Ela vive
na calçada de uma rua do Centro do Rio. Ela não deve ter mais do que
50 anos, mas aparenta 70 . Ela está sempre na companhia de uma garrafinha de cachaça,
dessas mais baratas e vendidas em uma embalagem que lembra água. Ela vive dormindo, anestesiada e indiferente , às vezes no meio da calçada, sob sol ou chuva, com a garrafinha ao lado, já vazia.Nas poucas vezes
em que a vi acordada, seu olhar estava
sempre perdido, como se em dúvida se o que via era real ou parte de um
sonho ruim do qual ela ainda não havia despertado.
Hoje de manhã, porém , sob um céu azul e cristalino ( apesar de ser inverno), pela primeira vez a vi desperta. Ela segurava uma garrafinha d’água
que deve ter comprado com as moedas que juntou. Ela estava sentada no chão, próximo à porta fechada de um comércio há muito
falido. Ela tentava abrir a tampinha. Quando me aproximei, ela olhou para mim e tive a sensação de que me reconheceu,
embora eu sempre a visse deitada, aparentemente alheia a tudo e a todos . Ela
dirigiu a palavra a mim numa voz fraca e sofrida, porém em tom educado e gentil: “Você poderia abrir
essa garrafa para mim, não consigo...” A luz do sol tornava ainda mais
translúcida a água contida no plástico transparente.
Peguei a garrafinha , a abri e a devolvi. A senhora imediatamente a levou à boca. Ela devia estar
com muita sede....Ela bebeu apenas alguns goles, tirou a garrafa da boca e
levou uma das mãos à garganta, descendo depois ao peito, como se estivesse
acompanhando a descida da água por dentro de seu corpo. Em seu rosto havia uma mistura de alívio e dor , como
se a simples e pura água a tivesse queimado
como um sol líquido . “A pureza às vezes também queima como o álcool: para sarar”, pensei alto e ela ouviu... Ela levantou os
olhos para mim e sorriu , dizendo “sim”
com a cabeça. O novo gole que ela
tomou desceu sem dor. “Muito obrigado”, ela me disse. Eu me despedi e fui. Após
dar alguns passos olhei para trás e vi que ela estava com olhos vivos, abertos,
parecendo pensar intensamente em algo. Depois
virou para mim e , sorrindo, apontou para a garrafa com o dedo e com o
mesmo dedo tocou a boca , a garganta
e o peito, refazendo o caminho da água que agora era parte de seu
corpo e fazia resistir nela a vida.
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