) também é meio para pensarmos o agir humano ( ética) . Não por acaso, o maior pensador da Imanência, Espinosa, faz da Natureza-Imanência o principal objeto de estudo de sua obra , cujo nome é  Ética.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton.

[2] Inclusive, esse é um dos nomes com os quais Aristóteles nomeia a sua obra intitulada Metafísica ( cujo título não foi dado pelo próprio Aristóteles). Os outros nomes empregados por Aristóteles são: Filosofia Primeira e Sabedoria. Ou seja, no mundo Grego a teologia estava subordinada à filosofia. Na Idade Média, ao contrário, será a filosofia que será colocada subalternamente  à teologia ( como se fosse sua “serva”, conforme expressão comum na boca dos teólogos medievais). Porém, o sentido de Deus em Platão e Aristóteles difere da acepção religiosa cristã-judaico-islâmica. Um excelente livro sobre esse assunto é : Deus e a filosofia, de Étienne Gilson.

[3] Ética e moral não são a mesma coisa, embora exista muito debate a respeito. Simplificando, podemos dizer que a ética estuda as virtudes como princípios da ação ( coragem, justiça, amizade...são virtudes), ao passo que a moral tem por tema o costume enquanto valor social de um grupo. Por esse motivo , a moral tende a ser mais conservadora, estática. Por exemplo, Nietzsche é um feroz crítico da moral, porém há nele uma ética da Vontade de Potência; não há uma moral em Espinosa, e sim uma Ética. No combate ao moralismo fascista durante a Guerra Civil espanhola, os anarquistas  viviam conforme uma ética revolucionária cooperativista e comunitária. 

[4] Vejamos outro exemplo: um oceano produz pequenas ondas . Cada pequena onda é uma maneira de ser do oceano. Cada onda possui sua diferença ou singularidade, mas não se pode separar essa diferença do próprio oceano, pois cada diferença-singularidade é um modo ou maneira de ser do oceano, que se expressa de infinitas maneiras diferentes em cada onda diferente. O oceano não é “interior” à cada onda, e sim lhe é imanente, pois cada onda tem por substância a mesma do oceano: a água. Cada onda é uma  expressão singular do fluxo-manancial  infinito da Substância-Oceano.

[5] Deleuze cita o poeta e escritor Joë  Bousquet como melhor expressão desse Amor Fati estoico. Bousquet era um jovem que , aos 21 anos, levou um tiro durante a primeira guerra. O tiro atingiu sua coluna e o deixou complemente paralítico. Bousquet passava o dia maldizendo esse acontecimento, nutrindo em si um rancor e ódio em relação à vida. Ele quis se suicidar...Contudo, imobilizado na cama ele descobriu algo que nunca antes  conhecera ou lera: poesia. Ele se descobriu poeta, escritor, pintor...e começou a escrever, pintar e a fazer amizades com poetas, escritores, filósofos, artistas, enfim , pessoas que  não faziam parte de sua vida antes da ferida sofrida. Somente quando  aceitou o acontecimento  Bousquet  aprendeu a agir sobre o acontecimento, reinventando  o sentido dele. A poesia cicatrizou sua ferida existencial e o fez descobrir partes do seu ser que ele mesmo não conhecia. Não se trata de aceitar de forma passiva e resignada o que acontece , mas compreender que a bala foi o instrumento da ignorância humana, e que ele ainda podia lutar contra essa ignorância, porém com outras armas.

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