sábado, 22 de fevereiro de 2020

- a carruagem de dioniso


O racionalista Platão dizia que a alma humana se assemelha a uma carruagem com um cocheiro e dois cavalos. A razão é o cocheiro : ela  tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à ordem imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e obediente  aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indomável e  rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser, pois o cavalo insubmisso não obedece andar em linha reta. O cavalo preto é o Desejo.
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. A beligerância nasce pela impossibilidade que a razão encontra de domesticar o desejo e subordiná-lo às   suas ordens. A  moral conservadora é a rédea da razão, às vezes também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, sempre construindo  linhas de fuga que não estão no mapa que a razão autoritária segue e impõe.
Em  carruagem diferente se locomovia Dioniso  , o Deus das Artes. Dioniso era o próprio cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis feras transportando Dioniso e atestando seu poder  para guiar a natureza. As panteras da carruagem  não eram domesticadas, elas eram feras. Sem lhes roubar a liberdade , Dioniso as conduzia  sem usar chicotes ou rédeas. Dioniso , porém, não lhes ia sobre o dorso. A arte de conduzir o pulsional  requer também a arte das distâncias : nem muito longe, como na transcendência neurótica, nem muito perto, como na psicose.
A arte não nega ou reprime a natureza ( como  faz a moral repressiva), mas a põe a seu serviço conforme uma força criativa que se conjuga com  a potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por caminhos por  onde a razão não ousa ir.Dioniso transforma a agressividade  das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou  cocheiro e guia. A carruagem não segue estradas já mapeadas e sinalizadas, pois o caminho que a carruagem segue é Dioniso que  o inventa à medida que a carruagem avança.

( imagem: “O triunfo de Dioniso”)

                                                                                                   

                              
- o texto da postagem é parte deste livro que escrevi sobre o poeta Manoel de Barros:



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