FILOSOFIAS DA TRANSCENDÊNCIA E FILOSOFIAS DA IMANÊNCIA[1]
Aristóteles concebia a
filosofia de forma dual, binária ou dicotômica, pois ele separava a filosofia
em duas partes: a teorética e a prática.
A primeira parte tem por método a contemplação dos objetos de estudo
: em um nível mais elevado, Deus, as
estrelas, o cosmos, enfim, o Ser; e , em um nível inferior, as quantidades, as
qualidades , o movimento e os seres
vivos. A atividade teorética inferior é assim considerada em razão de os objetos de seus
estudos envolverem a matéria ( os objetos da astronomia, da física e da biologia, por
exemplo, possuem matéria ), ao passo que quanto mais elevado é o objeto de
estudo da atividade teorética, menos matéria tem: Deus é o objeto mais eminente
da atividade contemplativa-teorética, uma vez que Deus é, em Aristóteles ,
Forma Pura ou Motor Imóvel.
Nesse sentido , a
disciplina mais elevada da atividade contemplativa-teorética é a teologia[2]
. Ou seja, esse objeto primeiro da filosofia é transcendente ao mundo da
natureza. Trans-ens: o que existe fora do mundo dos entes naturais,
portanto, fora do espaço e do tempo. Somente a razão conseguiria alcançar essa
transcendência, desde que depurada dos fatores sensórios-sensíveis oriundos do
corpo e da sensibilidade.
Já a parte prática da
filosofia concerne ao agir humano. A ética e a moral[3]
são , em Aristóteles , as duas disciplinas principais da filosofia em sua
dimensão prática.
Muito diferente é a visão
da filosofia ensinada por estoicos e epicuristas. Enquanto Aristóteles defendia
uma visão binária-dicotômica , estoicos
e epicuristas ensinavam que a filosofia é constituída por três partes: a ética,
a lógica e a física. A ética estuda a agir humano, a lógica se debruça sobre a
atividade cognitiva da mente e seus
frutos ( sendo o principal desses frutos o conhecimento) e a física tem por
objeto a natureza.
Contudo, para estoicos e
epicuristas a natureza nada tem a ver com aquela estudada por Aristóteles em sua física como dimensão
oposta à realidade transcendente de Deus; nos estoicos e epicuristas a própria natureza
é divina, e nada há fora dela. De certo modo, estoicos e epicuristas retomam o
pensar dos pré-socráticos, sobretudo Demócrito ( para os epicuristas) e
Heráclito ( inspiração dos estoicos), esboçando assim uma filosofia da
Imanência.
Originariamente,
imanência vem de “imanare”. A raiz dessa palavra é a mesma de “manancial”, tal
como o manancial de um rio. Manancial é fluxo, assim como o rio de Heráclito
enquanto imagem poético-filosófica do Devir. Dessa maneira, imanência é “ir
para dentro do fluxo”, do devir ou, como diz Espinosa, da Potência . Enquanto as
filosofias da transcendência colocam
fora da natureza o principal objeto de seus estudos, objeto esse alcançável apenas pela “razão
pura”, as filosofias da imanência fazem
da natureza o tema primeiro de suas investigações , natureza essa da qual tudo
é uma expressão ou maneira de ser.
Imanência não é a mesma
coisa que interioridade. Por exemplo, em Descartes as Ideias Inatas estão no
interior da razão, porém a razão é transcendente a essas Ideias que estão no
interior dela. A imanência não é
interior a algo, pois se ela fosse interior a algo esse algo seria diferente
dela ( assim como a gaveta é diferente do objeto que guardamos no interior
dela). Mas como tudo é natureza, nada está fora dela: ela é imanente a tudo,
incluindo imanente à mente e ao corpo. Ou melhor, mente e corpo são expressões
da natureza, e não uma realidade à parte dela[4].
O estudo da natureza se
torna a razão de ser da lógica e da ética, uma vez que filósofo é aquele cujo agir coincide com a
própria maneira de ser da natureza. Os estoicos resumiam essa questão com a
expressão Amor Fati: querer o acontecimento, não negá-lo ou projetar
nele nossos medos, superstições e
ressentimentos [5].
Por isso, o corpo assume
papel fundamental nas filosofias da imanência. Consequentemente, a arte também
ocupará um lugar decisivo nessas filosofias, pois a arte é a expressão máxima da
potência do corpo, de tal modo que a arte ( estética / poética) também é meio
para pensarmos o agir humano ( ética) . Não por acaso, o maior pensador da
Imanência, Espinosa, faz da Natureza-Imanência o principal objeto de estudo de
sua obra , cujo nome é Ética.
[1]
Texto-aula elaborado pelo prof. Elton.
[2]
Inclusive, esse é um dos nomes com os quais Aristóteles nomeia a sua obra
intitulada Metafísica ( cujo título não foi dado pelo próprio
Aristóteles). Os outros nomes empregados por Aristóteles são: Filosofia
Primeira e Sabedoria. Ou seja, no mundo Grego a teologia estava subordinada à
filosofia. Na Idade Média, ao contrário, será a filosofia que será colocada subalternamente
à teologia ( como se fosse sua “serva”,
conforme expressão comum na boca dos teólogos medievais). Porém, o sentido de
Deus em Platão e Aristóteles difere da acepção religiosa
cristã-judaico-islâmica. Um excelente livro sobre esse assunto é : Deus e a
filosofia, de Étienne Gilson.
[3]
Ética e moral não são a mesma coisa, embora exista muito debate a respeito. Simplificando,
podemos dizer que a ética estuda as virtudes como princípios da ação (
coragem, justiça, amizade...são virtudes), ao passo que a moral tem por tema o costume
enquanto valor social de um grupo. Por esse motivo , a moral tende a ser mais
conservadora, estática. Por exemplo, Nietzsche é um feroz crítico da moral,
porém há nele uma ética da Vontade de Potência; não há uma moral em Espinosa, e
sim uma Ética. No combate ao moralismo fascista durante a Guerra Civil espanhola,
os anarquistas viviam conforme uma ética
revolucionária cooperativista e comunitária.
[4]
Vejamos outro exemplo: um oceano produz pequenas ondas . Cada pequena onda é
uma maneira de ser do oceano. Cada onda possui sua diferença ou singularidade,
mas não se pode separar essa diferença do próprio oceano, pois cada
diferença-singularidade é um modo ou maneira de ser do oceano, que se expressa
de infinitas maneiras diferentes em cada onda diferente. O oceano não é
“interior” à cada onda, e sim lhe é imanente, pois cada onda tem por substância
a mesma do oceano: a água. Cada onda é uma expressão singular do fluxo-manancial infinito da Substância-Oceano.
[5]
Deleuze cita o poeta e escritor Joë Bousquet como melhor expressão desse Amor
Fati estoico. Bousquet era um jovem que , aos 21 anos, levou um tiro
durante a primeira guerra. O tiro atingiu sua coluna e o deixou complemente
paralítico. Bousquet passava o dia maldizendo esse acontecimento, nutrindo em
si um rancor e ódio em relação à vida. Ele quis se suicidar...Contudo,
imobilizado na cama ele descobriu algo que nunca antes conhecera ou lera: poesia. Ele se descobriu
poeta, escritor, pintor...e começou a escrever, pintar e a fazer amizades com
poetas, escritores, filósofos, artistas, enfim , pessoas que não faziam parte de sua vida antes da ferida
sofrida. Somente quando aceitou o
acontecimento Bousquet aprendeu a agir sobre o acontecimento,
reinventando o sentido dele. A poesia
cicatrizou sua ferida existencial e o fez descobrir partes do seu ser que ele
mesmo não conhecia. Não se trata de aceitar de forma passiva e resignada o que
acontece , mas compreender que a bala foi o instrumento da ignorância humana, e
que ele ainda podia lutar contra essa ignorância, porém com outras armas.
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