Há uma passagem do livro “Assim falou
Zaratustra”, de Nietzsche, na qual Zaratustra
cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão
suplicava amor e amizade a Zaratustra, e
lhe pedia para ir em seus ombros. Uma
vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o
caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus
ombros e seguiu sua viagem. Porém, não avançou muito, pois logo o anão começou a
advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava
ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia,
desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e
antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando
pelo infortúnio dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos,
mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar,
sentar, talvez se ajoelhar, e implorar ao destino perdão. Zaratustra já se
inclinava para prostrar-se derrotado quando, de repente, um grito veio de dentro
dele e protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas
pernas curtas!”. Livrando-se das seduções da autopiedade, Zaratustra expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da
vida, da vida que resiste e avança, que
protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de Zaratustra. Em
alguns, essa voz se faz alta para acordar quem dorme para a vida; noutros, nos já
despertos, ela apenas canta, como em Cartola ou Orfeu, ou sabe se transfigurar
em assobio, como em Manoel.
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