quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

mito, poesia e filosofia


Em sua Filosofia da mitologia, Shelling considera que a arte grega revela, de forma segunda ou derivada, o que o mito expressa de forma primeira, originária. Por isso, a arte grega buscava na mitologia seus temas. Exatamente por ser arte, invenção, a arte não pode ser primeira, sem perder sua natureza de arte. A invenção artística  é assim  considerada  por existir algo não inventado que se lhe contrapõe, tal como o refletido em relação ao reflexo . Se tudo fosse inventado, não se teria consciência da invenção. Se assistíssemos a uma peça de teatro que nunca terminasse , e se nós mesmos fôssemos parte dela, essa peça já não seria teatro, seria a vida mesma, mesmo que fôssemos apenas espectadores dela.
Segundo argumenta Shelling, a mitologia não é arte, ela é uma forma singular de produzir conhecimento, conhecimento do que vem primeiro, exatamente por ser divino ( não no sentido religioso). Por isso, por dar a conhecer o que é primeiro, a mitologia  não é segunda, ela é primeira. Ela é a invenção sem a consciência de invenção. A mitologia vive a experiência de não separação entre o conhecimento e aquilo que é conhecido. Logo, ela é realidade, uma realidade absoluta, isenta da separação entre subjetividade e objetividade, corpo e espírito. Nesse sentido, é impossível para nós vivermos o mito tal como o viveram os gregos que o inventaram , talvez apenas o poeta e a potência imaginante da criança disso sejam capazes. Ao inventarem os mitos, os gregos inventavam a si mesmos, sem que houvesse antes dessa invenção um grego como “verdade objetiva” do que é ser grego. Talvez seja esta a grande lição que temos de aprender com os gregos: sermos os artistas de nós mesmos.
O grego assim inventado não é histórico, mas simbólico. “Sym-bólico” : união ou agenciamento das partes. “Dia-bólico”: separação das partes. Todo símbolo é uma parte que se oferece à outra parte dela que somos. O símbolo agencia diferenças no encontro que o expressa. O “diabólico”, ao contrário, é o que nos reduz a um ego, a um cogito. Talvez nada mais diabólico do que disse Descartes, atormentado pelo seu “Gênio Maligno”: “o homem está só no mundo, e fala apenas consigo mesmo”. Mas os sabiás com trevas, como Manoel, Deleuze e Espinosa, acreditam nessa simbólica poético-filosófica: “o homem está só no mundo, se fala apenas consigo mesmo”.
Por isso, esse grego simbólico inventor de mitos também podemos o encontrar em nós , desde que ainda nos afetemos pelo Canto das Musas, e aprendamos não exatamente a nos comportarmos  , mas a “inventarmos comportamento”.[1]
Como diz Deleuze, “a literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los”[2]. O mito começa com o caos. Perdemos, talvez, o sentido desse começo, no qual arte e vida ainda não se haviam  separado. Em Aristóteles, a arte imita a vida. Naquela época em que se produziam os mitos, porém, a poesia era a vida mesma que se repetia outra, como sentido produzido para si mesma, como Caos e como Gaia, Terra.



[1] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.
[2] A ilha deserta e outros textos, Editora Iluminuras, 2004, p. 15.



                

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